Visão Sócio-cronológica da Identificação Criminal

Por Graciela Gallego Aquino | 16/10/2009 | Direito

A identificação, ou melhor, a individualização do ser humano dentro de uma nação, uma sociedade ou mesmo dentro do seio familiar é fundamental pelos reflexos jurídicos dela surgidos, notadamente afetos à responsabilidade civil e criminal pessoal ou de eventual representante legal.

O Governo, então, vem buscando ao longo do tempo aperfeiçoar os documentos e métodos de identificação, não somente para fim civil como criminal. Para tanto, iniciou tal processo com a imposição aos pais de efetuarem o registro do nascimento do filho, obtendo assim a respectiva certidão de nascimento.

Levando-se em consideração que ao Cartório de Registro Civil é necessário "prova" efetiva de comprovação do nascimento para viabilização do registro, e abstraindo-se aqueles casos, hoje raros, de nascimentos que não ocorrem em instituição materno-hospitalar (em que a prova do nascimento se dá por meio testemunhal), grosso modo, pode-se considerar a "Declaração de Nascido Vivo" que, por determinação do Ministério da Saúde, é preenchida pela administração do hospital e/ou maternidade onde ocorrido o parto, como o primeiro documento apto a identificar e individualizar um indivíduo.

Diariamente são descortinadas situações de homônimos perfeitos que causam transtornos não somente ao governo que muitas vezes é induzido em erro, como para os próprios cidadãos que, por exemplo, na esfera civil podem ser privado de um direito (exercido irregularmente por outra pessoa) e na criminal pode levar à responsabilização de inocentes. Desta forma, os dados básicos de identificação civil se mostram cada vez menos eficientes a identificar de fora inequívoca um indivíduo no meio de milhões.

Assim, incansavelmente as instituições governamentais vem envidando esforços na busca da excelência na metodologia de identificação dos integrantes da sociedade. Prova disto está na publicação recente da lei n° 12.058/09, de 13/10/09, que deu nova redação a artigos da lei no 9.454/97, que instituiu, no âmbito da República Federativa do Brasil, o número único de Registro de Identidade Civil (em galopante processo de implementação). Também, pela publicação da nova lei acerca da identificação criminal do civilmente identificado. Lei no 12.037/09, publicada em 01/10/09, que revogou a lei no 10.054/00 e regulamentou pormenorizadamente o art. 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal.

Vale lembrar que na Constituição outorgada em 1937, simultaneamente à implantação do regime ditatorial do Estado Novo, apenas 15 (quinze) itens resguardavam os direitos e garantias individuais do cidadão brasileiro. Em menos de 10 anos e no vácuo da edição do Código Penal, veio ao ordenamento jurídico o Código de Processo Penal com determinação expressa para que a autoridade policial, sempre que possível[1], ordenasse a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico (grifo meu). Ou seja, independentemente da identificação civil e da necessidade, sempre que possível estava a autoridade policial compelida a identificar datiloscopicamente o envolvido, no que já se poderia entender como "identificação criminal".

Por óbvio, a ordem constitucional ditatorial, levou algumas autoridades policiais a agirem de forma abusiva e desregrada, por longo período de tempo, ao estandarte do supramencionado dispositivo sumular. Atitudes que trouxeram inconformismos aqueles que estavam sendo submetidos à identificação datiloscópica, ainda que apresentassem o devido documento de identificação civil. Sensíveis aos argumentos dos queixosos, alguns Tribunais Estaduais acabaram por conceder habeas corpus[2], isentando de identificação criminal aquele já identificado civilmente, mesmo ao arrepio do já sumulado entendimento do STF[3]:

Súmula nº 568 - 15/12/1976 - DJ de 3/1/1977, p. 3; DJ de 4/1/1977, p. 35; DJ de 5/1/1977, p. 59.    "A identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente".

