USUCAPIÃO FAMILIAR E A APLICAÇÃO NAS UNIÕES ESTÁVEIS HOMOAFETIVAS

Por Antonio Costa de Souza Neto | 15/05/2017 | Direito

1 INTRODUÇÃO

É propedêutica a leitura sobre a relação entre a sociedade e o Direito. Como já afirmava Lassale, o Direito sem estar em conformidade com as mudanças sociais não iria passar de uma folha de papel, uma vez que a eficácia social não iria existir, seria uma espécie de letra morta. Baseado nisso, o Direito deve sempre amparar as mudanças dogmáticas da sociedade, as mudanças que ocorrem na população ao longo do tempo, criando leis e adaptando-as para o que de novo surge no contexto contemporâneo.

É nesse contexto que surge a questão dos direitos civis aos homossexuais, visto que é recente as declarações de direito dessa categoria, uma vez que ainda há resistência de grande parte da sociedade, principalmente dos cristãos-conservadores. Paralelo a isso, surge com a lei 12.424/11 uma nova espécie de usucapião, levantando diversas controvérsias referentes à sua aplicabilidade. Entre elas já se destaca na doutrina a equiparação da união estável para efeitos de aplicação do dispositivo legal e é partindo deste contexto que se indaga se é possível a aplicação do instituto da usucapião familiar nas relações homoafetivas.

O tema mostra-se atual e relevante na medida em que se trabalha com elementos de recente e recorrente discussão. O art. 1240-A, CC, foi inserido apenas em 2011, e somente agora é que se pode observar os seus efeitos já que, estabelece como prazo 2 (dois) anos para que o imóvel passe a ser propriedade do ex-cônjuge ou ex-companheiro que permaneceu no bem, e só é possível conta-lo após a sua vigência (JATAHY, 2014, p. 87). Além disso, esta disposição legislativa é contemporânea da discussão para o reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas, como nova modalidade de família na ADPF 132/RJ discutida no STF. Portanto, essencial é conjugar os temas e analisar como a partir dessa decisão do STF se pode interpretar um instituto que envolve relações familiares.

2 DA POSSE E PROPRIEDADE

Uma vez que o presente trabalho tem por seu foco o abarcar da modalidade usucapião familiar no que tange às relações homoafetivas, é necessária antes da análise do foco ter o estudo de posse e propriedade, uma vez que a usucapião envolve a perda de uma propriedade relacionada a uma posse direta e exclusiva ao longo de dois anos ininterruptos.

2.1 Da posse

Posse pode ser entendida sob duas óticas: da teoria subjetiva de Savigny e da teoria objetiva de Ihering. Resumidamente, já que não se trata do foco do estudo, para a teoria subjetiva, posse seria o poder imediato que tem a pessoa de dispor fisicamente de um bem com a intenção de tê-lo para si e de defendê-lo contra a agressão de quem quer que seja (DINIZ, 2013, p. 48); e, para a teoria objetiva, posse seria a exteriorização do domínio sobre uma coisa (DINIZ, 2013, p. 51).

O Código Civil de 2002 filia-se à teoria objetiva, tanto que em seu art. 1.196 diz que “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”, por isso que, corriqueiramente se fala que posse é a aparência de propriedade, uma vez que o possuidor é quem, em nome próprio, exterioriza alguma das faculdades da propriedade.

Ademais, diz o art. 5º da Constituição Federal de 1988, em seu inciso XXII, que a propriedade deve atender à sua função social. Com base no conceito que possuidor possui alguns dos poderes de proprietário, deve então o possuidor não somente se comportar como proprietário, mas como um bom proprietário perante o bem (ROSENVALD, 2014, p. 57).

Quanto à natureza da posse, há quem diga que a posse é um fato, outros que é um direito e ainda quem diga que é fato e direito simultaneamente. A primeira corrente, que defende que a posse é um fato, diz que a sua existência independe das regras de direito. A segunda, que defende que a posse é um direito, uma vez que a posse seria a instituição jurídica que tende à proteção do direito de propriedade, pertencendo, para Maria Helena Diniz (2013, p. 51) aos direitos reais – há quem discorde e diga que se trata de direito obrigacional. A terceira, que defende que a posse é tanto fato como direito, se sustenta no fato que considerando a posse de forma isolada, seria só um fato, mas, em certas condições, atribui-se a este fato os efeitos de um direito pessoal, produzindo consequências jurídicas (ROSENVALD, 2014, p. 58).

