USUCAPIÃO FAMILIAR E AS IMPLICAÇÕES DA INTERPRETAÇÃO LITERAL DA EXPRESSÃO ''ABANDONO DE LAR''...

Por Anna Caroline Barros Costa | 06/06/2017 | Direito

USUCAPIÃO FAMILIAR E AS IMPLICAÇÕES DA INTERPRETAÇÃO LITERAL DA EXPRESSÃO “ABANDONO DE LAR” ACRESCIDO NA LETRA DO ART. 1240 – A DO NOVO CÓDIGO CIVIL.

Anna Caroline Barros Costa

Magsom Quinco Lima Meneses

 

1 Introdução; 2 Usucapião, requisitos e efeitos; 2.1 Usucapião Familiar; 2.1.1 Análise da lei nº 12.424/11 em seu parágrafo 9º que inseriu a modalidade de usucapião familiar, bem como seus requisitos; 3 Os problemas gerados pela elaboração equivocada da letra do art. 1240-a do código civil brasileiro; 3.1 A Emenda Constitucional 66/10 e a Usucapião Familiar; 4 Conclusão; Referências

 

 

RESUMO

A modalidade de Usucapião Familiar é termo ainda recente na doutrina, por essa condição este é bastante controvertido, carregando consigo vários debates acerca. A literalidade da expressão “abandono de lar” acrescido no artigo é considerado como alvo de incoerências, o problema reside no fato de o assunto poder ser tratado em dois âmbitos diferentes, tanto o Direito de Família, quanto os Direitos reais poderiam versar sobre este, a depender da interpretação dada ao mesmo, há divergências também quando o assunto é avanços e retrocessos da inserção dessa expressão no artigo 1240 do Código Civil. Diante do exposto, faz necessário saber quais as implicações da interpretação literal do termo “abandono do lar” no artigo pode provocar e a suas possíveis inconstitucionalidades, para tanto se percorrerá um caminho pretendendo demonstrar de forma geral as suas modalidades salientando os aspectos principais da Usucapião Familiar, quais sejam: os seus requisitos e finalidades, destacando as possíveis inconstitucionalidades presentes no Art. 1240 – A, estabelecendo uma conexão entre tal artigo e os princípios constitucionais, bem como expor o nexo existente entre a Emenda Constitucional 66/10 e o Usucapião Familiar que supostamente motiva a atribuição de sanção patrimonial à um dos cônjuges durante o processo de separação, que acaba por acarretar a ideia de culpa na relação conjugal, apresentando argumentos que corroboram com tal afirmação e posições que afirmam que o Usucapião Familiar não deve ser interpretado com base no abandono da família e sim do imóvel em si.

 

PLAVRAS-CHAVES: Usucapião Familiar. Abandono de lar. Inconstitucionalidades.

 

1 INTRODUÇÃO

 

O termo usucapião familiar é algo que foi recentemente introduzido na doutrina, para se analisar tal modalidade é de suma importância esclarecer que o debate acerca do mesmo, se dá por se discutir principalmente se a expressão “abandono de lar” deverá ser interpretada a partir do âmbito do Direito da Família, relacionando - se, portanto à uma penalidade patrimonial atribuída ao cônjuge que por vontade própria, alterou o curso do matrimônio, ou se deve ser interpretada com base nos Direitos Reais, tirando o enfoque da família, transferindo o sentindo da expressão ao abandono do bem em si, nessa hipótese não haveria o que se discutir, uma vez que “supostamente” quem abandona o bem está rejeitando-o, o senso comum corrobora com tal afirmação.

 Entretanto o presente paper tem o intuito de demonstrar que independentemente do sentido atribuído à polemica expressão em destaque, é fato que o art. 1240  - A, acrescido pela lei 12.424/2011 que regula o programa Minha Casa Minha Vida, no Novo Código Civil, e que tinha por finalidade dar segurança ao cônjuge que se manteve na posse no imóvel juntamente com os prováveis filhos do casal, para que futuramente estes não ficassem desamparados, não atingiu com êxito os seus objetivos, gerando mais discussões que soluções.