Editada décadas após a publicação do Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689/41), reinou absoluta a Súmula em epígrafe até a promulgação da Constituição Federal em 1988. Período em que, Inclusive, o Supremo Tribunal Federal foi além do seu próprio enunciado e reconheceu a identificação fotográfica como parte integrante do processo de identificação criminal ficando, pois, abrangida pelo inciso VIII do art. 6° do CPP:

Recurso Extraordinário Re 94491 RJ (STF), em 22/04/83: na verdade, vários são os meios conducentes à identificação, inclusive aqueles que revelam traços fisionômicos, caracteres morfológicos etc. Nos dias atuais, com o aprimoramento técnico, a fotografia constitui um dos meios mais eficazes de identificação. Cresce sua importância quando é sabido que traços fisionômicos variam no tempo. Ademais, não se deve esquecer que são mutáveis também pela chamada cirurgia plástica. A fotografia é elemento útil, não só ao serviço de estatística criminal como à própria instrução do processo.

Mas a evolução da sociedade, o refinamento das técnicas escapistas dos infratores, bem como o aprimoramento dos entendimentos doutrinários e construções jurisprudenciais vinham, a passos largos, consubstanciando a insustentabilidade do verbete da Súmula 568/STF, o que ficou claro com a promulgação da Carta Magna de 1988, que garantiu o direito do cidadão civilmente identificado de não ser submetido à identificação criminal (art. 5o, inciso LVIII).

O legislador constituinte, contudo, entendeu por bem reservar à legislação infraconstitucional a árdua tarefa de estabelecer as regras permissivas da identificação criminal. Surgiram, pois, divergências doutrinárias quanto à classificação daquele dispositivo constitucional.

De um lado e minoritariamente estavam aqueles que, citados por FERNANDO CAPEZ[4]sustentavam que "o preceituado no inciso LVIII do art. 5º da Lei Maior não é auto-executável, ficando, pois, na dependência de lei regulamentadora", o que impediria a identificação criminal de cidadão civilmente identificado. De outro, a grande maioria que, no dizer MIRABETE[5], entendia que aquela norma constitucional proibitiva "é norma de aplicabilidade imediata e eficácia contida, tendo eficácia plena até que o legislador ordinário edite a lei restritiva".

De qualquer sorte, na esfera jurisprudencial se viu obrigada a Corte maior a afastar por completo a aplicabilidade da Súmula até então largamente aplicada, para adequar os julgamentos ao novo ditame constitucional até que o legislador ordinário enfrentasse a matéria, a saber:

IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL QUE NÃO SE JUSTIFICA, NO CASO, APÓS O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. PRECEDENTES DE AMBAS AS TURMAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO PROVIDO PARA DETERMINAR O CANCELAMENTO DA IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL DO RECORRENTE. STF. Julgamento em Habeas Corpus: RHC 66471/SP. Julgado em 27/02/89

Até a publicação da lei no 10.054/00, que disciplinou integralmente a matéria, inicial e isoladamente apenas o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei. n° 8.069/90) fez referência ao instituto da identificação criminal, mas apenas para reafirmar o contido no texto constitucional; seguido pela lei n° 9.034/95, que disciplinando a utilização dos meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, trouxe a exceção inaugural em seu art. 5°, ao permitir a identificação criminal de pessoas envolvidas com organizações criminosas, mesmo aquelas já identificado civilmente.

A lei da identificação criminal (lei n° 10.054/00), apesar de concisa, regulamentou de forma específica a matéria. Assim, a partir dela a identificação criminal passou a ser obrigatória para os indiciados ou acusados pela prática de homicídio doloso, crime contra o patrimônio praticado mediante violência ou grave ameaça, de receptação qualificada, contra a liberdade sexual ou de falsificação de documento público. Também ficou autorizada a identificação criminal do indiciado ou acusado se houvesse fundada suspeita de falsificação ou adulteração do documento de identidade, se o documento estivesse em precário estado de conservação, se o elástico lapso temporal de expedição impossibilitasse a completa identificação de caracteres essenciais ou, por fim se a identidade civil estivesse comprovadamente extraviada. Ainda, e como forma de se tentar evitar a identificação criminal, poderia ser concedido ao indiciado ou acusado o prazo de 48 horas para fazer prova de sua identificação civil.

