Uma vez eu "tinha" um cachorro
Por Romão Miranda Vidal | 21/01/2012 | ContosUma vez eu" tinha" um cachorro.
Uma vez eu" tinha" um cachorro. Depois quando eu cresci, tive muitos cachorros. Mas tive algumas cachorras. Na verdade eu tive mais cachorros. Eram verdadeiros amigos e companheiros. Vivíamos a fazer das nossas. Ora a gente corria atrás das galinhas da vizinha para dar um jeito delas morrerem e depois a gente as comia assadas, lá beira do rio. Outra vez a gente inventava que estava com o pé machucado e entrava no armazém do português com uma sacola e soltava um gato e o meu cachorro saia correndo pelo armazém afora, fazendo a maior esculhambação do mundo. E na distração e preocupação do português a gente pegava uns três ou cinco salames e dava de pinote.
Os meus cachorros sempre foram bons companheiros.
Um deles adorava correr atrás de bola de futebol. E quando o nosso time estava perdendo eu dava um assobio para ele e lá ia o danado a correr atrás da bola e promover a maior confusão no jogo.
E então um dia, chegou o momento da separação. Interessante como se dão as separações. Falo no plural. A primeira separação foi quando me despedi da minha juventude irrequieta e cheia de aventuras com os meus cachorros e me vi diante de uma situação de mudança violenta. Vivia no interior, pescava, estudava, tomava banho de rio, roubava galinha do vizinho, preparava armadilha para pegar pombinha e depois soltá-las durante a sessão de cinema, no único e pulguento cinema que tinha na cidade. E a segunda foi quando me despedi do meu cachorro e fui morar na cidade grande para estudar, imaginem o quê?
Acertou quem disse Medicina Veterinária.
E então a coisa pegou. Na primeira aula de Anatomia lá veio um bedel, daqueles puxa-saco de marca maior e foi logo dizendo: “Arrumem um cachorro, para as aulas de Anatomia”. Mas como assim? Arrumar um cachorro? Depois ele explicou. No Centro de Zoonoses, existia uma enormidade de cachorros errantes que eram sacrificados, após 45 dias sem que alguém ou o dono viesse buscá-lo. Então pelas forças das circunstâncias arrumei um cachorro que havia ido a óbito. Por fim tinha lá o meu cachorro. Morto. Resolvi apelidá-lo de Totó. E o Totó ficou comigo por um ano. Terminado o ano o Totó foi enterrado e até fiz uma caixão de madeira e coloquei junto uma carta de agradecimento e o meu primeiro cabo de bisturi. Mais ainda. Cavei um buraco. Concretei-o e depois então coloquei o Totó no caixão e fechei o buraco com uma laje de concreto. Interessante. Tempos atrás passei na casa onde morava quando estudante e parei em frente. Olhei no jardim e posso até ter me confundido, mas lá onde enterrei o Totó nasceu um pinheiro araucária. Enorme.
Mas vida me fez algumas surpresas. Para poder aumentar a renda como acadêmico eu já no quarto ano de Medicina Veterinária, fazia alguns plantões. E aos poucos os donos da clínica, foram se agradando da forma como eu tratava os cachorros e seus ou suas proprietários e proprietárias. Formado e já com um horizonte a ser trabalhado, fui convidado para fazer digamos um “estágio remunerado”. Não era bem aquilo que eu queria. Mas tinha cachorro e então lá fomos nós.