 

2.2 Da propriedade

Propriedade é o direito real em essência, é aquilo que pertence à pessoa, é o direito que a pessoa física ou jurídica possui de usar, gozar e dispor de um bem (art. 1.228, CC), assim como de reinvindicá-lo de quem injustamente o detenha (DINIZ, 2013, p. 134). Esse bem é corpóreo ou incorpóreo, e a pessoa pode ser tanto física como jurídica. Assim, havendo perda da propriedade (por força da lei ou vontade própria), o mesmo não poderá mais usar, nem gozar, nem dispor e nem reaver esse bem, características estas que serão mais aprofundadas no capítulo seguinte.

Percebe-se que a propriedade possui 4 (quatro) elementos constitutivos, são eles: direito de usar, direito de gozar, direito de dispor e direito de reivindicar. O direito de usar da coisa, ou jus utendi, se deve da utilização de todos os serviços que o bem pode prestar, sem que haja modificação na sua substância. O uso pode ser direto ou indireto, podendo o proprietário usar para si ou em prol de terceiros (ROSENVALD, 2014, p. 252). O direito de gozar, ou jus fruendi, percebe-se na percepção dos frutos e na utilização dos produtos da coisa (DINIZ, 2013, p. 115). Em outros termos, consiste na exploração econômica da coisa. O direito de dispor, ou jus abutendi, ou ainda, jus disponendi, se baseia no direito que a pessoa tem de vender ou doar a coisa. Na fala de Nelson Rosenvald (2014, p. 254), o direito de dispor é a possibilidade que o proprietário tem de mudar a substância da coisa, isto é, de escolher a destinação a ser dada ao bem. Já o direito de reivindicar o bem, ou rei vindicatio, é o direito que o proprietário possui de mover ação para obter de volta o bem de quem injustamente o detenha, baseado no direito de sequela (DINIZ, 2013, p. 115). Nesse ponto, alerta Rosenvald (2014, p. 255) que “a pretensão reivindicatória se qualifica como a tutela conferida ao titular consequente à lesão ao direito subjetivo da propriedade por parte de qualquer um que desrespeite o dever genérico e universal de abstenção.”

O que se deve entender neste tópico é que a propriedade abrange todas as categorias de direitos reais, girando, como diz Maria Helena Diniz (2013, p. 111), “em seu torno todos os direitos reais sobre coisas alheias, sejam direitos reais limitados de gozo ou fruição, sejam os de garantia ou de aquisição”. Isto ocorre, porque a propriedade,

que é o mais amplo direito de senhorio sobre uma coisa, como ensinal Windscheid e Brinz, apresenta-se como unidade de poderes que podem ser exercidos sobre uma coisa e não como uma soma ou um feixe de faculdades distintas, cada uma das quais suscetível de desmembrar-se do todo para surgir como direito fracionado. A propriedade é a plenitude do direito sobre a coisa; as diversas faculdades, que nela se distinguem, são apenas manifestações daquela plenitude. Entre a propriedade e os direitos reais sobre coisa alheia, há uma relação de tal ordem que estes são projeções daquela, que não perde nenhuma de suas características pelo fato de se constituírem os demais. (DINIZ, 2013, p. 112)

3 DA USUCAPIÃO

Usucapião é o modo de aquisição de propriedade e de outros direitos reais, pela posse mansa, pacífica e prolongada da coisa por tempo determinado em lei, acrescida de demais requisitos legais (FARIAS, ROSENVALD, 2014, p. 343). Dessa forma, será necessária a leitura dessa modalidade para adiante analisar o foco do presente trabalho, que é uma espécie de usucapião.

