Vivências de Prazer e Sofrimento – a Escola da Psicodinâmica do Trabalho

Por CARLOS EDUARDO MARQUES DA SILVA | 14/06/2016 | Psicologia

As relações entre o trabalhador, a organização do trabalho e as vivencias de prazer e sofrimento daí decorrentes tem sido analisadas sob vieses variados, mas as principais construções teóricas que as reforça e sustenta tem se embasado na chamada Escola da Psicodinâmica do Trabalho. Inaugurada por Cristophe Dejours na década de 80, tendo seus trabalhos iniciais realizados a partir das pesquisas franco-belgas em ergonomia ainda na década de 70, esta clínica se construiu inicialmente com referenciais teóricos oriundos da psicopatologia, e evoluiu para uma construção própria, tornando-se uma abordagem autônoma, com objeto, princípios, e método particulares.

Seu campo de ação é a investigação das formas de sofrimento vivenciados pelos trabalhadores em sua atividade, o conteúdo deste sofrimento, sua significação e os processos defensivos, que segundo o autor são coletivamente construídos para fazer frente aos constrangimentos decorrentes do trabalho. O foco é a relação dos homens com a organização do trabalho, e o processo de subjetivação dos indivíduos através das relações com esta organização (MARTINS, 2009).

Entenda-se aqui a organização do trabalho, não como as condições de trabalho, onde poderíamos incluir o ambiente físico, as condições de higiene, de segurança e as características ergonômicas e antropométricas com as quais o trabalhador lida em sua atividade, ainda que estes tenham um papel e possam contribuir para o processo de adoecimento do trabalhador. Dejours (2004) define a organização do trabalho como um conjunto que envolve o desenho que a atividade ganha na organização: o modo como o trabalho é dividido, seu conteúdo e as relações de poder presentes no sistema hierárquico, as formas de comando e de responsabilização (MENDES & ARAUJO, 2011).

As pesquisas na época revelavam a prevalência de um distanciamento, um hiato entre a tarefa a ser realizada, e a atividade real no trabalho. A organização do trabalho se mostra repleta de contradições, visto que as normas e regulamentos podem formar um corpo tão complexo, que dificulta, quando não impossibilita a execução das atividades. Este distanciamento entre o trabalho real e o trabalho prescrito é fonte de angústia e sofrimento para os trabalhadores.

Dejours buscava compreender o sofrimento originado deste confronto, e as estratégias defensivas usadas pelos trabalhadores para lidar com este sofrimento, coletivamente elaborados e inconscientemente vivenciados pelos trabalhadores.

Na fase inicial, a psicodinâmica do trabalho considerava a organização do trabalho de modo funcionalista, concebida como um conjunto de constrangimentos monolíticos, inflexíveis, preexistentes ao encontro com o sujeito, e investigava os processos psíquicos mobilizados pela confrontação dos sujeitos (com sua história singular preexistente), com a situação de trabalho, (representante da vontade de um Outro), cujas características foram fixadas à revelia de sua vontade (MARTINS, 2009).

Em sua visão, os trabalhadores não são agentes passivos aos constrangimentos a que o exercício do trabalho os submete, mas seres autônomos e capazes de construir processos defensivos para se protegerem de situações nocivas à sua saúde.

A proteção à saúde e a capacidade de cada um resistir aos efeitos desestabilizadores do sofrimento não dependem apenas da estruturação psíquica individual, mas passam pela qualidade das estratégias defensivas. Estas são elaboradas coletivamente, de forma solidaria, pelo corpo dos trabalhadores, para fazer frente a estas dificuldades.

É neste espaço que se inscreve a visão psicodinâmica do trabalho. Dejours, seu criador, modifica o conceito econômico de saúde presente na psicopatologia do trabalho, para um conceito dinâmico, considerando a significação e o sentido do sofrimento como essenciais para o entendimento da relação saúde-trabalho.

Nem o sofrimento, tampouco as estratégias de defesa são patológicas, mas uma saída para a saúde. O sofrimento é o motor que mobiliza o sujeito no mundo no trabalho, envidando esforços para manter sua saúde.

