Vamos Falar De Moda?

Por Luiz Carlos Cappellano | 29/11/2007 | História

O universo da moda é tido por muitos como algo volátil; o culto ao supérfluo e a hipervalorização do fútil e do transitório. Nesta linha de raciocínio, a discussão a respeito da moda fica apenas no âmbito dos designers, estilistas, top models e drag queens. Acredito que há uma outra aboedagem possível, que trata a moda como espelho da sociedade que a produz, uma abordagem sociológica e antropológica do fenômeno.

Em 1950 a então jovem doutoranda da USP, Gilda de Mello e Souza causou polêmica ao defender uma tese sobre moda, A moda no século XIX. Naquela época a tese foi tratada como uma espécie de desvio e que só foi aceito graças ao empenho do professor Roger Bastide, orientador de Gilda.

Esta tese veio a ser publicada com o título O espírito das roupas, pela Companhia das Letras em 1987 e, desde então, tornou-se meu livro de cabeceira. Haviam se passado 37 anos e o tema estava deixando de ser tabu.

Inicialmente a autora demonstra que a moda é uma arte. Tanto quanto a arquitetura ou a pintura - com as quais a moda guarda uma equivalência muito grande – a moda serve para compor o padrão estético de determinada época, podendo mesmo ser agrupada aos estilos que usamos para classificar a história da arte.

Existe uma equivalência estética entre as chaminés das fábricas e as cartolas dos burgueses, entre as cúpulas de vidro com armações de aço e as armações para as saias das burguesas.

Estas armações chamavam-se crinolinas e marcaram toda uma época: foram usadas de 1855 a 1870, em lugares tão diversos quanto a Nova Zelândia (assistam ao clássico filme O piano e vejam a protagonista fazer uma tenda com a sua anágua crinolina, sob a qual pernoitam ela e a filha) e o Brasil (assistam Mauá, o imperador e o rei e vejam May, interpretada por Malu Mader, entreter-se em girar a sua crinolina), a França e o México, os Estados Unidos (assistam ao clássico E o vento levou e vejam o quanto as crinolinas marcam o estilo do sul dos EUA) e as colônias européias da África e Ásia...Foi o primeiro modismo realmente universal e marca o momento em que surge a indústria da moda propriamente dita, uma instituição tipicamente francesa.

Existe uma historinha (que Gilda de Mello e Souza conta apenas por alto) que explica o surgimento das crinolinas e demonstra a ligação destas com a indústria: Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte, governou a França de 1848 a 1852 como presidente da República e de 1852 a 1870 como imperador. Ele era casado com a belíssima nobre espanhola Eugênia de Montijo, mulher de sangue quente e que detestava o desconforto produzido pelas 9 anáguas engomadas que eram usadas para armar as saias na corte.

Havia uma fábrica de espetos, em processo de falência, chamada PEUGEOT. Um belo dia de julho de 1854 a fábrica recebeu a ilustre visita da imperatriz que lhes trouxe um desenho seu de uma espécie de gaiola feita de finíssimos aros de arame de aço e que, desde então, tornaria a indumentária feminina muito mais leve e mais arejada, a crinolina.

A PEUGEOT foi salva da falência (após 1870 ela passou a produzir guarda-chuvas, depois bicicletas até chegar aos automóveis), a França tornou-se líder mundial inconteste no universo da moda e o nome da bela Eugênia passou a estar associado, para todo o sempre, às “maisons” de alta costura..

Apenas os que não necessitam trabalhar podem usar roupas pesadas e incômodas, a roupa reflete a condição social de quem a veste. Neste sentido, a moda espelha a luta de classes, que movimenta a história da sociedade.

Se pensarmos o Brasil da época do Império e na diferença que existe entre os trajes dos escravos que trabalham na lavoura e os escravos que residem na casa grande, veremos que a moda pode se dar ao luxo de operar diferenciações sutis: dentro da mesma categoria genérica escravos, ela pode matizar a melhor ou a pior condição social do sub-grupo que a está usando.

A diferença entre os trajes da senhora de classe média, a grande burguesa e a aristocrata não residirá tanto na forma adotada, mas na qualidade do tecido, nos detalhes do acabamento e na quantidade de tecido que foi usada. São necessários 12 metros de tecido para uma única saia, pregueada ou plissada, na era das crinolinas. A mesma saia, se for esticada sobre a anágua, gastará apenas 3,5 metros (o que era gasto para uma boa saia rodada de mucama, como podemos ver no traje típico das baianas, até hoje).

PRINCESA ISABEL

Foi o século XIX, a idade da burguesia, que instaurou a bipolaridade exagerada entre os sexos, a separação entre o universo do trabalho e o do lazer, entre o público e o privado. Nunca homens e mulheres estiveram tão distanciados e, portanto, nunca suas roupas foram tão diferentes... O grande capitalista ou o grande industrial usavam casaca preta e cartola (bem como os nossos barões da época do Império), enquanto as esposas, estas sim, se esmeravam em trajes cada vez mais complicados, de cores e texturas exuberantes... A mulher representa o marido, ela se ocupa da parte social, do lazer e do ócio, enquanto ele está emerso no universo dos negócios, não tendo tempo para preocupar-se com algo “fútil” e “improdutivo” como é a moda.

Na década de 1980 o historiador francês Philippe Perrot escreveu Lês dessus et lês dessous de la borgeoisie au XIX siècle , um livro de 340 páginas que é, em grande medida, a retomada mais aprofundada do trabalho que Gilda de Mello e Souza realizara 30 anos antes. Conheci o seu trabalho antes de conhecer O espírito das roupas , através do suplemento Cultura, do jornal O Estado de São Paulo (ano II, nº 61, domingo, 9 de agosto de 1981) e, na época, o julguei “revolucionário”.

Uma visão diferente, mais psicanalítica, foi mostrada também no suplemento Cultura (ano II, nº 100, domingo, 9 de maio de 1982) no artigo O fetichismo da moda , em que Anne Hollander, do New York review of books comenta o trabalho de David Kunzle.Nesta abordagem o espartilho é encarado não como símbolo de submissão mas de rebeldia, também fetiche erótico, que as mulheres usaram para “enfeitiçar” e dominar os homens, assim invertendo os papéis tradicionais de dominador e dominada.

Em janeiro de 1989 estiveram em exposição no Metropolitan, principal museu de Nova Iorque, as “roupas dos tempos da rainha Vitória”. À partir daquele momento, definitivamente a moda ganhou espaço entre as outras artes e deixou de ser apenas “amenidade”, assunto fútil para rodas de comadres...

Luiz Carlos Cappellano, 2001

Artigo Vamos Falar de Moda? in: FESB – Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista. Bragança Paulista. Revista GABARITO ano I, Edição 1, abril de 2005, pp 31-34..