ZOLA

Por David Lutango | 11/01/2021 | Contos

ZOLA, de David Lutango

SINÓPSE

Zola é um escritor conhecido que, por escrever impulsivamente,
um dia é levado pelas perdições do delírio que o fazem enxergar e ouvir
coisas que o colocariam entre a realidade e a ficção.

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Naquela madrugada, a calmaria era o pano de fundo do universo. As sombras excluíam-se diante da hegemonia do crepúsculo e os sussurros da noite brincavam no sossego que teimava no mundo.

Os óculos grudados em meus olhos de sono rendiam-se à natureza sombria que os deuses delinearam na Criação. Como sempre, a acústica dos objectos ao meu redor recorria ao silêncio para elevar seus tons quando roçada.

Meu corpo driblava os seres da escuridão enquanto me ajeitava à periferia da cama.

Tentava lembrar-me de tudo o que havia feito naquele dia. Contemplei o meu irmão Samuel, quando disse que me visitaria; e lembrei-me que Mabanza viria para actualizar-me as novidades da editora onde trabalhamos.

Tão logo, o sono invadiu-me sem avisar e as sonâncias do mundo silenciaram-se como luzes se extinguindo em apagões; apenas uma vela desgastando-se sobre a gaveta pelejava contra o escurecer.

Os sonhos iam e viam da minha mente como carros que deambulam apressadas na estrada. Foi quando um ligeiro ruído entrou pela janela e espantou as quimeras que prendiam-se na letargia da minha alma.

Logo acomodei o bloco de notas no colo para anotar mais um sonho, na ânsia de um dia transformá-lo em conto.

Escrevia como se o amanhã nunca viesse a chegar; a tinta da lapiseira devorava o caderno como um homem excitado devora a fruta da sua amada.

A fonte de luz sobre a gaveta dançava aos sopros dos ventos que pilhavam-se na janela; minha imaginação era fértil como orgasmo para os virgens; e meus lábios sorriam como um beija-flor sorri para suas origens.

Encontrara meu lugar no mundo e nele queria permanecer pelo resto da vida.

Não mais sentia o corpo até que a vela decidiu calar-se para sempre.

— “Merda!” — Sussurrei.

A escuridão viera com seus ruídos e minhas mãos puseram-se a alisar a cama, tentando encontrar a luz do telefone.

Lá fora ouviam-se vozes e passos dos seres da noite. Naquela madrugada soturna, a lua decidira desamparar as estrelas, frustrando aqueles que dependem dela para se transformarem em lobos.

Foi então que meus olhos fecharam-se.

 

***       

 

A nova aurora se estadeava no mundo das imperfeições.

O Outono angolano favorecia ao galo o hino do alvorecer.

A luz natural entrava pela janela e se misturava com os papéis rabiscados sobre a gaveta; e meu sono fora assassinado pelas batidas na porta, que soavam como colunas afinadas no grave, bombardeando o lugar em alto tom.

— Zola! Zola! — Gritava um desconhecido do outro lado da porta.

O barulho estuprava a sensibilidade dos meus ouvidos e meus olhos só enxergavam borrões em formatos de objecto. Peguei os óculos e os coloquei, na tentativa de contemplar o real. Os livros na cabeceira da cama pareciam capacetes de motociclistas; era como se a cama estivesse a levitar; os estrondos na porta elevaram suas fúrias e o desconhecido não parava de gritar meu nome.

Perguntas lançavam-se à minha razão e os pensamentos confusos trituravam minha mente como carnes trituradas no matadouro.

Levei as mãos na cabeça e gritei:

— Quem é?

Minha voz logo ecoou sobre o quarto como mil vozes ecoando num túnel.

— Sou eu! — Disse o desconhecido.

O nome das personagens dos meus livros surgiam em minha mente; e as vozes dos seres da noite, que na madrugada ouvira, regressaram em meus ouvidos com mais força do que nunca.

As fagulhas de luz que entravam pela janela eram inúteis diante da escuridão que se apresentava no guarda-roupa de onde as criaturas do crepúsculo mostravam-se com seus vultos sem cabelo e exibiam suas garras, como se estivessem presas às trevas do guarda-roupa sombrio;

— “Meu Deus!” — Disse para mim mesmo quando afogava meu rosto nos lençóis.