Normalidade e a saúde são vistas aqui como um enigma, e objeto do estudo deste campo, pela busca de se entender como os sujeitos se mantém saudáveis, ainda que as condições para realização de seu trabalho sejam precárias e favorecedoras de sofrimento e adoecimento, não mais enfatizando as psicopatologias resultantes do trabalho. A saúde passa a ser entendida como um equilíbrio, ainda que precário, entre o sofrimento e as estratégias defensivas contra este. O sofrimento é tido como uma instância intermediária entre a doença (mental ou somática) descompensada e o conforto (bem-estar) psíquico (BRANT E MINAYO-GOMES, 2004).

Dado o vazio existente entre o trabalho real e o trabalho prescrito, o “trabalhar” se impõe como um confronto com a complexidade do real, onde os conhecimentos existentes não são suficientes, exigindo uma mobilização subjetiva dos sujeitos para sua realização. O sujeito precisa mobilizar um tipo de “inteligência em ação” para fazer frente a esta falta e lograr êxito em sua atividade.  O exercício bem-sucedido desta inteligência astuciosa, mobilizada pelo sofrimento, tem como efeito a obtenção do prazer.

Torna-se central para a psicodinâmica do trabalho a problemática da mobilização e do engajamento que a organização do trabalho exige do sujeito trabalhador, que demanda um investimento físico e psíquico diante da organização.

O trabalho prescrito precisa por vezes ser subvertido em nome da produtividade e da qualidade. Gera maior sofrimento aos trabalhadores quando não permite margem de liberdade para usarem a inteligência pratica, a inventividade, um dos caminhos para transformação do sofrimento. O saudável figura como um enfrentamento às imposições e pressões do trabalho, que causam instabilidade psicológica, dando lugar ao prazer quando as condições geradoras de sofrimento poder ser transformadas. O patológico implica em seu inverso, na falha dos modos de enfrentamento do sofrimento.

O avanço dos estudos em psicodinâmica do trabalho recai sobre a possibilidade de o trabalho também ser fonte de prazer, por via direta ou pela ressignificação do sofrimento, que pressupõe uma ação diferente das estratégias de defesa.

Frente à irredutibilidade do real, o trabalhador contribui pessoalmente para a construção da organização prática do trabalho, onde além de mobilizar processos subjetivos de investimento do desejo, da inteligência em ação e da personalidade, os trabalhadores contribuem construindo regras próprias de trabalho para alcançar a qualidade, muitas vezes assumindo o risco da transgressão em relação à organização prescrita. O resultado é a obtenção de prazer, e não sofrimento, na execução da atividade.

Nesta fase da psicodinâmica do trabalho (década de 90) enfoca as vivências de prazer e sofrimento como dialéticas e inerentes a todo contexto do trabalho, analisando as estratégias usadas pelos trabalhadores para manter a saúde e evitar o adoecimento, assegurando a produtividade (MENDES & ARAUJO, 2011).

O sofrimento ainda existe, mas Dejours distingue aí um sofrimento criador, e um sofrimento patogênico. Este último surge quando não se encontra possibilidade de transformar a forma de organizar o trabalho, restando pressões fixas, rígidas, repetitivas e frustrantes, que configuram uma sensação generalizada de incapacidade (HELOANI e CAPITÃO, 2003). Todavia, quando as ações no trabalho possibilitam a criatividade, contribuem para uma estruturação que aumenta a resistência da pessoa às várias formas de desequilíbrio psíquico e corporais. Dessa forma, o trabalho pode ser o mediador entre a saúde e a doença, entre o sofrimento criador e o patogênico. O sofrimento como parte da condição humana opera como um mobilizador dos investimentos para transformação da realidade.

A mobilização subjetiva do trabalhador permite o engajamento no trabalho e o resgate do sentido do trabalho, sentido este que depende da relação entre a subjetividade do trabalhador, que lança mão de sua inteligência prática, do saber fazer, e do coletivo de trabalho, para transformar as situações causadoras de sofrimento.

Na terceira fase o foco não está mais nas vivências de prazer-sofrimento em si, mas no modo como os trabalhadores subjetivam essas vivências, o sentido que elas assumem e o uso de estratégias, ocasionado pelas novas formas de organização do trabalho, especificamente as defesas coletivas e a cooperação. A investigação clínica junto aos trabalhadores vai sendo deslocada do estudo do comportamento e as experiências de prazer e sofrimento para as relações sociais no trabalho.

Como relações sociais no trabalho, considera todos os laços humanos originados na organização do trabalho, ou seja, as relações com a hierarquia, com chefias, com supervisão e outros trabalhadores. A organização do trabalho passa a ser vista como processo em construção, produto das relações sociais.