O efeito imediato da entrada em vigora da lei n° 10.054/00 foi a revogação tácita do art. 5° da lei n° 9.034/95, vez que a nova lei, além de ser específica, regulamentou integralmente a matéria. Cabem aplausos ao legislador ordinário que captou a inteligência da Súmula 586 do STF e, não obstante a sua revogação reconheceu a suma importância da identificação fotográfica vez que, como bem referiu Emerson Went[6]: "cumpre mencionar que é um grande instrumento público contra o aumento da criminalidade, porquanto várias identificações de autores de crimes são feitas com base nos arquivos de fotografias das Delegacias de Polícia do Brasil inteiro".

No que pertine à identidade civil, a citada lei considerava identificado civilmente àquele que apresentasse documento de identidade reconhecido pela legislação. Neste particular foi impreciso o legislador, tendo em vista os diversos tipos de cédulas identificações fornecidas pelos mais variados órgãos de classe, e que efetivamente valem como identificação em todo o território nacional, mas como identidade funcional e não identificação civil. Esta há de ficar restrita ao que dispõe a lei nº 7.116/83, que regulamenta a expedição das carteiras de identidade, como documento hábil para identificar civilmente cada cidadão.

Tal lacuna foi perfeitamente preenchida com publicação da lei n° 12.037/09, que expressamente revogou a lei de identificação criminal anterior. Agora, estão de forma perfeita e claramente estabelecidos quais são os documentos admitidos não como forma de identificação civil como identidade civil, mas, aptos a afastar a obrigatoriedade da identificação criminal.

A fim de propiciar ao leitor uma visão global do tema, apresenta-se preliminarmente ás referência acerca das inovações da lei, quadro comparativo do texto legal revogado e das novas disposições legais:

LEI 10.054/00

Art. 1o O preso em flagrante delito, o indiciado em inquérito policial, aquele que pratica infração penal de menor gravidade (art. 61, caput e parágrafo único do art. 69 da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995), assim como aqueles contra os quais tenha sido expedido mandado de prisão judicial, desde que não identificados civilmente, serão submetidos à identificação criminal, inclusive pelo processo datiloscópico e fotográfico.

Parágrafo único. Sendo identificado criminalmente, a autoridade policial providenciará a juntada dos materiais datiloscópico e fotográfico nos autos da comunicação da prisão em flagrante ou nos do inquérito policial.

Lei 12.037/09

Art. 1º O civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nos casos previstos nesta Lei.

Art. 2o A prova de identificação civil far-se-á mediante apresentação de documento de identidade reconhecido pela legislação.

Art. 2º A identificação civil é atestada por qualquer dos seguintes documentos:

I – carteira de identidade;

II – carteira de trabalho;

III – carteira profissional;

IV – passaporte;

V – carteira de identificação funcional;

VI – outro documento público que permita a identificação do indiciado.

Parágrafo único. Para as finalidades desta Lei, equiparam-se aos documentos de identificação civis os documentos de identificação militares.

Art. 3o O civilmente identificado por documento original não será submetido à identificação criminal, exceto quando:

I – estiver indiciado ou acusado pela prática de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documento público;

II – houver fundada suspeita de falsificação ou adulteração do documento de identidade;

III – o estado de conservação ou a distância temporal da expedição de documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais;

IV – constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações;

V – houver registro de extravio do documento de identidade;

VI – o indiciado ou acusado não comprovar, em quarenta e oito horas, sua identificação civil.

Art. 3º Embora apresentado documento de identificação, poderá ocorrer identificação criminal quando:

I – o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação;

II – o documento apresentado for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado;

III – o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si;

IV – a identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa;

V – constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações;

VI – o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais.

Parágrafo único. As cópias dos documentos apresentados deverão ser juntadas aos autos do inquérito, ou outra forma de investigação, ainda que consideradas insuficientes para identificar o indiciado.

Art. 4o Cópia do documento de identificação civil apresentada deverá ser mantida nos autos de prisão em flagrante, quando houver, e no inquérito policial, em quantidade de vias necessárias.

Art. 4º Quando houver necessidade de identificação criminal, a autoridade encarregada tomará as providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado.