A porta abriu-se e o silêncio tomou conta do lugar.

O desconhecido aproximava-se de mim e me enxergava com um semblante pálido; as rugas em seu rosto denunciavam sua velhice; em seus lábios saíam pequenos bichos que perfuravam sua pele e rastejavam no osso; parecia-se com um monstro e as moscas o seguiam como abelhas seguem a rainha.

— Ainda que eu ande pelo vale… — Gritei em alvoroço enquanto o velho se aproximava.

As vozes em minha mente gritavam também; as criaturas da escuridão que se escondiam no guarda-roupa saíam aos milhões e viam em minha direcção; cobri-me com os lençóis e continuei:

— … da sombra…  

O desconhecido não parava de se aproximar; a escuridão invadiu o quarto; e quando o monstro finalmente se aproximou, fechei os olhos e gritei:

— Não!

Imediatamente, as luzes do mundo se apagaram e a escuridão profunda tomou conta de tudo.

 

***

 

Ao me despertar, o amanhecer já havia chegado e o galo entoava seu hino para os seres da natureza. Levantei-me em alvoroço da cama e notei que o chão tragava o bloco de notas rabiscado em todos os lados da sua existência.

A cicatriz da vela que se desgastara grudava sobre a gaveta e o quarto delatava a desordem que sucedera.

Prontamente, corri para o guarda-roupa à procura das criaturas que na madrugada me olhavam com seus olhos negros como carvão; mas, apenas as minhas roupas velhas se mostravam na claridade que entrava. Abri a porta do quarto com pressa e olhei pelos dois lados do corredor; só o silêncio da aurora imperava no tempo. Respirei fundo e disse para mim mesmo:

— “Foi só um pesadelo”.

A alvorada faiscava seus raios sobre a natureza e o novo amanhecer dava seus primeiros suspiros de vida. Voltei a fechar a porta e aproximei-me da cama. Foi quando o telefone decidiu soltar suas serenatas nos recônditos do quarto;

— Alô, Zola! — Disse a voz no telefone.

— Mabanza? — Atendi.

— Sim, Zola, como acordaste?

— Eu acordei bem, só tive um sonho bem estranho.

— Como assim? — Disse Mabanza — Não te lembras de ontem?

— Ontem? — Logo franzi a testa — Sobre o quê?

— Ontem você enlouqueceu.

Meu corpo paralisou bruscamente como um foguete em pleno espaço infinito. Engoli uma saliva e disse, confuso.

— Quê?

— Eu estive aí, — continuou Mabanza — você me confundiu com um velho. Eu não estava a te entender.

— Quê? — Logo soltei um leve sorriso, como se de só uma brincadeira se tratasse.

— Até tivemos que te dar um calmante para você dormir. — Mabanza acrescentou.

— “Eu até escrevo histórias sobre personagens loucos, mas, eu mesmo enlouquecer! Não pode” — Pensei. Naquele mesmo momento, ouvi passos e sussurros que viam do corredor e se aproximavam lentamente da porta. Pude notar que meus pulmões aceleraram de repente contra a tensão que crescia e os meus olhos viram uma sombra no orifício debaixo da porta. Engoli mais uma saliva e disse:

— Mabanza, acho que alguém entrou aqui em casa.

— O Samuel não dormiu aí com você?

— O Samuel?

— Oh, não te lembras?

Em seguida, Samuel abriu a porta e entrou com uma xícara de café nas mãos. Imediatamente, nossos olhares se cruzaram como bifurcações na estrada.

— Então, como estás agora? — Samuel perguntou.

— Agora? — Admirei. Tentei lembrar-me da noite anterior e não encontrei nenhum registo sobre Samuel ter chegado aqui, muito menos dormido. — Isso é estranho.  

— Ainda te sentes estranho?

— “Será que não foi um sonho? Eu tinha mesmo enlouquecido?” — pensei.

— Quando foi que você chegou aqui? — Perguntei.

— Ontem. — Samuel disse.

— Ontem!?

— Ontem passaste mal, não lembras?

— Quê?

— Não lembras?

— Mas, lembrar o quê? — Perguntei.

— Ontem você enlouqueceu. — Samuel disse.

Naquele momento, nada mais me restava senão reconhecer a minha loucura.

 

 

FIM.   

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