VISÕES, TALVEZ
Por Romano Dazzi | 23/06/2009 | CrônicasVISÕES, TALVEZ
de Romano Dazzi
Somos seres humanos.
E isto explica a insegurança, a incerteza e os temores que cercam a nossa existência..
Somos incapazes de entender o enigma de nossa vida, de responder às perguntas mais óbvias:
De onde vimos, para onde vamos, por que e para quê ?
Somos mesmo um simples punhado de barro, inútil e descartável?,
Ou então, por termos recebido uma centelha de raciocínio, devemos comportar-nos racionalmente?
E seremos julgados e cobrados pela maneira como a usamos, para podermos aspirar à eternidade?
E quanto espaço mede e quanto tempo dura esta eternidade, que desafia nossa imaginação?
Pois agora, como mulher deste século, consciente e instruída, capaz e independente, posso lhes assegurar, contando com uma única experiência espiritual, que nossa alma vem de longe e continua a sua caminhada, ao se desfazer uma a uma das incômodas embalagens nas quais se encontra aprisionada, por alguns poucos anos, ao longo dos séculos.
No Castelo da minha cidade, existiram um tempo quatro torres, que desafiaram 250 anos de história. Quando as vi, elas eram apenas ruínas abandonadas, tomadas pela hera e por plantas selvagens; mas me acolheram, me agasalharam e me contaram as suas historias.
Primeira História:
Fui uma mulher de minha época - a Renascença - nasci em 1475, exatos duzentos anos depois da construção do Castelo, numa vila dominada por séculos pela República de Veneza.
A Sereníssima - assim era chamada Veneza - tornou-se poderosa graças ao intenso comércio com o oriente.
Comprava sedas preciosas, especiarias, frutas exóticas; conseguia escravos, tratados de ciência e obras de culturas distantes.
Vendia produtos agrícolas e objetos artesanais, feitos nos seus domínios, entre os quais, o meu núcleo.
Lá, criávamos imensos rebanhos de carneiros e com sua lã, milhares de braças de tecidos, que Veneza revendia por todo o Oriente.
O Castelo, seguro e poderoso, era um abrigo seguro para os servos da gleba e os artesãos, contra as hordas de bárbaros famintos, que atravessavam os Alpes e invadiam a planície a cada primavera.
Chamaram-me Eugênia: Maria Eugenia dei Filippi, filha de Edoardo - um cavaleiro de ventura e serviço do Feudo - e de sua esposa Caterina.
Nasci e vivi sempre em minha casa, dentro do castelo.
Lembro-me das quatro torres quadradas, com mais de vinte braças de lado, e cinqüenta de alto, que dominavam a planície.
Em dias de vento, com o ar mais claro, podia-se ver reluzir as construções de Veneza, distantes quase quinze léguas.
Minha vida transcorreu feliz, sentia-me protegida e tranqüila.
Aprendi dança e bordado; pintava e passeava, dentro de um amplo espaço com quase mil braças de cada lado.
Casei-me cedo, aos quinze anos, com Francesco, um gentil cavaleiro de Bérgamo, que estava a serviço de meu pai. Todo o tempo deles era dedicado a organizar a defesa do Castelo. A grave disputa com Veneza ameaçava tornar-se uma guerra.
Nuvens sombrias tomavam corpo, avolumavam-se.
Ninguém conseguiria resistir a um ataque da Sereníssima.
Finalmente, no dia do meu aniversário, as tropas inimigas chegaram.
Com catapultas e escadas, assaltaram as muralhas de todos os lados ao mesmo tempo, lançando centenas de bolas de piche em fogo.
Os tetos cederam, o incêndio se alastrou.
Todos os que se encontravam lá dentro morreram, menos alguns poucos, refugiados na pequena capela; esta foi a única construção que não ruiu; foi um milagre.
Veneza mandou destruir as quatro torres, deixando só as bases, não mais altas que uma pessoa. Exemplo e advertência para quem ousasse desafiar a Sereníssima.
Não me lembro de ter sofrido nada. Perdi os sentidos quando o piche queimando começou e liberar grossos rolos de fumaça acre, preta.
Foi lá que morri. Corria o ano de 1514. Eu estava com 39 anos.
Depois desta tragédia, nada mudou, na verdade, pois nunca muda nada, sob o sol, apesar de todos os sofrimentos.
Minha pequena cidade refez o rebanho de ovelhas, os artesãos recomeçaram a produzir e continuaram vendendo por misérias, durante a vida toda deles, dos filhos e de dez gerações seguintes, outros milhões de braças de panos tecidos.
A minha alma deve ter vagado por todos aqueles campos durante um tempo enorme: uns duzentos anos, eu creio; mas nunca reencontrei o meu amado.
Agora, descanso na Torre Norte, longe do ruído dos homens
Segunda história
Eu também fui uma mulher do meu tempo. Fui Carlota Adelaide Garbin.
Nascida lá, naquele mesmo núcleo, em 1777; o local já vinha se transformando, adquirindo ares de cidade, com três lanifícios, que engoliam os últimos artesãos.
Era, esta também, uma época conturbada.
Napoleão, aliado momentâneo da Áustria, viria a decretar o fim da República de Veneza, em 1797.
Eu tinha vinte anos, então e vivia com meu marido, Anselmo, um bom contramestre no lanifício Conte, o mais antigo e conhecido da região.
Apesar de trabalhar doze horas por dia, Anselmo não conseguia ganhar o suficiente para nos manter.
Eu ajudava como podia, fazendo com carinho tarefas humildes para os vizinhos, cuidava de nossa cabra e da nossa horta.
Anselmo era um rapaz de brio, amava-me intensamente e à nossa maneira, do nosso jeito simples, éramos felizes.
