Vá ter sorte assim no inferno

Por grijalva maracaja henriques | 17/12/2013 | Contos

VÁ TER SORTE ASSIM, NO INFERNO

      Para dona Atília, a vida na roça era uma espécie de castigo que Deus lhe dera e sem ela saber a razão. Era católica, apostólica dessas que cumpria zelosamente os seus deveres cristãos. Não considerava um pecado o mal estar que sentia vivendo na roça, isolada do mundo, assustada na solidão das noites intermináveis. O que desejava era, no entanto morar na cidade, no meio de muita gente, andando de casa em casa, tendo com quem conversar, ouvindo e transmitindo boatos e, quem sabe, falando da vida alheia.

     Por arte do capiroto não tinha filhos e o marido só lhe aparecia à hora das refeições, ocupado que andava, com os múltiplos afazeres da fazenda, donde retirava o sustento da casa. Argumentava constantemente com o seu Adonias sobre as vantagens de venderem tudo e mudarem-se para a cidade. Lá botariam uma bodega ou arranjaria um emprego na Prefeitura, fosse qual fosse. Ela é que não suportava mais o mato. Afora os domingos que ia a missa e as quatro festas do ano, o mais era internada naqueles cafundós de Judas. Não era vida de gente. Atanazava o homem a cada instante e fazia promessas a tudo que era santo, para convencer o marido a sair daquelas brenhas.

     - Mas, Atília, não sei fazer outra coisa. Não tenho jeito para o comércio e nem tenho letras para um emprego. Seria um desastre e mais cedo do que pensas, estariam pedindo a benção às ticacas. O que eu sei mesmo é plantar minhas roças e criar as vaquinhas e as cabras. É dai que sai a manutenção da casa. E depois gosto do campo, dessa vida que levo, sem dever nada a ninguém e aumentando meu pé-de-meia. Tenha santa paciência, mulher. Também nascestes na roça como eu e porque, agora, esse desespero para ires para a cidade?

     - Não suporto mais viver aqui neste sumidouro. Gostas, mas, eu não. Será que só pensas em ti. Que coisa!...

     - Olha, não saio daqui nem amarrado. Tenho juízo.

     E com pouco tempo a mulher anoiteceu e não amanheceu. Quando Adonias chegou em casa para o almoço, cansado e o estomago vazio, foi o lugar mais limpo que encontrou. Talvez a Atília tivesse ido à casa de algum vizinho. Mas logo percebeu que não havia nada para o almoço. E sentiu-se só e abandonado. Tomou de imediato, a resolução de não ir procurá-la. Faria falta, mas não daria o braço a torcer. Arranjaria outra. Foi à casa do sogro e comunicou o fato. Houve estarrecimento. Declarou que pensava que teria resolvido voltar para casa dos pais. Mas nem dera notícias.

     - Vai procurá-la.

-      Não, não irei. Sofreria certamente, nova decepção. Saíra porque quisera, sem nenhum motivo, sem discursão, sem nada. Apenas quis deixa-lo.

     - Certamente enlouqueceu.

     - Nada disso. Vivia batalhando para irmos morar na cidade. Não suportava a roça. Não tinha como sair. Resolveu ir só e foi. E agora, sozinho, nem sei como poderei viver. Sabe como é, a falta que faz uma dona de casa.

     - Ela vai voltar na certa.

     - Tenham santa paciência. Saiu, saiu. Comigo mais não. É uma pena, mais não há outro caminho.

     - Então, vamos fazer uma coisa. Venha fazer suas refeições aqui.

     - Seria ótimo, mas, pela distancia não dá.

     A Marina ouvia calada todo drama do cunhado e naquela simplicidade de roceira, sugeriu uma solução. Iria tomar conta da casa até que Adonias arranjasse uma caseira. Passo o dia e venho dormir em casa. E posso até dormir por lá mesmo. Já não sou nenhuma criança e seu Adonias é um homem direito.

     Adonias sentiu um calafrio na espinha. Uma mulher com aqueles olhos atrevidos e um corpão saliente daquele, só podia estar doida varrida.

