Vida que vive da vida
Por Anderson Rodrigo de Oliveira | 24/11/2009 | ContosHoje acordei com aquela sensação estranha. Abrindo a janela, vi que o dia era revestido de chumbo. Nuvens pesadas, cara de chuva por vir, mas um mormaço, um sufoco quente que tornava a atmosfera irrespirável. Dias assim parecem querer dizer tanta coisa, mas nem somos capazes de vislumbrar o que se esconde por detrás desses momentos.
Poderia sair e caminhar um pouco pelas ruas do tranqüilo bairro. Daí iniciava-se a briga com a preguiça, com aquela prostração que insistia em soprar no ouvido: “fica no seu quarto, bobo! Não saia não! Olha o tempo convidativo para dormir”.
Dormir? Dormir como com um mormaço sufocante desse? Só de olhar para a cama dá uma impressão de que ela e os lençóis vão nos jogar longe. Com tanto calor, quem é que gosta de ficar “grudado” no outro? Melhor mesmo dar uma volta.
Saio do quarto, digo bom dia a todos sem a menor vontade de dizer. Tudo se desenrola numa automaticidade sem fim. Ainda entregue ao mecânico, sento-me para o café. “Espera lá” penso eu “não estou com a mínima vontade de tomar café”.
Levanto e saio deixando para trás os apelos da mãe para que tome o café e que leve, ao menos, um guarda-chuva. “Que chova! É bem isso mesmo que quero”. Penso comigo numa ânsia sem fim de quebrar aquela monotonia grudenta e pesada. Vou caminhando na rua com o pensamento de que a chuva venha e torne tudo ainda mais triste do que já está, mais tom cinza, mais sem vida.
Vida! Engraçado pensar na vida. Alguns dizem que a vida é a afirmação da morte. Por que a morte tem esse caráter tão negativo? Por que temos medo de morrer? Pensar na vida? E por que não pensar na morte?
Aí chego a uma conclusão: ninguém sabe nada da morte, só que é o encerrar de uma caminhada longa da vida. Por isso, muitos se empreendem em pensar no sentido da vida e deixam a morte para não ser pensada. Nem eu quero, nesse momento, pensar no que ela seja. Deixo apenas que ela possa vir como tem que vir.
Chego ao pequeno bosque no final do bairro. Até mesmo a natureza parece não estar com vontade de nada hoje. É uma angustiante conveniência com aquilo de mais intimo que trago, de mais interior da minha irritante inquietude. Os pássaros, que tanta algazarra fazem, parecem ter perdido a vontade de irritar os ouvidos da gente com seus estridentes cantares.
Dentro do bosque as coisas parecem mudar. Engraçada aquela sensação, mas o ar muda, as coisas parecem ganhar colorido. Tudo parece tornar-se mais leve e respirável. Deparo-me, por um instante, com as pequenas criaturas dali: o corre-corre das formigas, dos besouros e tantos insetos mais. Uma vitalidade e uma vontade das coisas que eu não conseguia encontrar neste dia. E a vida vai transbordando tanto à minha volta que começo a reparar em sons nunca antes sentidos: o ranger dos galhos das árvores balançando ao vento mostra-me um mundo que, para mim, era tão estático e sem vida.
Desse som começo a reparar no canto dos pássaros e já não acho que seja uma “algazarra” estridente, mas uma sinfonia alegre e plena de vida, uma conversa animada entre vizinhos de ninhos que ora parecem de amizade, ora de “vê se não entra no meu terreno de novo”. E é engraçado como a gente pensa nos outros animais com sentimentos que são próprios da gente. É um antropomorfismo que não revelamos somente em mitologias ou religiões desse tipo, mas parece-me uma busca de humanizar a própria natureza. Um sentimento de auto-afirmação da espécie humana. Por vezes, esse humanizar parece colocar o homem acima do natural. Por isso, esquecemos que somos parte de um sistema, de uma natureza, não seu dono.
Quando chego ao lago, a chuva desce para visitar a terra. Pela primeira vez não me incomodo com ela molhando meu corpo, não reclamo de senti-la. Fico olhando a terra umidecer-se, as marcas feitas na água do lago, o escorrer das gotas nalgumas folhas ali próximas. E a vida se transbordando ainda mais. Sinto algo diferente em mim e relembro uma frase guardada na memória: “a vida é o valor maior”.
Nesse instante comecei a entender porque se pensa muito mais na vida que na morte. É a vida quem nos possui, é ela que nos anima e impulsiona. E então começo a dar razões às lutas dos ecologistas e ambientalistas. Destruir a vida à nossa volta, é destruir a nossa própria vida. Somos parte de um todo, de um cosmos, que se interliga entre os seres viventes.
Comecei a sair daquele jardim com a alma e o corpo lavados. Já começava a entender que a vida é o presente, que o passado não temos e que o futuro é incerto. Diz uma passagem bíblica que não devemos nos inquietar com o dia de amanhã; o amanhã terá suas próprias preocupações; para cada dia basta o seu cuidado.
Cheguei a casa e comecei a notar um colorido diferente, expressado nos sons dos pássaros, no gotejar da água da chuva na calha do telhado, no ranger dos galhos das arvores. Fui adentrando em casa e já não sentia um clima pesado, sufocante, mesmo com as broncas da mãe por estar molhado e apressando-me a tirar aquela roupa molhada para não me resfriar. Vou para meu quarto apenas sorrindo de como a vida é muito mais grandiosa que qualquer chateação ou frustração. Lá dentro, o cheiro de terra molhada vindo de fora inundava o quarto. Tomei um banho, troquei a roupa e fui até a janela. A chuva já tinha parado, mas eu já não olhava para fora com a impressão de que tudo fosse pesado, sufocante, causticante. Só havia uma coisa ali que sufocava: a própria vida vivendo de outras vidas.