O debate acerca da nova modalidade de Usucapião criada pelo artigo supracitado estaria então em uma “via de mão dupla”, uma vez que por um lado a lei está ai para garantir a tal segurança para o cônjuge que ficou no imóvel, regularizando a situação da posse e adquirindo a sua propriedade, por outro lado ela faz ressurgir uma ideia já superada pelo Direito de Família, que seria a tão comentada culpa quanto à dissolução do matrimônio, visto que a intervenção do Estado no processo de separação foi consideravelmente reduzida com o advento da Emenda Constitucional 66/10. Entende-se nesse caso que o tempo necessário para haver a Usucapião Familiar é muito curto, e a perda da propriedade do imóvel para o cônjuge que cessou a posse para o outro é uma sanção injusta caso seja levado em conta os reais motivos para tal feito.

É perceptível que o assunto merece ser estudado, tendo em vista que há pontos relevantes que devem ser conceituados e analisados para que haja a compreensão do assunto, tais como os conceitos de posse e propriedade, o regime de bens no casamento, as injustiças cometidas para com o cônjuge que pela lei “abandonou o lar”, as implicações da interpretação literal de tal expressão, dentre outros assuntos que serão aprofundados ao longo da construção da presente pesquisa. 

 

2 USUCAPIÃO, REQUISITOS E EFEITOS

 

Inicialmente é necessário analisarmos o sentido da palavra usucapião, esta provém do latim “usacapio”, capio, capere siginifica tomar, enquanto que usu é uso, sendo assim usucapião é tomar pelo uso alguma coisa. A usucapião é considerada uma espécie de aquisição de propriedade ou de qualquer direito real, este por sua vez se dá pela posse prolongada da coisa em questão, obedecendo aos requisitos estabelecidos em leis, em tese são coisas hábeis ou suscetíveis de usucapir, posse, e um tempo prolongado de exercício da última.

Existem algumas modalidades de usucapião, podendo estas recaírem sobre bens móveis ou imóveis sendo estes discriminados em três espécies: extraordinário, ordinário e especial (rural e urbana),a usucapião indígena, prevista na Lei n.º 6.011/73, também é uma modalidade especial, no entanto, devido a sua especificidade, não a abordaremos neste item, assim como a usucapião coletiva. A Usucapião extraordinária, prevista no artigo 1.238 do Código Civil, tem como requisitos a posse ininterrupta de 15 (quinze) anos, exercida de forma mansa e pacífica com ânimo de dono, que poderá ser reduzida para 10 (dez) anos nos casos em que o possuidor estabelecer no imóvel a sua moradia habitual ou nele tiver realizado obras e serviços de caráter produtivo.

 A usucapião ordinária está prevista no artigo 1.242 admitindo como requisitos a posse contínua, exercida de forma mansa e pacífica pelo prazo de 10 (dez) anos, o justo título e a boa fé, reduzindo esse prazo pela metade no caso de o imóvel "ter sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante em cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico", nos termos do artigo 1.242, parágrafo único do CC, Washington de Barros Monteiro resume:

 

Os pressupostos do usucapião ordinário são, pois, posse, decurso de dez ou cinco anos, justo título e boa-fé. No tocante ao primeiro, preciso se torna que a posse seja contínua e incontestada. [...] Perdida a posse, inutiliza-se o tempo anteriormente vencido, máxime se o prescribente não logrou recuperá-la. Em segundo lugar exige-se o decurso de tempo, dez anos, ou cinco anos, nas hipóteses previstas no parágrafo único do artigo 1.242 do Código Civil. [...] O terceiro requisito é o justo título, o fundamento do direito. Com relação ao domínio, vem a ser o negócio jurídico pelo qual se adquire ou se transfere a propriedade. Exige a lei que o título seja justo, isto é, se ache formalizado e devidamente registrado [...]. Finalmente, o último requisito do usucapião ordinário, quiçá o mais importante, porque valoriza e moralmente dignifica o usucapiente, é a boa-fé, vale dizer, a crença de que realmente lhe pertence a coisa possuída. É a certeza de seu direito, a confiança inabalável no próprio título, sem vacilações, sem possibilidade de temperamentos ou de meio-termo (MONTEIRO, 2003. p.125-127)

