Virada Metodológica

Por Irzair Ciro Correa | 07/04/2010 | Filosofia

Virada metodológica1

Quando se fala de ensino-aprendizagem muita coisa já foi feita e falada nesse campo. Teorias incontáveis, propostas mirabolantes, planos inovadores que surgem como verdadeiras panacéias para o nosso tão sofrível sistema educacional. A forma como ontem se ensinava e era tida entre as moderníssimas teorias de ensino hoje já serve mais. As verdades propaladas em alto e bom som já não satisfazem as necessidades atuais e, portanto devem ser substituídas por outras cuja validade e utilidade se preste ao espírito do século.

A humanidade é pródiga em exigir novidades e quanto mais posse de tecnologia se detêm mais carentes se torna de elementos novos que possa suprir a saciedade insaciável dos novidadeiros. Em educação não é diferente. Uma teoria sempre suplanta outra rapidamente antes que a primeira seja implementada em todo seu esplendor de propostas metodológicas. Então temos a Escola Ciclada, CEJA, Ensino Médio Integrado, Ensino Médio Inovador. Todas as propostas são enviadas de cima para baixo por burocratas engravatados há muito longe da sala de aula ou que jamais pisaram em uma e cabe ao professor na ponta do processo e alheio ou alienado da discussão que gerou o projeto. Permanece, entretanto a dicotomia entre trabalho intelectual e o trabalho braçal e ainda quem pense que o professor não é um trabalhador braçal.

Não quero refazer a história do ensino, não é essa a tarefa a que me proponho agora e em todo caso me faltariam tempo e elemento para fazê-lo, mas quero fazer menção de quatro momentos importantes na arte do ensino que, ainda que distante, cronologicamente, entre si foram cruciais para o ensino, devido ao impacto que causaram ao sistema. A esses acontecimentos na falta de um nome mais adequado ou devido a minha falta de criatividade convencionarei chamá-la de "virada metodológica", talvez em parte por lembrar a "virada lingüística" protagonizada por Wittgenstein e o Circulo de Viena.2 Por ordem cronológica veremos a virada que aconteceu quando o ensino deixou de oral por conta do advento da escrita. O impacto causado pelo surgimento da imprensa de Gutenberg e depois a difusão do ensino para atender a necessidade do capitalismo emergente e por fim com o advento de novas tecnologias a imposição da cultura ágrafa imagética em detrimento das letras. É claro que será dada apenas uma visão panorâmica de cada fase, pois este escrito pretende ser um artigo sendo por isso a brevidade é um dos seus imperativos.

Antes da escrita a forma de transmissão de conhecimento era oral, passada de boca em boca, cabendo ao detentor do saber escolher o discípulo que lhe apetecia iniciar nos mistérios que era de seu domínio. Aedos e rapsodos, uma espécie de poetas declamadores ambulantes recitava em praça pública trechos dos poemas, mais tarde atribuídos a Homero, Ilíada e Odisséia3. Além do fato do mestre escolher aquele que seria iniciado no conhecimento, tinha ainda o agravante de que o iniciado era apenas um fiel depositário do saber do mestre4. Nem é preciso dizer a exclusão do processo educacional era total. Quase nem dá para falar em exclusão, visto que apenas alguns privilegiados chegavam a ter a honra. Educação estava na alçada apenas da aristocracia dominante e saber era produzido e transmitido nesse circulo restrito.

A escrita quebrou essa escrita, para ser um pouco engenhoso, porque possibilitou a difusão mais eficaz do saber permitindo que escritos de determinado autor fosse lido por uma geração que não era a sua, ampliando o leque de interpretações. Isso porque a escrita permite fixar o que foi falado para daquele que escreveu, ou seja, ela supera barreira geográfica e cronológica fazendo descortinar novos horizontes e criando novas categorias: o copista, o amanuense, o leitor e a possibilidade da crítica, a necessidade do rigor gramatical, levando em conta que o seu escrito seria lido por pessoas de outro contexto cultural. Na tradição oral, acredito que ninguém seria inconseqüente o suficiente para criticar o mestre. Mesmo sendo um avanço inegavelmente considerável, o advento da escrita não quer dizer necessariamente o "supra-sumo" da educação e ensino. Havia ainda o problema da difusão. Como fazer com que o saber produzido e escrito alcançasse o maior número de pessoas possíveis, era conveniente que tal coisa acontecesse ou a classe detentora de privilégios restringia essa possibilidade? Mas só o fato de manusear um papiro ou pergaminho escrito em outro lugar e a fixação de um saber que, no mínimo era mais duradouro, já representa um grande avanço.

O saber produzido nos grandes de excelência da sabedoria teve seu auge na distribuição com a invenção da imprensa por Gutenberg. Mesmo nas mais antigas universidades do mundo como Bolonha, Oxford, Cambridge e Pádua, que datam do século XII e XIII da era cristã, não dispunham de vastas bibliotecas. O conhecimento era produzido no interior da instituição e ali permanecia. As escolas monacais, palatinas e episcopais5 também produziam internamente seu próprio conteúdo para fins didáticos e para o desenvolvimento intelectual, mas este conhecimento produzido permanecia restrito aos muros da instituição. Não podemos ignorar que sempre existiu o livreiro, mas assim como não havia demanda, sua produção mal dava para atender os amigos.

A imprensa de Gutenberg possibilitou a maior circulação das obras em menos tempo e se tornou uma das maiores revoluções intelectual jamais presenciada na história da humanidade. Por causa de Gutenberg e sua imprensa a Bíblia deixou de ser privilegio dos clérigos; também por isso Kant leu Hume, que leu Descartes etc. No quesito difusão do saber a máquina foi e é um instrumento imprescindível. Com o advento do capitalismo surge a necessidade de mão de obra especializada e isso forçou as instituições de ensino a admitir em seus quadros o trabalhador que precisava de instrução para lidar com máquinas sofisticadas, aprender a administrar materiais de expedientes, entre outras funções que ele precisava desempenhar que exigia um grau maior de especificidade dado a sua complexidade. Por causa da imprensa foi possível o livro didático, fenômeno que permanece até os dias de hoje, mas já seriamente ameaçado de superação.

Vivemos na época da cultura ágrafa imagética. O que manda é a imagem. Daí o chavão "uma imagem vale mais que mil palavras". E vale. Para isso basta verificar o número de acessos nos sites de vídeos como youtube, onde aparecem a mais variadas gamas de produções de qualidade duvidosa. Até ai tudo bem o espaço cyber é espaço democrático por excelência. Na web tudo é permitido, sem exceção. Mas a questão é como isso compromete ou altera a questão da metodologia no ensino. Se o estudante perde a capacidade ler e lidar com textos me parece que o ensino aprendizagem está seriamente comprometido. Mas nem tudo está perdido. Pode se trabalhar com vídeos, charges ou utilizar outras formas de linguagens ou recursos visuais disponíveis. Há uma necessidade premente de capitalizar em pró da educação o que está disponível para todos. O educador deve na atual conjuntura aprender o internetês praticado pela maioria dos jovens no Orkut e MSN, saber lidar com as imagens cujas mensagens podem ser instrutivas ou não, mas geram debates formidáveis em torno de qualquer tema.

Da tradição oral a cultura ágrafa imagética, muito tempo se passou, só o que permanece é o desafio de fazer mais e melhor, algo mais duradouro e emancipador. Urge adaptar-se a novos tempos, novos conceitos e paradigmas, porque é só por isso que a vida vale a pena, nada está dado e definitivamente dado, antes, tudo está sendo e feito e desfeito para se refazer outra vez. Como diz a sabedoria sagrada "há tempo para tudo".

1 Irzair Ciro Correa. Professor de Filosofia na rede pública estadual e aluno de pós graduação em Questões Filosóficas Fundamentais na UFMT

2 A partir dos textos de Wittgenstein, mais especificamente do Tractatus Lógico-Filosófico deu inicio a uma nova investigação acerca da linguagem. Desse movimento surgiu a divisão entre a linguagem usada no cotidiano e a linguagem usada pelas ciências. Melhor dizendo, os estudos referentes a linguagem tinha por base essa divisão que seus autores chamaram de "Virada Lingüística". Vide Reale e Antiseri. História da Filosofia. Vol. VI pág. 315 e segs.

3 Vide Filosofando. Introdução a Filosofia de Maria Aranha.

4 Mesmo correndo o risco de cometer anacronismo foi isso que Paulo Freire chamou de "educação bancária". Onde o aluno recebe os depósitos feitos pelo professor e acumula isso como uma poupança que vai engordando, a avaliação é forma de saque

5 Cf Reale, Antiseri. História da Filosofia Vol II pág 121