     Adonias agradeceu e acrescentou que se “arranjaria de qualquer forma”.

     E a mãe tomou a frente: - Não havia problema. Seu Adonias era homem de toda confiança. Deveria ir mesmo substituir a irmã tresloucada no arranjo da casa. Não havia nada de mais.

     E como a velha era quem mandava e desmandava em casa, o marido não deu pitaco, embora estivesse claro que nem Nosso Senhor evitaria o desmantelo. Pobre coitado, sem voz ativa, baixou a crista e lá se foram Marina e seu Adonias, na maior tranquilidade aparente, os dois pensando na mesma coisa.

     Em casa, jantaram, conversaram e já meio tarde recolheram-se. Logicamente nenhum conseguia adormecer. E lá para as tantas da noite, Marina chamou Adonias, com a voz tremula e assustada.

      Seu Adonias, estou com medo, seu Adonias.  Nunca dormi sozinha. O que é que faço?

     - Acalme-se, criatura. Nesta casa nunca se viu assombração.

     - É mais estou com tanto medo...

     E logo em seguida já estava no quarto do cunhado.

     - Vou me deitar aqui do lado, mas não bula comigo.

     - Nem se preocupe.

     E pouco demorou, Marina foi-se encolhendo e encostando-se ao Adonias. E o medo foi aumentando, aumentando de tal forma que Marina agarrou-se com Adonias.

     -Tem coisa aqui no quarto, homem. Me cubra com seu cobertor, senão morro de medo.

     E com pouco tempo o medo acabou-se. E Marina dormiu até o dia clarear.

     - Está vendo o que você fez sinha medrosinha. Eu bem disse que aqui não havia assombração.

     - O culpado foi você. Eu só fiz me encostar com medo. Tinha nada de mais. Mãe disse que você era de confiança. E nem foi nem nada. E agora como é que eu vou pra casa já assim em duas bandas... Não se pode mais confiar em ninguém. Levei todo esse tempão e nunca me aconteceu nada. Vou fugir também, procurar minha mana.

-      Assim, não. Dissestes que vinhas para o lugar dela.

     - Mas somente para o arranjo de casa.

     - É. Eu bem que te disse que não tinhas que ter medo. Medo é uma coisa danada. A pessoa fica sem saber o que faz. A culpa foi somente tua, com as tuas besteiras. Agora o galo já cantou e é esperar que cante novamente.

     E as horas foram se passando, sem o galo cantar.

     - Ou Adonias, que galo danado de preguiçoso é esse? Será que só canta uma vez? Se for assim, vou já voltar para casa.

     Cerca de um mês e meio a Atília bateu em casa dos pais. Vinha desfigurada, com ar de desiludida. Procurou pela irmã. Seria o seu consolo, sua confidente. Tinha muita coisa para dizer-lhe. A cidade não era o que ela pensava. Lá ninguém nem ao menos olhava para ela. Era uma espécie de bruxa. Andava de léu em léu, sem arrimo e sem consolo. Pedia emprego: - Não empregamos gente desconhecida. Teve vontade de cair na gandaia, mas não era isto que queria. Não era isto o que pretendia.

     - Mas onde anda Marina. Será que também caiu na burrada de fugir como eu?

     - Nada disso. Anda em casa de Adonias que deixastes sozinho, sem alguém para fazer-lhe a comida e arranjar a casa.

     - Na casa de Adonias? Vou já buscá-la. No meu lugar. Que desavergonhamento. Então foi somente eu dar as costas, meteu-se com aquele sabidão. Aposto que foi ele quem a iludiu. Aquilo não vale nada. Mesmo assim é meu marido.

     - Não vais a parte nenhuma. Se querias um marido. Deverias ter ficado com ele. Agora que os dois estão se dando muito bem, não irás atrapalhar mais uma vez a vida do homem.

     - Não está vendo que isso não pode dar certo. Uma moça solteira, sozinha com um homem descarado. Como foi que a senhora concordou com semelhante disparate.