Etimologicamente, o termo usucapião significa “tomar pelo uso”, uma vez que “usu” significa “pelo uso” e “capio” significa “tomar”. No entanto, sabe-se que, além disso, ainda há o fator tempo presente nessa modalidade de perda da propriedade. Baseado nisso que Maria Helena Diniz (2013, p. 155) diz que “a usucapião é um modo de aquisição da propriedade e de outros direitos reais, uso, habitação, enfiteuse pela posse prolongada da coisa com a observância dos requisitos legais”, ou seja, é uma aquisição do domínio pela posse prolongada ao longo do tempo definido em lei. Alerta ainda a autora:

A usucapião é um direito novo, autônomo, independente de qualquer ato negocial provindo de um possível proprietário, tanto assim que o transmitente da coisa objeto da usucapião não é o antecessor, o primitivo proprietário, mas a autoridade judiciária que reconhece e declara por sentença a aquisição por usucapião. (DINIZ, 2013, p. 156)

Percebe-se, portanto, que usucapião envolve os conceitos de posse e propriedade baseados em relação ao tempo. “A posse é o fato objetivo, e o tempo, a força que opera a transformação do fato em direito” (DINIZ, 2013, p. 157), isto é, há uma perda de propriedade de alguém e a aquisição da mesma propriedade por outra pessoa em face da posse prolongada, e isso declarado pelo poder judiciário e não em convenção ou acordo entre as partes.

3.1 Requisitos da usucapião

Requisitos da usucapião são os requisitos pessoais, reais e formais. Os três devem estar concomitantemente presentes.

3.1.1 Requisitos Pessoais

O primeiro passo que se deve verificar numa situação de usucapião é saber se envolve os sujeitos certos dispostos em Lei. Adverte, portanto, o art. 1.244 do Código Civil que “estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião”, isto é, aplicam-se à usucapião as causas impeditivas e suspensivas da prescrição dos arts. 197 e 198 do Código Civil. Por isso se é necessário verificar se a usucapião está tramitando entre cônjuges, companheiros, pais e filhos na constância do poder de família, ou contra os absolutamente incapazes a que alude o art. 3º do Código Civil (FARIAS, ROSENVALD, 2014, p. 346).

Os requisitos pessoais se baseiam no fato do possuidor que deseja adquirir o bem e no fato da perda da propriedade do proprietário, devendo, necessariamente, que o adquirente seja capaz e tenha qualidade para adquirir a propriedade. Por isso que, como supracitado, à luz do art. 1.244 do Código Civil, que não pode ser alegada a usucapião:

Entre cônjuges na constância da sociedade conjugal; entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar; entre tutelados e curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela; em favor do credor solidário nos casos dos arts. 201 e 204, § 1º, do CC, ou do herdeiro do devedor solidário, na hipótese do art. 204, §2º, também do CC; contra os absolutamente incapazes de que trata o art. 3º; contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados e dos Municípios; contra os que acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra; perdendo condição suspensiva; não estando vencido o prazo; perdendo ação de evicção; antes da sentença que julgará fato que deve ser apurado em juízo criminal; havendo despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação feita ao devedor; havendo protesto, inclusive cambial; se houver apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores; se houver ato judicial que constitua em mora o devedor; havendo qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do direito de devedor, alcançando, inclusive, o fiador. (DINIZ, 2013, p.158)

3.1.2 Requisitos Reais

Certo que somente os direitos reais que recaiam em coisas usucapíveis poderão ser obtidos por este modo de aquisição originário (FARIAS, ROSENVALD, 2014, p. 349), ou seja, os bens inusucapíveis, como os bens públicos, não estão sujeitos a ser objeto de usucapião. Como diz Maria Helena Diniz (2013, p. 159), “os requisitos reais são alusivos aos bens e direitos suscetíveis de ser usucapidos, pois nem todas as coisas e nem todos os direitos podem ser adquiridos por usucapião”. Assim, as coisas inalienáveis e indisponíveis, como o ar, a luz solar, os bens públicos fora do comércio, por exemplo, jamais poderão ser objetos de usucapião.

3.1.3 Requisitos Formais

Os requisitos formais compreendem tanto os elementos necessários e comuns do instituto como os especiais do instituto, como, respectivamente, a posse, o lapso de tempo e a sentença judicial e mais o justo título e a boa-fé. Quanto aos requisitos essenciais, são três a qualquer modalidade de usucapião: o tempo determinado em lei, a posse mansa e o animus domini, isto é, a vontade do agente de ter a propriedade, o domínio da coisa.

Sabe-se que a usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada, logo, não tem como haver usucapião sem a presença de uma posse em prol de uma propriedade ao longo do tempo, é impossível. Essa posse, por sua vez, deve ser exercida no que foi supracitado, entendido por animus domini, por isso chamado de posse ad usucapionem, sendo esta mansa, pacífica, contínua e pública durante o lapso prescricional estabelecido em lei (DINIZ, 2013, p. 162).

3.2 Usucapião Familiar

Essa modalidade (art. 1.240-A, CC) foi inserida pela Lei 12.424 de 16 de Junho de 2011, dispondo que “aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja o proprietário de outro imóvel urbano ou rural.” Assim, percebe-se que os sujeitos são peculiares nessa modalidade (ex-cônjuge ex-companheiro) e o tempo é peculiar (dois anos). Com a simples leitura do artigo retira-se os requisitos da usucapião familiar, que são: a existência de único imóvel urbano comum; o abandono do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiros; e, o transcuro do prazo de dois anos.

3.2.1 Existência de único imóvel urbano comum

Nesse caso, está presente a figura da composse e da compropriedade, visto que os cônjuges ou companheiros são comproprietários (art. 1.314, CC) e compossuidores (art. 1.999, CC) do bem, e aquele que exerce a pretensão não almeija a titularidade de qualquer outro em território nacional.

3.2.2 O abandono do lar por parte de um dos cônjuges ou companheiros

É um requisito polêmico devido ao que dispõe a Emenda Constitucional n. 66/10, uma vez que esta revogou todas as disposições em normas infraconstitucionais alusivas à separação e às causas de separação. Para isso, se pronunciou o Conselho de Justiça Federal, em seu Enunciado n. 499, dizendo que o abandono do lar só pode ser compreendido “de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião”

3.2.3 Transcurso do prazo de 2 anos

Bem criticado por Maria Jatahy (2014, p. 89), este é o prazo mais breve de usucapião do direito pátrio, superando até mesmo o prazo de três anos para usucapião de bens móveis (FARIAS, ROSENVALD, 2014, p. 404). Assim, o tempo de dois anos tem que ser ininterrupto, sem qualquer tipo de oposição ocorrida, sem falar que exige-se para esse lapso temporal a posse direta e exclusiva por quem permaneceu no imóvel.

4 USUCAPIÃO FAMILIAR E AS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

Como sempre é polêmica e acalorada a discussão quando envolve relação homoafetivas por divergências dogmáticas, a questão que se trata é se a modalidade da usucapião familiar abrange as relações homoafetivas, isto é, se duas pessoas do mesmo sexo, que se relacionam, que possuem união estável e depois se separam, uma abandonando o lar e a outra pessoa exercendo posse mansa, pacífica e direta por dois anos ininterruptos sobre imóvel urbano de até 250m², se enquadraria a possibilidade de haver a usucapião pro-família. Ver-se-á que sim, que é possível.

4.1 STF e CNJ

Como supracitado, aplica-se o artigo 1.240-A do Código Civil às uniões homoafetivas. Foi deliberado no STF no julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132/RJ que “interpreta-se o artigo 1723 do Código Civil conforma a Constituição Federal para estender à união homoafetivas os mesmos consectuários jurídicos da união estável” (FARIAS, ROSENVALD, 2014, p. 406). Dessa forma, uma vez que já foi legalizado e afirmado possível o enquadramento de união estável nas relações homoafetivas, conclui-se que é possível a usucapião familiar. Além do pronunciamento do STF, tem o entendimento do CNJ em seu Enunciado n. 500, quando o mesmo diz que “a modalidade de usucapião prevista no artigo 1.240-A do Código Civil pressupõe propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas.”