Era um domingo modorrento. Chato. As horas não passavam. Estava estudando, quando uma atendente me chamou para atender uma cachorra da raça Pequinês. Exames iniciais indicavam algo comprometedor, relacionado com Piometra aberta. Descarga purulenta via vaginal. Hemograma indicando infecção considerável. Ováriohisterectomia
Sala de cirúrgia pronta. Procedimentos normais.. Quase terminando a cirurgia e...parada cardíaca. Protocolo de recuperação. Não vamos perder esta paciente. Voltou. Batimentos cardíacos normalizados, ventilação pulmonar dentro do esperado. Vamos para a incubadora para a recuperação e... outra parada cardíaca. Agora a situação ficou feia. Novo protocolo e lá veio a vida novamente. Fiquei praticamente umas três horas ao lado da Pequinês. Voltou normalmente. Todos os exames indicavam que dali para frente teríamos um final de tarde normal. E tivemos. Não fosse pela ausência da proprietária. E agora? E se a mulher foi embora e deixou a cachorrinha com a gente? Quem iria pagar a cirúrgia? Doutor a mulher chegou, está na recepção. E então como foi a cirúrgia? Uma maravilha. Tudo correu como esperado. E a senhora onde estava? Fui ali na igreja e aproveitei para assistir a missa e pedi para São Francisco que abençoasse o senhor e a sua equipe, para que tudo corresse bem. E como correu....
Recém casado. Como presente de casamento a minha sogra deu para a minha esposa, uma máquina de costura Elgin. Aquela que tinha uma tampa de madeira. A campainha tocou. Boa noite. O senhor é Médico Veterinário? Sim. O meu cachorro, está com o olho para fora. A dvinhe que raça era o cachorro? Pequinês. O senhor pode atendê-lo? Quanto tempo faz que isto ocorreu? Umas três horas. Nós levamos na casa que vende produtos veterinários e lá tem um “vitirinário” que fez de tudo e não conseguiu nada. O que o senhor acha? Eu? Não acho nada. Só indico um único procedimento. Qual? Reduzir este Prolapso do Globo Ocular, mediante cirurgia. E ele vai ficar cego de um olho? Não. Ele vai ficar com um só olho. E então voltamos para a dita máquina de costura Elgin. Serviu como mesa improvisada de cirurgia. Decorridos mais de quarenta minutos, lá estava o Pequinês, com um tampão. Parecia um pirata... E não devemos esquecer que a minha assistente nesta cirurgia foi a minha esposa.
Mas o tempo passou. Um pequeno desaforo de um empresário, que se negava a vender pneus a prazo para a nossa empresa, resultou em uma situação inusitada. Pessoa de posses tinha como hobby criar cães da raça Pastor Alemão. Doutor a minha cachorra está em trabalho de parto há mais de duas horas. O senhor poderia atender a nossa cachorra? E agora? Dias antes me ofendera e até me humilhara. Agora a coisa mudou de figura. Acredito que o senhor poderia recorrer a outros colegas. Todos estavam ocupados com outros afazeres. A minha esposa telefonou logo a seguir. Por favor, atenda. A cachorra não tem culpa dos donos que tem. Mesmo assim o dever e a ética falaram mais alto. Parto complicado. Demorado. Dilatação mínima. Dúvida. Cesárea? Manobra obstétrica. Um, dois, três e por fim dez. Alegria. Final do sufoco. Quanto lhe devo doutor? Nada. Mas... Por favor, não vou cobrar nada do senhor. Até logo. Aqui estão a receita e o que se deve fazer.
E a vida prosseguiu. Bom dia doutor. Será que o senhor poderia vir a nossa residência, para dar uma olhada na ninhada? Todos em bom estado. A alimentação reforçada com cálcio evitou e afastou qualquer possibilidade de eclâmpsia. Gostaria que o senhor escolhesse um dos filhotes. Obrigado. Não faz parte da minha conduta. Assim o senhor nos ofende. A ninhada era linda e parelha. Uma fêmea chamava a atenção. Depois de desmamada eu aceitarei. Alegria total. Nome? Eiblise. Até hoje não sei de onde surgiu este nome. Linda, carinhosa e obediente. E então o Mauricio nasceu. A Eiblise havia voltado do treinamento em uma escola para cães, em Curitiba. Aprendeu a ficar ao lado do carrinho do Mauricio. Um dia no mercadinho do Granzoto, a Mariza pegou o Mauricio no colo e saiu. E a Claudete pediu que trouxessem o carrinho. Esparramo total. Ninguém se aproximava do carrinho. Como que avisando: estou guardando o menino. Era dezembro. O parreiral da granja estava carregado. Cada cacho de uva que era uma tentação. E então um funcionário resolveu pular a cerca e apanhar uns cachos. Foi aquela gritaria. A Eiblise entendeu como sendo invasão de território. Simplesmente avançou e mordeu o funcionário. A secretária me avisa.É para o senhor correr para a sua casa. A Eiblise estava agonisando. Exames imediatos. Rigidez extensora e muscular, opistótono, taquicardia, hipertermia, apneia e ao tentar os procedimentos inibitórios, fui infeliz. A Eiblise morreu. Revolta total. Por favor, chame o gerente da granja. Peça para aquele funcionário que foi mordido pela Eiblise subir e vir falar comigo. Uma pá reta na mão. Pois não doutor. Como você matou a minha cachorra, você vai enterrá-la. Mas não fui eu. Foi sim doutor eu o vi dar um bolo de carne para ela. Afirmou um funcionário. Poucas fotos da Eiblise.