Os trabalhadores na realidade buscam gratidão e reconhecimento pelo que fazem. O sofrimento, ao ser ressignificado nessa dinâmica, pode ser transformado em prazer e pode contribuir na conquista da identidade no campo social. Para Dejours, o sentido do trabalho está amalgamado com reconhecimento do grupo e a construção da identidade. Assim, o sofrimento surge quando não é mais possível a negociação entre o sujeito e a realidade imposta pela organização do trabalho.

 É na elaboração da atividade no enfrentamento com o real que acontecem disputas das relações sociais de trabalho. Porem a condição psicoafetiva da cooperação é resultante do desejo de jogar.(DEJOURS, 2004).

O equilíbrio psicodinâmico entre prazer e sofrimento depende da margem de liberdade oferecida aos trabalhadores e da qualidade da dinâmica do reconhecimento da contribuição pessoal que o sujeito dá à organização do trabalho. No contexto do trabalho, o conteúdo das tarefas e a qualidade das relações com os pares e a hierarquia podem ser recursos tanto para o prazer quanto para o sofrimento do trabalhador.

As estratégias coletivas de defesa vão constituir uma forma especifica de cooperação entre os trabalhadores, para lutarem juntos contra os constrangimentos e o sofrimento engendrado no real do trabalho. O sofrimento permanece sendo o motor que impele o sujeito ao mundo na busca de condições de satisfação, auto realização e identidade.

A construção da identidade adquire a forma de procura uma construção de identidade, construção que perpassa o olhar do outro, sob a forma de reconhecimento. Essa dinâmica é percebida pela coletividade, e seus elementos constitutivos são solidariedade, confiança, cooperação. Reconhecimento é o processo de valorização do esforço e do sofrimento investido para realização do trabalho, que possibilita ao sujeito a construção de sua identidade, traduzida afetivamente por vivencia de prazer e de realização de si mesmo.  O trabalhador se engaja no trabalho como participante das relações de poder ali estabelecidas, negociando, pressionando e apropriando ou rejeitando as regras do coletivo de trabalho (DEJOURS, 2012).

O aspecto central da construção da integridade psíquica do trabalhador deriva da mobilização das condições políticas capazes de levá-lo ao reconhecimento no trabalho, possibilitando a conversão de sofrimento em prazer. À medida que tem o seu trabalho reconhecido, uma imagem é dialeticamente constituída, imagem da qual o trabalhador se apropria para se reconhecer como profissional, processo pelo qual a atividade desempenhada adquire significação e sentido. Visualiza-se assim na construção da identidade no trabalho, um movimento em busca de imprimir a marca pessoal. “Um processo de retribuição simbólica de reconhecimento em sua singularidade pelo outro, por meio de suas contribuições ao trabalho, especificamente aquelas dirigidas à superação das contradições entre a organização prescrita e o real” (DEJOURS, 2004).

O desafio da Psicodinâmica do Trabalho reside na definição de ações sensíveis para modificar o destino do sofrimento e favorecer sua transformação, não sua eliminação. Quando o sofrimento pode ser transformado em criatividade, ele traz uma contribuição que beneficia a identidade, aumenta a resistência do sujeito ao risco de desestabilização psíquica e somática e funciona como promotor da saúde.

A psicodinâmica do trabalho vai atuar identificando ações capazes de promover vivências de prazer, considerando que prazer e sofrimento originam-se de uma dinâmica interna das situações e da organização do trabalho, de atitudes e comportamentos lastreados pelo desenho que a organização adquire, cuja tela de fundo constitui-se de relações subjetivas e de poder. Para a transformação do trabalho que faz sofrer em um trabalho prazeroso é necessário que a organização do trabalho propicie maior liberdade ao trabalhador para rearranjar seu modo operatório, usar sua inteligência pratica, engajar-se no coletivo, construir um sentido para seu trabalho e identificar-se com a execução de suas atividades, constituindo assim sua própria identidade (MENDES & ARAUJO, 2011).

A partir da análise das situações saudáveis, resultantes das mediações bem sucedidas diante das contradições de uma organização do trabalho que provoca sofrimento, é que se compreendem as patologias, uma vez são as que as falhas dessas medições que impedem a mobilização e realização dos sujeitos, e leva à patologização das defesas.

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