 

A usucapião especial surgiu espontaneamente a partir do desenvolvimento do conceito de propriedade como integrante da ideia de função social, estão previstas nos artigos 1239 e 1240, usucapião especial rural e usucapião especial urbana, respectivamente. A constituição estabeleceu que aquele que não sendo proprietário de imóvel urbano ou rural, possuir como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. A usucapião especial rural ou pro labore admite como requisitos, a posse de 5 anos da área a usucapir, sendo esta posse com animus domini, sem oposição e sem interrupção, a área rural não deverá ser superior a 50 hectares, o usucapiente não poderá ser dono de outra propriedade, seja ela, rural ou urbana e ainda que a propriedade seja destinada a produção e moradia. 

Quanto a política de desenvolvimento urbano, a Constituição Federal previu a usucapião especial urbana. Assim, aquele que, não sendo proprietário de imóvel urbano ou rural, possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, assim percebe-se que os requisitos para esta espécie são praticamente idênticos ao da rural, o que muda é o tamanho da propriedade.

A respeito dos requisitos faz-se mister salientar que todas as modalidades de usucapião apresenta três requisitos que são essenciais, portanto indispensáveis, quais sejam: o tempo, a posse mansa e pacifica e o animus domini, aquele que se destina a usucapir a coisa. No tocante a usucapião ordinária adiciona-se ainda o justo titulo e a boa-fé, de usucapião urbana o requisito da moradia, e o requisito do trabalho na usucapião rural, os demais requisitos já foram supracitados quando da abordagem de cada modalidade, é valido lembrar também que para a maioria da doutrina a usucapião é uma aquisição originária, porque não se demonstra vinculo de possuidor atual com o anterior.

 

2.1 Usucapião Familiar

 

A usucapião familiar é uma modalidade até então considerada nova no Brasil, este é um termo que deriva do usucapião especial, e foi introduzida pela força da lei nº 12.424/11, que regulamenta o programa de governo Minha Casa Minha Vida, inserindo no Código Civil também a possibilidade um cônjuge usucapir, para tanto faz-se mister transcrever o artigo 1240-A, vejamos a seguir.

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. §1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

 

Assim também ver-se claramente os requisitos para que tal modalidade ocorra, são eles o imóvel urbano ter área inferior a 250 m²; Ocorrer abandono de lar por um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros; Exercício de posse pelo menos dois anos a partir do abandono do lar, sem oposição; A parte requerente não ser proprietária de outro imóvel urbano ou rural; A parte requerente não ter sido beneficiada pelo mesmo instituto ainda que no âmbito de outra relação afetiva, ou seja, só poderá ser reconhecida uma vez.

Um dos fatos mais curiosos que a nova modalidade introduziu foi a redução do prazo, considerado o menor, dentre as modalidades de usucapião, superando inclusive, o prazo para usucapião de bens móveis equivalente a três anos. Faz-se importante atentar para o regimes de casamento, a usucapião familiar somente terá aplicação quando se tratar de imóveis que seja de propriedade de ambos os consortes e não bens particulares de cada um deles, observados todos os requisitos, o cônjuge que permanecer na imóvel, ganha o direito de usucapir o imóvel.

Há que se falar que é de suma importância para se caracterizar tal modalidade o abandono do lar, por diversas vezes, esta expressão será acertadamente vinculada ao termino da vida conjugal do possuidor, porém este é assunto controvertido que será esclarecido posteriormente, visto que não se sabe quando se caracteriza o fim do relacionamento, e se as possíveis intervenções configura interrupção da contagem de prazo, sobre isso enfatiza Amorim.