Art. 5º A identificação criminal incluirá o processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação.

Art. 6º É vedado mencionar a identificação criminal do indiciado em atestados de antecedentes ou em informações não destinadas ao juízo criminal, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Art. 7º No caso de não oferecimento da denúncia, ou sua rejeição, ou absolvição, é facultado ao indiciado ou ao réu, após o arquivamento definitivo do inquérito, ou trânsito em julgado da sentença, requerer a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou processo, desde que apresente provas de sua identificação civil.

De forma salutar, como se pode reparar, a nova lei deslocou o foco da identificação criminal da conduta praticada pelo criminoso (o que permitia a identificação criminal nos casos de prática de determinadas espécies de crime), voltando-o para a identificação civil propriamente dita. Isto quer dizer que não importa, a princípio e objetivamente, o tipo de crime que cometeu o preso, investigado ou processado, se atestar a sua identificação civil com a apresentação de qualquer dos documentos arrolados no art. 2° da lei n° 12.037/09, será considerado civilmente identificado, não podendo ser submetido à identificação criminal.

Evidentemente que toda regra apresenta exceção. Com a nova lei não foi diferente. Admitindo situações em que o documento apresentado pode trazer indícios de falsidade ou possuir dados ilegíveis ou insuficientes, autorizou a lei que em tais circunstâncias a realização da identificação criminal. Fez idêntica previsão para os casos em que constarem nos registros policiais que o ora identificado já se utilizou de outros nomes ou diferentes dados qualificativos.

Outra grande inovação está no dizer inciso IV do mesmo art. 2°. Isto porque permite a identificação criminal mesmo quando o sujeito apresenta documento de identificação civil íntegro e inexistam registros policiais dando conta de utilização de nomes e dados qualificativos diversos. Sendo, pois, uma regra de exceção legal, dentro de uma exceção constitucional, somente poderá ser aplicada nos casos em que a identificação criminal seja essencial à investigação criminal.

Ao leitor desatento poderia parecer que caberia tanto à autoridade policial presidente da investigação, como ao Ministério Público na qualidade de titular da ação penal, tombar a identificação como "essencial", em cada caso concreto, e providenciar para que tal diligência fosse efetivada. Mas, na esteira do direito penal cada vez mais garantidor, atribuiu o legislador ordinário exclusivamente à autoridade judiciária o poder de autorizar a identificação criminal quando, por seu juízo valorativo, entender se tratar de caso em que a identificação criminal é essencial à investigação. Poderá fazê-lo de ofício ou atendendo a requerimento do Ministério Público, da autoridade policial e também do próprio defensor.

Para encerrar estas singelas considerações e sem a mínima pretensão de esgotar o tema, cabe novamente reconhecer a inteligência da lei quando, ao invés de somente disciplinar a exceção constitucional, foi além permitindo que o acusado solicite a retirada de sua identificação criminal dos autos de inquérito policial ou de processo penal nas hipóteses arroladas pelo art. 7° da recente lei.



[1]Código de Processo Penal - art. 6o  Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

VIII - ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível (...)

[2] Recurso No Habeas Corpus RHC 793 DF (TJDF).Conselho especial. Relator: Lúcio Arantes. Julgamento: 13/1/1977. Publicação: DJU 15/09/1977 pág. : 6.275 15/9/1977. Ementa: identificação criminal concede-se a ordem a fim de isentar o paciente de identificação criminal

[3] Identificação criminal. Está sujeito a identificação datiloscópica a que se refere o art. 6° VIII do C.P.P., mesmo quando identificado civilmente no distrito da culpa, o indiciado em inquérito policial. Precedentes: RE.EE.CRS. Ns. 82.345-SC., 82.269 - ES. E 82.661-DF. (sessão plenária de 29.10.75). Recurso extraordinário conhecido e provido.

[4]In CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 4ª ed. rev. São Paulo: Saraiva. 1999. p. 81.

[5]MIRABETE, Júlio Fabrini. Código de Processo Penal Interpretado. 5ª ed. São Paulo: Atlas. 1997. p. 47-8.

[6] http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=952&p=1