     - Nada de disparate. Adonias é um homem respeitador, correto. Depois que a menina foi para lá, não nos tem faltado nada. No teu tempo, nem te lembravas de que a gente era viva. Deverias era agradecer à tua irmã. Adonias sempre te tratou muito bem. Foste tu que o abandonastes só pela mania de ir para a cidade. Agora está ai em que deu a cidade. Não tens marido, não tens casa e a cidade muito menos.

     - Vou, vou lá de qualquer, maneira. Fique ou não fique.

     - Adonias já disse aqui que nem queria mais ver-te. Saístes sem motivo, ganhastes o mundo e ele não vai te aceitar de volta, nem transformada em joia. Fica quieta ai e deixa tua irmã sossegada.

     - Não está vendo que não pode ser. Está na certa dormindo com ele. Mande pelo menos chamá-lo.

     - Vou mandar, vou mandar.

     Marina chegou, desconfiada e medrosa de que viessem suspeitar do que estava acontecendo. Mas se apertassem, colocaria logo os pontos nos is. Não tinha mais jeito a dar e nem tinha culpa. Não estava habituada a tais situações e o diabo atiçou o braseiro. A mana saíra por que quisera. Culpa exclusiva dela que, ainda, por cima, motivara sem querer e sem pensar, o encontro dos dois. Coisas da vida. Agora era aguentar o jogo de cintura. Felizmente sabia que não havia pegado nada. Na certa seu Adonias era estéril. E boa sorte.

     - Onde andas sinha desavergonhada. Tomastes o meu marido, não foi? Pois não voltaras mais para lá. Quem vai voltar serei eu, eu, ouvistes.

     - Não ouvi nada. E de lá não saio e nem Adonias te quer. A cidade é o teu lugar. E o que andou fazendo por lá. Muita baboseira, por certo.

     - Não passas de uma descarada! Vivendo com o marido alheio. Onde foi que já se viu semelhante falta de vergonha. E logo o marido de tua irmã.

     - Estás enganada. Não vivo com teu marido. Apenas sou medrosa e durmo com ele, mas não acontece nada, nada mesmo. Que falta de confiança, meu Deus. Quem quer marido não o larga. De lá não vou sair, a menos que o Adonias me mande embora.

     - Pois te fica lá com aquele matutão brocoió. E digas a ele que não me bote às pranchas aqui. Não quero vê-lo. Uma zebra que nem gerar filho gera.

     - Então, está muito bom para tua irmãzinha inocente. Até logo, mana. E anda direito senão o Adonias te pega.

      - Verás depois..., o que vai te acontecer. Fui uma estúpida. Não acreditava no que me dizia Adonias. Cidade não enche barriga de ninguém. Nosso lugar é aqui mesmo. Agora sou a criatura mais infeliz do mundo. Estou como saí. Não fui desonesta. E daqui por diante, continuarei como sempre fui. Não mereço nada de ninguém. Vou para o campo ajudar papai. Cuidar das lavouras, engrossar as mãos e chorar minha desdita.

     Marina voltou e na volta chorou a má sorte da irmã. Não queria que ela visse nem soubesse.

     - Por onde andavas Marina. Já pensava que havias fugido como a Atília. Seria o fim de minha vida.

     - Fui ver Atília, em casa do papai. Chegou de não conhecer. Magra, desconsolada, chorosa, arrependida, aniquilada. Queria vir te ver, mas teve medo. A cidade era uma ilusão. Não consegui trabalho, não se misturou com ninguém e voltou pura como saiu. Sabes que sempre foi honesta. Não foi isto mesmo? Tenho muita pena. Eu não tenho o direito de tomar o seu lugar. Caí nos teus braços como uma borboleta atraída pela luz. Acho que estava fora de mim. Não me arrependo dos nossos encontros e nem quero sair fora deles. Não teria mais jeito, nem adiantaria nada. O que tinha para quebrar, já quebrei. Ninguém emenda mais. E o que pensas de tudo isto. Tenho pena de minha irmã, muita pena mesmo. Ela está ansiosa. Mulher quando vira mulher não pode mais fugir do “bicho papão”. Enquanto não arrebenta os ponteiros da gaiola não sossega. Atília está assim, notei pelo jeito de olhar e de morder os lábios constantemente, como quem está sentindo uma secura. E é assim que a gente se perde.

     Marina calou-se e começou a chorar. Adonias parecia impassível e perplexo. Tantos anos juntos com aquela mulher, lembrando-se da vida que levaram até quando Atília endoidara pela cidade. Lembrava-se dela moça ainda ao seu lado, ofegante e tremula como uma juriti presa numa arapuca. Agora estava só, esperando por ele e sabendo que a irmã lhe tomara o lugar em todos os recantos da casa. E era duro, cruel, pensar à noite que Marina, sua própria irmã dormia ao seu lado e ela acompanhando tudo que deveria estar se passando com os dois.

     - Vamos lá Marina.

     - Vamos, sim, com uma condição. Eu fico lá e ela vem.

     - Não e não. Não vou te deixar, nunca. Salvo se estás arrependida e não me queres mais.

     - Nada disso. Nem morta, me arrependeria. Mas Atília é minha irmã e esta arrependida e sofrendo horrivelmente. Bem sabes o que é um desejo insatisfeito.

     Entraram os dos e surpreenderam Atília chorando, debruçada na mesa. Assustou-se com a presença dos dois e permaneceu calada como se houvesse perdido a voz. Lentamente ergueu a cabeça e olhou para Adonias e voltou a chorar as suas desilusões.

     - Como vai Atília?

     - Tão amargurada quanto se podia pensar. Meu único consolo é estar ao lado dos meus, depois de sentir-me perdida onde pensava encontrar a felicidade. Vaguei como uma desesperada passei fome e dormi de caridade com vergonha de voltar. As noites mais longas de minha vida e os dias mais tormentosos que se poderia imaginar.

     - E o que queres fazer, Atília?

     - Quem fez o que eu fiz, não tem mais nada para querer. Morrer aqui, trabalhando na roça. E ainda me parece muito pouco para quem errou tanto.

     Adonias amoleceu. Não esperava tanta imaginação daquela mulher que era tão cheia de vontade e tanto sonhava com uma vida de fantasias.

     - Como é. Queres ir para tua casa? Tua irmã quer voltar. Foi-me muito útil e amiga. Tomou o teu lugar e não poso ser ingrato com ela. Nos momentos mais desesperadores por que passei, amenizou o meu constrangimento. Assim vocês duas decidam.

     - Olha Adonias, é Marina quem merece.

     E estabeleceu-se a contenda. - Você vai e eu fico a vez é sua; - e não saía uma solução. Enquanto isso, Adonias mantinha-se na expectativa, imaginando o que iria acontecer, se as duas não se decidiam. Pelo visto nenhuma queria ficar e o jogo de cintura era somente gentileza. E para que a coisa não se encompridasse mais, Adonias com a maior fleuma fez uma sugestão: uma vez que estão nessa dúvida que parece não ter fim, talvez eu possa dar uma solução, bem entendido, se aceitarem.

     - Qual, qual, - falaram as duas ao mesmo tempo.

     - É simples. Vão as duas. Tenho farinha e feijão para sustentá-las.

     E as duas se entreolharam como se se consultassem com os olhos. E a resposta veio em cima da fivela.

     - Muito bem, muito bem. Homem é quem sabe resolver as coisas. Mas será mesmo, Adonias, que darás conta das duas?

     - Vai-se ver. Depende do trato que me derem e do calendário...

     E dentro de meia hora, já estavam no caminho e na maior alegria da vida.

     E Adonias, o espertalhão, nem sabia pra onde se virar. E as duas fizeram um acerto. Um dia, o arranjo da casa, o outro, Adonias. E nesse revezamento, nunca se viu tanta harmonia, nem tanto bem querer. E Adonias mandou celebrar uma missa de ação de graças pela volta de Atília e a permanência de Marina. E assistiu-a ajoelhado do começo ao fim. Vá ter sorte assim no inferno.

João Henriques da Silva

(In Memoriam 20/09/1901 – 16/04/2003)

 

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