O prazo há de iniciar sua contagem sempre após o abandono do lar por um dos consortes, precedida ou coincidente com o fim do relacionamento afetivo. Esta frase não exclui a possibilidade de interrupções do prazo, mas de qualquer forma o prazo só correrá após a separação. É por esta razão que o dispositivo é tão importante para o direito de família, já que seu principal âmbito de discussão será nas ações de partilha de bens vinculados ao divórcio, dissolução de união estável ou herança. Ou seja, a norma há de ser aplicada, mais comumente nas Varas de Família e Sucessões.(AMORIM, 20[?], p.[?])

 

Uma das principais criticas que se tece acerca da usucapião familiar, é que esta reabre a discussão sobre a causa do termino do relacionamento afetivo, devendo o abandono do lar ser de forma espontânea, abrindo margem para um possível discussão sobre o instituto da culpa, suscitando ainda as polêmicas sobre as expressão abandono do lar, questões essas que serão enfrentadas posteriormente.

 

3 OS PROBLEMAS GERADOS PELA ELABORAÇÃO EQUIVOCADA DA LETRA DO ART. 1240-A DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO

 

É fato que o art. 1240-A, no Novo Código Civil, e que tinha por finalidade dar segurança ao cônjuge que se manteve na posse no imóvel juntamente com os prováveis filhos do casal, para que futuramente estes não ficassem desamparados, não atingiu com êxito os seus objetivos, gerando mais discussões que soluções.

O debate acerca da nova modalidade de Usucapião criada pelo artigo supracitado estaria então em uma “via de mão dupla”, uma vez que por um lado a lei está ai para garantir a tal segurança para o cônjuge que ficou no imóvel, regularizando a situação da posse e adquirindo a sua propriedade, por outro lado ela faz ressurgir uma ideia já superada pelo Direito de Família, que seria a tão comentada culpa quanto à dissolução do matrimônio, visto que a intervenção do Estado no processo de separação foi consideravelmente reduzida com o advento da Emenda Constitucional 66/10. Neste mesmo sentido, o especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil Ricardo Henriques Pereira Amorim, elucida a questão da culpa:

Colimando a pretensão social ao expurgo da culpa do direito de família e a mens legis voltada à Justiça Social, temos que o abandono de lar deve ser analisado sobre a vertente da função social da posse e não quanto a moralidade da culpa pela dissolução do vínculo conjugal. Ou seja não é de se analisar se o abandono de fato caracterizou culpa, ou se a evadir-se foi legítimo ou até mesmo urgente. Buscará apenas qual dos dois permaneceu dando destinação residencial ao imóvel e pronto, independente da legitimidade da posse e do abandono. Importante, neste ponto ressaltar que o legislador não exige demonstração de boa-fé ou posse justa. Um exemplo, discutível por questões éticas, é da mulher que, sendo agredida, abandona o lar para cessar a violência. Ela deixa escoar dois anos sem questionar (judicial ou extrajudicialmente) a propriedade ou a posse do agressor sobre o imóvel. Não há nada de culposo no ato da mulher, mas uma vez que o agressor estaria dando ao imóvel sua destinação social, a ele caberia a propriedade integral, excluindo o condomínio da violentada. (AMORIM, 2011, p. [?]).

 

Destarte, verifica-se que fica evidente a maneira que a ideia de culpa influencia o instituto da usucapião familiar, o que acaba tornando o processo ainda mais complicado, visto que tal fato irá consequentemente gerar ainda mais litígios.

Entende-se ainda nesse caso que o tempo necessário para haver a Usucapião Familiar é muito curto, e a perda da propriedade do imóvel para o cônjuge que cessou a posse para o outro é uma sanção injusta caso seja levado em conta os reais motivos para tal feito.

Incialmente verifica-se que o prazo estipulado para que ele se concretize é ínfimo, visto que o período de 2 anos é crucial para que o casal continue ponderando acerca de uma possível separação definitiva. Com base nesse fato pode-se estabelecer a primeira violação da modalidade de usucapião aos princípios constitucionais, visto que a própria Constituição Federal, no inciso LIV, diz que ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal, destarte, observando os requisitos para que ocorra a perda de propriedade do cônjuge que “abandonou o lar”, conclui-se que estes são requisitos fracos e arbitrários pra um instituto que tem efeitos que afetarão potencialmente a vida de todos os envolvidos. De acordo com as reflexões do Prof. Marcos Ehrhardt Junior, expostas em um artigo elaborado pelo Doutor José Fernando Simão, é importante abordar o prazo da usucapião familiar sob um ponto de vista crítico, conforme ele fala a seguir:

Uma segunda questão diz respeito aos prazos. Isto porque o art. 1240 do CC (que reproduz o artigo 183 da Constituição) exige um prazo de 5 anos para usucapião e a usucapião familiar fala apenas em 2 anos. Pergunta o Prof. Ehrhardt: "O separado de fato terá mais vantagens do que aquele que ainda vive com sua família?". A resposta é a seguinte: para a usucapião em face de terceiros prossegue o prazo de 5 anos, já para a usucapião entre cônjuges prevalece o prazo de 2 anos.  Assim, se João casado com Maria adquirem o imóvel de José e deixam de pagar as prestações. José nada faz.  Após 5 anos, seno o imóvel urbano de no máximo 250m2, e o único da família, haverá a possibilidade da usucapião pelos cônjuges em face de José. Por outro lado, para João ou Maria usucapir a metade do bem que pertence ao outro cônjuge, é necessário apenas período de 2 anos após a separação de fato ou de direito do casal.  A lei presume, no meu sentir de maneira equivocada, que quando o imóvel é familiar deve o prejudicado pela posse exclusiva do outro cônjuge ou companheiro tomar medidas mais rápidas, esquecendo-se que o fim da conjugalidade envolve questões emocionais e afetivas que impedem, muitas vezes, rápida tomada de decisão. É o luto pelo fim do relacionamento. (EHRHARDT apud SIMÃO, 20-?,  p. [?]).

 

Atenta-se ainda para o fato de que a expressão “abandono de lar” foi utilizada de maneira equivocada pelo legislador, uma vez que ela poderia ser facilmente substituída por abandono de posse, dessa forma não haveria porque haver um retrocesso no direito de família trazendo a tona um conceito já superado por este, que atualmente, tem visado afastar a atribuição de qualquer culpa no processo de separação. 

Faz-se mister salientar, que a Usucapião Familiar é amplamente considerada como sendo um caso de retrocesso social, sendo este, estritamente vedado, visto que não pode haver interferências que comprometam a eficácia dos direitos sociais, tais como o direito à saúde, a moradia, a educação dentre outros. O principio da vedação do retrocesso social resulta em uma maior segurança jurídica, de modo que a preservação da dignidade da pessoa humana permeia todo o seu conteúdo, pois os direitos sociais estão em efetivo progresso, seria arbitrário afetar aquilo que fora conquistado ao longo de todos esses anos, sendo que a própria Constituição Federal tem por finalidade assegurá-los. No tocante ao conflito entre a Usucapião Familiar e principio da vedação do retrocesso social Juliana Schvambach afirma:

 

Assim sendo, a usucapião familiar pode ser vista como uma forma de atingir o direito social à moradia, constitucionalmente garantido, visto nessas hipóteses, da usucapião tratada, como direito mais importante, em detrimento dos demais princípios, que se aspire proteger. Além do direito à moradia, o acolhimento da usucapião familiar também visa garantir a dignidade humana, como visto acima, portanto, para aqueles que acreditam que esse instituto fere o principio da vedação do retrocesso social, há o argumento de que o pleito ora defendido protege direitos tão ou mais importantes, do que a proibição da volta da discussão da culpa no fim da relação conjugal. Deste modo, também se pode afirmar que negar o direito àquele que tem legitimidade para pleiteá-lo vai de encontro ao principio ora estudado por não concretizar os direitos já postos como o direito à moradia, e o direito a uma vida digna. O princípio irá operar como uma força contrária à criação ou modificação de leis que importem na diminuição ou supressão da medida de concretização dos direitos fundamentais sociais, como os acima citados. (SCHVAMBACH, 2013, p. 48 – 49).

 

 Com base em tais argumentos observa-se que o artigo estudado, dá uma grande margem para interpretação, contrariando todos os princípios relacionados com a máxima clareza da lei, para que a ela não seja atribuído juízos de valor a ponto de provocar inúmeros conflitos jurisprudenciais.

 

3.1 A Emenda Constitucional 66/10 e a Usucapião Familiar

 

Sabe-se que a Emenda Constitucional 66/10 revolucionou o divórcio, tornando este muito mais célere, ela acabou por dispensar os requisitos prévios para que viesse a ser concedido o divorcio, como o prazo estipulado na separação judicial e ideia de culpa dentro deste, visto que não há motivos para o divorcio ter força sancionatória, pois o Estado tem cada vez mais perdido o condão de interferir na vida intima das pessoas, visto que um Estado laico deve se afastar de pensamentos arcaicos que influenciam diretamente em um instituto como o casamento, quem tem uma natureza jurídica meramente contratual. O principal motivo do advento da Emenda Constitucional 66/10 é elucidado pelas palavras de Crislaine Maria Silva de Almeida:

Nas manifestações parlamentares, foi ressaltada a ideia de que a desburocratização do divórcio apenas refletiria um anseio da sociedade brasileira, onde muitas pessoas separadas judicialmente constituem união estável com outra, por ainda não poderem se divorciar, embaraçando ainda mais as relações familiares e sucessórias. Levou-se em conta também o fato de que no Brasil, o número de reconciliações de casais separados de fato ou judicialmente é mínimo, e que a maioria dos processos de separação judicial começa ou termina de forma consensual. (ALMEIDA, 2011, p. [?]).

 

Todavia há que se falar que há divergências no que diz respeito a essa relação entre a usucapião familiar e ideia de culpa no divorcio, já extinta pela Emenda Constitucional 66/10, destarte existe um dualismo entre aqueles que acreditam no efetivo retrocesso causado pela usucapião familiar, e aqueles que afirmam que inexiste qualquer relação deste com o direito de família. A primeira corrente se baseia no argumento de que a usucapião familiar causou um evidente retrocesso, ao permitir que o poder judiciário interfira no momento da dissolução do casamento através do abandono voluntário do lar, causando uma sanção para que o faz. Maria Berenice dias corrobora com esse posicionamento:

De forma para lá de desarrazoada a lei ressuscita a identificação da causa do fim do relacionamento, que em boa hora foi sepultada pela Emenda Constitucional 66/2010 que, ao acabar com a separação fez desaparecer prazos e atribuição de culpas. A medida foi das mais salutares, pois evita que mágoas e ressentimentos – que sempre sobram quando o amor acaba – sejam trazidas para o Judiciário. Afinal, a ninguém interessa os motivos que ensejaram a ruptura do vínculo que nasceu para ser eterno e feneceu. (...) Além disso, ressuscitar a discussão de culpas desrespeita o direito à intimidade, afronta o princípio da liberdade, isso só para lembrar alguns dos princípios constitucionais que a Lei viola ao conceder a propriedade exclusiva ao possuidor, tendo por pressuposto a responsabilidade do co - titular do domínio pelo fim da união. (DIAS, 20-?, p.[?]).

 

Entretanto a segunda corrente apresenta o fato de que não existe qualquer sanção patrimonial para aquele que abandonou o lar voluntariamente, há apenas      uma consolidação do posicionamento do cônjuge que se manteve no imóvel, visto que pode-se dizer que a usucapião familiar em nada de relaciona com o direito de família e sim com os direitos reais, pois o abandono não diz respeito ao lar conjugal e sim ao bem a ser usucapido, dessa forma, uma vez que tem previsão legal no art. 1.275 inciso III, o abandono pode sim ser uma das causas da perda de propriedade.  

Fica evidente que os posicionamentos são antagônicos, é certo que independentemente da corrente a ser adotada a usucapião familiar gerou mais conflitos e duvidas do que soluções, visto que trata-se de um artigo repleto de lacunas, que precisam ser preenchidas com eficiência e urgência.