Aos domingos, na primavera, atravessávamos os bosques de pinheiros e de tílias e subíamos até a base das montanhas, procurando amoras e cassís; no outono, colhíamos cogumelos e batíamos nos ramos altos das castanheiras, para fazer cair as frutas que assávamos no fogo brando da lareira. Sim: éramos felizes.
Mas os franceses tornavam-se a cada dia mais gananciosos; cobravam novos impostos, aumentavam aqueles que já custávamos tanto a pagar.
Tudo nos era roubado, para financiar as novas guerras de Bonaparte contra a Europa toda. A rebelião serpenteava pelas fábricas.
Finalmente, em
Mas a sublevação – como a chamaram - não podia agüentar.
Não tinha sido preparada, estudada, planejada. Não tinha líderes. Não tinha armas.
Era apenas uma explosão do desespero.
Tropas francesas ocuparam rapidamente a região, restabeleceram a ordem.
Os Juízes aumentaram novamente os impostos e obrigaram todos ao silêncio.
Anselmo foi levado com outros para um julgamento – ninguém sabia onde – e nunca mais o vimos.
Procurei-o com todas as minhas forças, arrastando-me de quartel em quartel, sofrendo as humilhações e a indiferença de todos; até não agüentar mais.
Numa tarde sufocante daquele verão insuportável, vencido pelo cansaço e pela mágoa, meu coração vacilou. Faleci no dia 16 de agosto e fui enterrada naquele morro, para onde o arcipreste havia recentemente transferido a prelazia da comarca.
Minha alma correu por descampados infinitos, porque sabia que Anselmo estaria lá, esperando por mim. Quando finalmente o encontrei, redescobrimos a nossa felicidade; e assim estaremos juntos até o infinito.
Procure entre as pedras da Torre Sul, quando for lá; encontrará as mudas de amoras silvestres, iguais às que colhíamos em nossos dias de paz. Têm um sabor especial.
Terceira história
Chamaram-me Anita Elisa Maraschin. Nasci em 1878.
Minha família era composta por operários, todos trabalhavam nas tecelagens da Cidade. Ganhando pouco, vivíamos pobremente, amontoados em uma casa antiga, sem água, sem luz.
Eu era a quarta de uma linhagem de mulheres, pois só do quinto filho em diante minha mãe conseguiu dar à luz filhos varões. E teve vários.
Apesar do trabalho pesado, nunca ouvi o meu pai se queixar. Trabalhava o dia inteiro de pé, sem parar, lutando contra o tempo.
Pagavam-no por peça produzida, mas descontavam os defeitos, mesmo os que dependiam da lã, ou da cardadura, ou do urdimento, e não do erro no tear .
Diante dessa situação, nas fábricas, o descontentamento criava situações difíceis.
Os patrões haviam criado uma força especial de polícia, que entrava nas brigas com a ordem expressa de quebrar cabeças.
Nunca quebravam braços ou pernas, que poderiam inutilizar o operário.
Porém este, se sobrevivesse, ficaria assustado, acovardado pelo resto da vida.
Em fevereiro de 1891, houve uma greve geral.
Todos os operários pararam, ao mesmo tempo, em todas as fábricas.
A situação acabou escapando do controle e várias pessoas ficaram feridas.
Duas foram mortas a tiros, sob a alegação que eram agitadores, armados e com ordens de criar o caos.; o seu enterro transformou-se numa manifestação violenta.
A polícia interveio e outros dois operários morreram – a pancadas, desta vez; uma morte mais violenta e intimidadora.
Em abril, nova greve; e novos feridos, pessoas machucadas, sem emprego, sem esperanças.
Alguém se levantou da multidão e ofereceu a solução de emigrar.
Trezentas famílias - somando 1100 almas - decidiram que tinha chegado o momento de partir.
Não poderiam continuar trabalhando e passando fome.
Baixar a cabeça traria mais vinganças e mais humilhações, sem fim.
Com a ajuda do partido operário, embarcamos para o Brasil.
Eu tinha então apenas treze anos, mas entendia muito bem todo o problema.
Na minha nova pátria, fui catadora de café, fingindo ser um moleque.
Era o único modo de sustentar tantas bocas que havia em casa.
Os homens da segurança não sabiam, ou fingiam não saber.
Dez anos depois, fui para São Paulo; lá realizei meus sonhos, estudei, trabalhei, dei de cara com um rapaz que encheu meus olhos e minha alma.
Com ele fiz a minha vida. Com ele fui feliz. Com ele vivi.
Aos poucos, sem que o percebêssemos, envelhecemos, encolhendo, enrugando, até o dia em que escutamos um chamado carinhoso.
Fomos atendê-lo juntos, como sempre havíamos sonhado. E juntos estamos até agora.
O nosso lugar de descanso é a Torre Leste, mesmo que ninguém nos veja...
Quarta história
Das quatro torres do Castelo, três haviam contado a sua história.
Faltava-me a quarta,. E passei um longo tempo pensando, estudando, tentando entender como poderia chegar a ela.
E de repente, vi a luz.
Sou eu, a quarta torre. Eu mesma. Sou justamente a Torre Oeste, aquela na qual a nossa jornada de tantos séculos haveria de terminar
Mas o mais importante é que compreendi que na realidade, apesar de sermos quatro mulheres, somos uma única alma .
Onde é que elas se fundem, se juntam, se completam, eu não sei.
Quando é que isso acontece e como acontece, eu não sei.
Não há tempo, não há espaço, na eternidade.
Elas me contaram suas histórias porque esperam que me junte a elas.
Esperem por mim, Eugênia, Carlota, Anita; eu, Luisa Antonia Vendramin, prometo-lhes solenemente que logo estarei com vocês.
E seremos uma única Alma, um único Ser, na luminosa caminhada para a Eternidade.