VENDA DE CRÉDITOS DE CARBONO...

Por Juciane Reis Ferreira | 19/04/2017 | Direito

VENDA DE CRÉDITOS DE CARBONO: mecanismo para o desenvolvimento sustentável ou mais uma forma de exploração capitalista?

Introdução

O mundo vivencia, neste momento histórico, uma crise sem precedentes, que ultrapassa a mera quebra de paradigmas comportamentais e mercadológicos que marcaram o século XX. Hodiernamente, as atenções se voltam não mais para a globalização econômica, mas para a internacionalização dos custos da degradação ambiental causada pelo desenvolvimento industrial e pelo aumento populacional.

Justifica-se a preocupação mundial com o problema, pois o que está em risco – mantendo-se ou elevando-se os níveis de crescimento irrefreado e irrefletido – é a própria sobrevivência em nosso planeta, não só de algumas espécies animal e vegetal, mas de toda a biota. Trata-se de uma crise ecológica em seu sentido acepcional mais amplo, vez que constitui uma crise ética, de valores, da relação do homem com o seu habitat. Não é sem razão que a proteção do meio ambiente vem ganhando espaço nos ordenamentos jurídicos de grande parte dos Estados contemporâneos.

O presente trabalho objetiva aclarar a nebulosa questão dos créditos de carbono. Tais créditos constituem uma das alternativas encontradas pelos países que adotaram a Convenção – Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, em 1992, para reduzir um dos efeitos da degradação do meio ambiente – quiçá o mais periclitante: o efeito estufa. Não temos a pretensão de esgotar o tema, haja vista sua vastidão e complexidade, mas tão somente colocar luz sobre um assunto pouco conhecido e debatido, embora fundamental para a sustentabilidade da vida no planeta. 

1 O Estado Ecológico 

A humanidade, ao longo de seu processo evolutivo, tem aperfeiçoado as formas de se organizar coletivamente: das tribos pré-históricas - passando pelas Cidades-Estado gregas, o imperialismo romano, o Estado Moderno (de matriz francesa), o Estado de direito do século XX – até ao que hoje Canotilho (2004, p. 4) define como Estado ecológico:

“(...) 1. O Estado constitucional, além de ser e dever ser um Estado de direito democrático e social, deve ser também um Estado regido por princípios ecológicos; 2. o Estado ecológico aponta para formas novas de participação política sugestivamente condensadas na expressão democracia sustentada. (...) A problemática jurídico-constitucional anda associada a questões da chamada sociedade de risco. Nos tempos mais recentes, a conformação do Estado constitucional ecológico aparece ligada às idéias de justiça intergeracional e de direitos de futuras gerações”. 

Verifica-se uma busca constante de conformação da organização social às demandas originadas pelo desenvolvimento industrial-tecnológico e suas conseqüências nem sempre positivas. A Revolução Industrial trouxe consigo a desconstituição de um modo de vida mais integrado com o meio ambiente e instaurou o sistema de produção liberal capitalista, que dividiu o mundo em dois pólos antagônicos: os países desenvolvidos (Sul) e os países dependentes (Norte). A degradação ambiental, que se verifica hoje em nível planetário, decorre diretamente dessa divisão e desse modelo de Estado, que privilegia os direitos individuais, a propriedade privada, a atividade econômica e a industrialização a qualquer custo sem levar em conta os danos ao meio ambiente e à própria ecologia social. O Estado ecológico defendido por Canotilho constitui uma proposta de superação desse modelo e instauração de um modo de conformação social mais integrativo e solidário.

Nesse contexto, de um Estado liberal capitalista, foram consolidados os direitos fundamentais do indivíduo presentes na maioria das Constituições dos Estados contemporâneos. O reconhecimento dos direitos fundamentais do homem constitui uma reconquista do status de que gozava o homem primitivo, quando a sociedade ainda não se encontrava dividida entre proprietários e não proprietários.

Hodiernamente, o que se busca é uma ampliação do rol dos direitos fundamentais para incluir o que Bonavides (2010, p. 569) chama de direitos difusos ou de terceira geração - ou seja, aqueles que têm como destinatários não o individuo considerado isoladamente, mas toda a coletividade - neles incluídos o direito ao meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado: 

(...) Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta (...). 

O desenrolar do processo civilizatório trouxe consigo o desenvolvimento do sistema de apropriação privada e suas conseqüências: opressões sociais e políticas, subordinação dos não-proprietários, degradação do meio ambiente, perda de direitos fundamentais como: igualdade, liberdade, eqüidade na distribuição dos bens entre outros. A implementação do Estado constitucional ecológico deverá promover o desenvolvimento fundado em bases de proteção ao meio ambiente e sustentabilidade no sentido amplo do termo: social, ambiental, econômico, tecnológico entre outros. 

  1.  A Sociedade global de Risco  

A situação de risco que humanidade vivencia hoje, no que diz respeito ao meio ambiente, é resultado da globalização que trouxe em seu bojo a proliferação de indústrias transnacionais causadoras de degradação ambiental. Assiste-se a uma transição da sociedade industrial para a sociedade de risco, caracterizada pela possibilidade real de destruição de todas as formas de vida no planeta. Essa característica encontra-se diretamente associada a um novo modelo de organização social baseada nas relações estabelecidas com o fenômeno da inovação (LEITE; AYALA, 2004, p.12). 