Casa nova muro não muito alto. Doutor o senhor não quer um cachorro? Depende. Qual a razão de você se desfazer o cachorro? Não agüento mais pagar aos seus colegas os estragos que ele provoca cada vez que briga com os cachorros da vizinhança. Como é o nome dele? Coiote. Um macho boxer, tigrado, com o peito branco e as quatro patas brancas. Lindo. Porte esportivo e imponente. Amor a primeira vista. Mauricio e Coiote e Coiote e Mauricio. Socorro, socorro. Aquele grito assustador e apelativo. Luzes do jardim acesas e em um canto do muro o ladrão todo esfarrapado e o Coiote todo faceiro. Não brigava mais na rua. Mas desta fez tirou o atraso. Todos os dias de segunda a sexta, às 13,30 a Kombi escolar apanhava o Mauricio. E o Coiote acompanhava a Kombi até o final da rua. Quando faltavam uns dez minutos para as dezoito horas ele ficava impaciente. Arranhava o portão. Portão aberto saia correndo até o final da rua e acompanhava a chegada do Mauricio. Dormia embaixo da janela do quarto do Mauricio. O canteiro de flores simplesmente desapareceu. Vamos dormir. Era a senha para que ele entrasse em casa, fosse até o quarto do amigo e ali conferia se tudo estava certo. Depois saia e se acomodava. Visitas. Abriam o portão e entrava e o Coiote só olhava. Na hora de sair... Aquele vexame. Rosnava e ninguém se aproximava do portão. Não deixava ninguém sair. Convencido e meio contrariado, saia e ficava olhando. E um dia então, nos mudamos para Brasília. E o Coiote era a atração por onde passávamos. Parecia que entendia as atenções a ele dadas. Morando em apartamento a situação ficaria complicada. Uma chácara de um amigo e lá permaneceu por umas semanas. Chegou o dia de ir para a fazenda. Pick-up com a carroceria lotada. E ele ali olhando. Era abrir a porta e ele já de pronto se instalava ao lado do motorista. Entendeu bem? Não coloca ele na carroceria, mesmo estando cheia que ele pula. Entendi. Doutor o Coiote desapareceu. Adivinhe que dia era? Aniversário do Mauricio.
Dois anos procurando. Oh! Doutor o senhor poderia agendar uma visita na minha fazenda, para selecionar umas novilhas Nelores? Latidos. Correria de cachorros. Pai! Olha o Coiote. Magro, cheio de bernes, machucado. Reconheceu o Mauricio. Explicar o quê? Voltamos para a fazenda. Mudamos para Curitiba. Quando estava comprando a caixa plástica especial para transporte aéreo de cachorros, o Chico telefonou. O Coiote morreu. De saudades. E nós ainda sentimos saudades.
Vários foram os outros cachorros. . Mas um dia a Camila resolveu que queria por que queria, um cachorro Cofap. Mas Camila não é Cofap. É sim igual aquele do amortecedor. Ganhei uma fêmea Basset Dachshund. Nome? Perestróika. Para os íntimos “Pere”. