Uma visão lacaniana sobre a psicose
Por Milena Tarcila Santos de Souza | 15/08/2012 | PsicologiaAutores: Milena Tarcila e Renata Itaparica
... E como é que poderei negar que estas mãos e este corpo sejam meus? Só, talvez, me comparando a certos insanos cujos cérebros estão de tal forma perturbados e ofuscados pelos negros vapores da bile que levam a afirmar a todo instante que são reis quando não passam de pobretões, que estão vestidos de ouro e púrpura quando na verdade se acham nus, ou imaginam ser um gomil e ter corpo de porcelana. Mas, ora! são loucos, e eu não seria menos extravagante do que eles se deixasse me governar por seus exemplos." (DESCARTES, 1635/1955, p.153)
Desde os fundamentos iniciais da Psicanálise, Freud em seus artigos descreve a questão das psicoses, entre as outras estruturas clinicas, e relaciona essas com o funcionamento do conceito de mecanismos de defesa. Após algum tempo, Lacan vem para reconstituir essa concepção sobre a psicose, e formula um novo conceito sobre essa estrutura. As experiências dos casos clínicos estudados por Lacan, colaboraram para essa nova concepção sob a psicose, como sendo um universo ainda vago, furado e se tornando, um universo recheado de conteúdos, embora não de uma forma simbólica, mas na tentativa de juntar as peças soltas que estão na realidade do psicótico que precisa ser ouvido como um outro, mesmo que esse discurso venha despedaçado. Para Freud, a distinção entre as estruturas psicótica e neurótica, está na defesa que é estabelecida na estrutura do sujeito, quando esta defesa se posiciona contra um fragmento do id, ocorre uma falha parcial, e se constitui a neurose. Mas, quando essa defesa se dirige contra um fragmento da realidade e ao sujeita-la se obtém sucesso, teremos uma psicose, sendo dada pela ausência de inscrição da castração.No seminário 3, As Psicoses, Lacan afirma “a existência de uma descontinuidade de origem entre a neurose e a psicose, suposta a partir da presença do operador denominado Nome-do-Pai” (LACAN, 1955-56, p.585), que segundo Lacan, , é quem limita e ordena o funcionamento de significantes (ausente de qualquer lei) no processo de estruturação do sujeito pela linguagem, ou seja, constitui a lei do significante. Num segundo momento, esta concepção deixa de se basear na interdição da ausência ou presença do Nome-do-Pai, e passa a atribui à psicose os mesmos elementos que na neurose, sendo que a diferença está na quebra no interior dessa estrutura
comum (DE FREUD A LACAN: UMA ANÁLISE SOBRE A CLÍNICA DA PSICOSE , Suéllen P. Buchaúl, Vol 2, Numero 7, 2008)
Com a questão da demarcação linguística do fenômeno psicótico, Lacan decide tomar como ponto importante, a incidência de distúrbios da linguagem nas psicoses. Quando se fala em psicose, então há que se demonstrar neste caso a existência no sujeito de uma relação diferenciada com a linguagem. Para Lacan, a psicose mostra o seu efeito, como um fracasso na constituição desse sujeito a partir da relação com a ordem do que é simbólico, e embora a perspectiva de Lacan seja um tanto compatível com a de Freud, essa vem a ser mais abrangente, na medida que a primazia da cadeia significante na estruturação desse sujeito não umplica uma desvalorização do dinamismo pulsional, antes dele, se vê incorporado ás leis do significante que lhe preexistem. Não é possível fazer funcionar a atividade discursiva sem o estabelecimento de um mínimo de estabilidade que corresponde, precisamente, à instituição da noção de verdade. Lacan frisa diversas vezes que nós estamos diante de um sujeito, e não de uma máquina de fala, quando sabemos que aquele pode mentir, pode enganar, o que quer dizer que, o que ele diz pode significar qualquer coisa a princípio, inclusive a verdade. A psicose é vitima de uma ausência de um Outro, que é capaz de produzir um reconhecimento simbólico, garantindo a existência da verdade e regulando minimamente as relações no interior da ordem simbólica. Isso tudo faz com que o psicótico seja submetido, na falha de suas defesas, á uma experiência de uma falta de referencia em seu discurso, e em sua vida. O discurso do psicótico é da ordem da verdade, ele não suporta cortes, trabalha puramente com o signo das palavras, o discurso não traz significantes que podem ser interpretados. (ESTRUTURA LACANIANA DAS PSICOSES, Marcelo Freire).
Ou seja, "o fenômeno da loucura não é separável do problema da significação para o ser em geral, isto é, da linguagem para o homem" (Seminário 3, Lacan). Lacan introduz um esquema, denominado Esquema L, para a analise da estrutura de um discurso, e a partir desse esquema é possível a diferenciação na do discurso estrutural neurótico e psicótico, através da figuração de duas relações: a cena enunciada e a outra cena, do inconsciente (localizações
psíquicas).Essa ideia é originária de Freud (1900), que, por sua vez, se inspira em Fechner (1889),que expressara a ideia de que a cena de ação dos sonhos é diferente da cena da vida representacional de vigília. (As estruturas do discurso: o uso do esquema L em psicopatologia. Marta Regina de Leão D‘Agord, , v. 6, n. 1, p. 87-100, maio de 2009)
O sujeito psicótico tem sua realidade psíquica implicada na articulação do Imaginário com os outros dois registros dados por Lacan: Real e Simbólico, os dois são responsáveis pela constituição desse sujeito. Quando falamos de psicose, estamos falando da foraclusão, que é um elemento negado que retoma ao real, fora do simbólico. Portanto, podemos dizer que o sujeito psicótico, está num lugar de ex-sistência, ao que se refere estar fora, e que também não depende do saber e nem do sentido para existir. Isso tudo permite a visualização das características da produção e configuração da psicose, como sendo um discurso que ignora, ou tende a ignorar o impossível e seus desdobramentos. (DE FREUD A LACAN: UMA ANÁLISE SOBRE A CLÍNICA DA PSICOSE , Suéllen P. Buchaúl, Vol 2, Numero 7, 2008)
A psicose é caracterizada por fenômenos como, alucinações auditivas ou visuais, interpretações delirantes das situações vivenciadas, afrouxamento dos elos de associação, alterações de linguagem, entre outros. Lacan tenta dar conta de uma dimensão que vai além do que é imaginário, do registro de imagem: a fala. Lacan vem a demonstrar que se toda loucura é vivida no registro do sentido, se ela é "um fenômeno do pensamento" (p.163), toda a realidade do humano não o é menos. (Ágora: Estudos em teoria Psicanalítica Ágora (Rio J.) vol.12 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2009)
De acordo com Lacan no Seminário III (1956), a fórmula da prática psicanalítica com o psicótico é “introduzir o sujeito”. Introduzir o sujeito na sua lógica inconsciente, implicar o sujeito na sua história, no seu gozo e no delírio que ele constrói para se sustentar e para conter-se. Isso implica em deixá-lo falar da vida, onde ele se faz protagonista e que revela sua relação com o outro, dá-lo a chance de vincular seu passado com seu presente e revelando a fixação do seu gozo onde se condensa seu sintoma.
REFERENCIAS
ESTRUTURA LACANIANA DAS PSICOSES, Marcelo Freire, Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/artigosb/lacanpsi.htm>
DE FREUD A LACAN: UMA ANÁLISE SOBRE A CLÍNICA DA PSICOSE , Suéllen P. Buchaúl, Vol 2, Numero 7, 2008, Dísponivel em: <http://www.sumarios.org/sites/default/files/pdfs/52670_6162.PDF>
As estruturas do discurso: o uso do esquema L em psicopatologia. Marta Regina de Leão D‘Agord, , v. 6, n. 1, p. 87-100, maio de 2009.
Mesa Redonda: a psicose de Freud a Lacan, A escrita de Joyce e a suplência na psicose, Maria Lídia Oliveira de Arraes Alencar. Disponivel em:<http://www.fundamentalpsychopathology.org/8_cong_anais/MR_32b.pdf> Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Ágora (Rio J.) vol.12 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2009, Psicose e discurso no contexto da teoria lacaniana, Helena Veloso. Disponivel em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1516-14982009000100005&script=sci_arttext>