Dessa forma, os indivíduos assumem a responsabilidade e os riscos ao viverem e usufruírem os resultados da industrialização a partir do momento que aceitam viver em uma determinada forma de sociedade. Como bem define Thais Viegas (2007, p. 51. Do silêncio à crise: uma perspectiva do direito ambiental a partir da teoria da sociedade de risco. Disponível no site 

Na sociedade de risco, é preciso lidar com um novo tipo de conseqüências, aquelas que não foram previstas (BECK, 2003, p. 101) e para as quais a ciência não foi suficiente. Os riscos da Segunda Modernidade são inéditos, estão ligados a um excesso de modernização, e colocam em questão os programas institucionais de controle dos efeitos colaterais da tecnicização e da economização (BECK, 2003, p. 119). 

A responsabilidade ambiental, portanto, não pode ser assumida individualmente. É uma tarefa de todos - indivíduo, sociedade civil, governos – buscar mecanismos que mitiguem os resultados potencialmente desastrosos do desenvolvimento industrial-tecnológico. 

No contexto de uma sociedade global de risco, os danos ambientais deixaram de ser um problema isolado dos países mais industrializados e alcançaram escala mundial, requerendo soluções também de abrangência global. Nas palavras de Branca Martins da Cruz, “Os riscos que hoje ameaçam o homem e a sua sociedade são, não só, os mais variados, fazendo-se presentes em todos os domínios, naturais ou sociais, como, também, crescentes em gravidade e perigosidade.” (2008, p. 256). Diante da complexidade das relações que se estabelecem hoje entre as Nações, em que praticamente todas as fronteiras foram abolidas – haja vista o intercâmbio de informações possibilitadas pelos meios de comunicação e de transporte – faz-se necessário encontrar meios de distribuir os custos pelos danos ambientais. Trata-se de consubstanciar um direito internacional ambiental como defendem Morato Leite e Patrick Ayala: “Não obstante a inexistência de uma política globalizada sobre meio ambiente é incontestável a proliferação de tratados, declarações, convenções internacionais sobre proteção do meio ambiente, fazendo nascer um direito internacional do ambiente.” (2004, p.32).  A responsabilidade ambiental, portanto, não pode ser assumida individualmente. É uma tarefa de todos - indivíduo, sociedade civil, governos – buscar mecanismos que mitiguem os resultados potencialmente desastrosos do desenvolvimento industrial-tecnológico.  

3 O Protocolo de Kyoto 

As questões relativas às mudanças climáticas, aquecimento global e efeito estufa passaram a ocupar a partir da década de 80 um lugar de destaque no rol das ameaças ambientais que mais colocam em risco a integridade do planeta. O assunto das mudanças climáticas começou a ser debatido oficialmente em 1992, na conferência mundial sobre meio ambiente e desenvolvimento realizado no Rio de Janeiro (ECO/92).  As evidências científicas demonstram que são as atividades humanas, decorrentes do modelo de produção adotado desde a Revolução Industrial, um dos fatores decisivos para o agravamento dessas ameaças.

De fato, o desenvolvimento tradicional traz consigo graves problemas ambientais. Na América Latina – em especial nos países que albergam a floresta amazônica - o desmatamento persistente é responsável pela degradação do solo, deterioração da qualidade da água, risco crescente de desastres naturais, perda da biodiversidade e conflitos com comunidades tradicionalmente dependentes da floresta. Apesar disso, em virtude do baixo nível de industrialização e dos recursos naturais abundantes, esses países convertem-se em potenciais “exportadores” de créditos de carbono na forma estabelecida no Protocolo de Kyoto. O Brasil é reconhecido internacionalmente por possuir uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo. A produção de energia elétrica a partir de recursos hídricos e o programa de uso de biocombustíveis colocam o país na vanguarda da implementação do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo.

O Protocolo de Kyoto é resultado da Conferência das Partes nº 3 (COP-3), realizada em dezembro de 1997, na cidade de Kyoto, no Japão, com o objetivo de encontrar saídas para o problema ambiental do aquecimento global. Em 16 de março de 1998, referido documento foi aberto para assinatura. Como condição para entrar em vigor e produzir efeitos jurídicos, o Protocolo deveria ser ratificado por 55 países que respondessem por pelo menos 55% das emissões globais (Protocolo de Kyoto, disponível no site < http://www.mct.gov.br >, acessado em 16/10/2010). O tratado é de observância obrigatória pelos países signatários – mais de 140, correspondendo a 61% das emissões globais. Em fevereiro de 2005, com a assinatura do Presidente da Rússia, Vladmir Putim, o Protocolo atingiu o quorum necessário para tornar-se norma internacional (tratado).

De acordo com o Protocolo de Kyoto, os países do Anexo I (países mais industrializados, grandes emissores de CO2) ficaram obrigados a reduzir suas emissões de gases geradores do efeito de estufa (GEE) para que elas se tornem 5% inferiores aos níveis de emissão de 1990. A redução deve ser realizada entre 2008 e 2012.

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