 

4 CONCLUSÃO

 

Com a exposição da problemática central do presente paper pode-se concluir que a Usucapião Familiar, criada a partir da lei nº 12.424/11 e acrescentada no Código Civil em seu art. 1.240 – A, acabou atingindo um fim diferente do que era esperado. Incialmente buscava-se proteger as famílias que não tinham uma estrutura financeira significativa, tutelando o direito do cônjuge que fora abandonado, bem como da família como um todo. É evidente que esse tipo de situação pode ser facilmente vista na vida cotidiana, é comum ver homens, em sua maioria, deixando a casa onde antes vivia com sua família, de modo que a mulher acaba tendo que prover o seu sustento, assim como dos filhos, que usualmente ficam com a mãe. Destarte a finalidade da Usucapião Familiar é nobre, e visa proteger essa familiar, que fora abandonada, e ficou na posse do imóvel, de posteriormente ter tal direito questionado por conta de uma reinvindicação inesperada daquele (a) que outrora abandonou o lar de maneira voluntária.

Levando-se em consideração esses aspectos é de suma importância apontar que apesar do motivo pelo qual foi criado, o instituto estudado resultou em interpretações que atestam a sua completa inconstitucionalidade, justamente por causa da letra do artigo no qual ele se encontra disposto. Sendo assim, o problema não está na Usucapião Familiar, e sim na redação do art. 1.240 – A, que não previu com clareza, os requisitos, os efeitos e as consequências da Usucapião Familiar. Resta-se então buscar adotar as intepretações que mais se adequam à realidade, deixando portanto, a literalidade de lado, pois se o artigo fosse empregado em sua forma literal, resultaria em uma série de conflitos e litígios.

No presente paper todos os objetivos propostos inicialmente foram cumpridos, dessa forma tanto o estudo da Usucapião Familiar apontando as controvérsias geradas pelo uso da expressão “abandono de lar” na composição do artigo que regula tal instituto, quanto a apreciação do nexo existente entre a Emenda Constitucional 66/10 e a Usucapião Familiar que supostamente motiva a atribuição de sanção patrimonial à um dos cônjuges durante o processo de separação, que acaba por acarretar a ideia de culpa na relação conjugal, foram plenamente analisados e apresentados na forma do presente paper.

 

REFERÊNCIAS

 

ALMEIDA, Crislaine Maria Silva de. A Emenda Constitucional 66/10 e seus efeitos. Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7008/A-Emenda-Constitucional-no-66-de-2010-e-seus-efeitos. Acesso em 19 de Agosto de 2014.

AMORIM, Ricardo Henriques Pereira. Primeiras impressões sobre a usucapião especial urbana familiar e suas implicações no direito de família. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2014. 

DIAS, Maria Berenice. Usucapião e abandono do lar: a volta da culpa?. Disponível em: http://www.mariaberenice.com.br/pt/direito-das-familias.dept. Acesso em: 18 de Agosto de 2014.

MARTINS, Fernanda Silva. A Usucapião Especial Urbana por abandono do lar conjugal: a volta da culpa?. Disponível em: http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao /tcc/tcc2/trabalhos2012_1/fernanda_martins.pdf. Acesso em: 18 de Agosto de 2014.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v.3: direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2003. 

SCHVAMBACH, Juliana. A Usucapião Familiar e a discussão acerca da sua (In) constitucionalidade. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle /123456789/115006/TCC%20 para%20apresenta%C3%A7%C3%A3o.pdf?sequence=1. Acesso em: 18 de Agosto de 2014.

SIMÃO, José Fernando. Usucapião Familiar: problema ou solução? Disponível em: http://www.flaviotartuce.adv.br/index2.php?sec=artigosc&id=242. Acesso em 19 de Agosto de 2014.

WESENDONCK, Tula. Usucapião Familiar: uma forma de solução de conflitos no Direito de Família ou (re)criação de outros?. Disponível em: http://www.idb-fdul.com/uploaded/files/RIDB_001_0573_0604.pdf. Acesso em: 19 de Agosto de 2014.

 

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