"VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?"

Por Renato Ladeia | 23/01/2011 | Crônicas


Todos já devem ter ouvido essa frase em algum momento da vida. Alguém que posse de uma carteirinha coloca no nariz do outro o peso de uma autoridade, pretensamente outorgada pelo Estado e se coloca acima das leis. Ela faz parte da cultura brasileira e representa uma manifestação de poder simbolizando que o Estado foi apropriado por uma minoria, que por exercer alguma função importante nesta instituição, considera-se protegido por ela.
Foi somente após as revoluções liberais, principalmente, a Revolução Francesa, é que o estado deixa de ser a representação da nobreza e seus asseclas transformando-se numa instituição de todos e para todos, pelo menos no sentido filosófico. O filósofo suíço Jean Jacques Rousseau no século XIX concebe o Estado como uma instituição artificial a serviço da lei da ordem e o soberano (ou o governo) é como qualquer cidadão, um súdito da lei e não acima dela.. Para Rousseau, os indivíduos são cidadãos do Estado e súditos da Lei, incluindo aí os próprios soberanos. Infelizmente no Brasil, o Estado continua representando no imaginário de boa parte de nossa elite (já que não temos mais a nobreza), uma instituição a seu serviço, apesar de que nossa constituição deixa bem claro que todos somos iguais perante a lei. Como disse Sergio Buarque de Hollanda em Raízes do Brasil: o liberalismo em nosso país foi um grande equívoco, ou seja, as elites se apropriaram dele de acordo com os seus interesses patrimonialistas e não como uma instituição voltada para a sociedade como um todo.
Este preâmbulo é para entrar no absurdo que ocorreu na cidade de São José dos Campos no estado mais desenvolvido da federação, onde um delegado de polícia, considerando-se acima da lei, de qualquer direito, não aceitou a advertência de um cidadão cadeirante de que havia estacionado o veículo em local reservado aos deficientes físicos. Os jornais publicaram que o tal delegado além de ofender o cidadão cadeirante, ainda colocou o revolver no seu rosto, ameaçando-o. Obviamente, para o delegado, o cadeirante deveria se "colocar no seu lugar", ou seja, da submissão total e absoluta a um representante da lei que deve sempre ter privilégios respeitados, mesmo que outra lei obrigue os estabelecimentos a destinarem vagas de estacionamento exclusivamente para deficientes ou idosos. O problema para o representante da lei é que houve testemunha e o cadeirante é também um advogado.
O mais triste é que o acontecimento não é nenhuma novidade neste país e com certeza apenas um insignificante número de casos chega à imprensa. O recente episódio do estagiário que foi humilhado por um juiz pelo simples fato de estar na fila de espera para utilizar o caixa eletrônico em um órgão público de Brasília, é outro exemplo que mostra o poder da "carteirada". Esse tipo de comportamento está tão enraizado em nossa cultura, que as pessoas acabam considerando normal que alguém que representa a lei, utilize essa prerrogativa para obter vantagens e privilégios. A partir daí, maus advogados, se valem do conhecimento da lei para se colocarem acima dela. Quem nunca ouviu um deles tirar a carteirinha da OAB e usá-la como instrumento intimidatório?
O problema fica ainda pior quando envolve o racismo, como o que presenciei em um shopping em São Paulo. Um cidadão jovem e saudável ao ser advertido por um segurança negro de que estava ocupando uma vaga destinada a deficientes físicos, procedeu de maneira semelhante, com o agravante de uma manifestação racista: "Escute aqui o negrão, coloque-se no seu lugar porque senão eu vou mandar te demitir e prendê-lo por desacato a um delegado de polícia". O segurança respondeu submissamente: "me desculpe senhor" e fez o que o delegado ordenou: colocou-se no seu lugar, ou seja, numa categoria social que não tem direitos, nem mesmo de cumprir as suas funções; repito: apesar da nossa constituição deixar muito claro que todos somos iguais perante a lei. Mas ai vem àquela máxima que Orwell imortalizou no livrinho "Animal Farm" (A revolução dos bichos): "Todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros".
O episódio, apesar de revoltante, irá também para as calendas depois que o assunto esfriar na imprensa. O delegado foi afastado para investigação e muito provavelmente não será punido ou no máximo ganhará uma advertência por comportamento "inadequado" ou quem sabe poderá ser "condenado" a doar algumas cestas básicas. O lamentável não é somente a transgressão em si, pois já vi a exaustão pessoas saudáveis e jovens em vagas para deficientes ou idosos, mas as nossas percepções de cidadania e de respeito pelos direitos do outro, que ainda estão muito distantes dos padrões de países civilizados. Entretanto, já passou da hora, e muito, de enquadrarmos os detentores de cargos públicos como servidores no seu sentido estrito e não como "donos do poder" acima da lei.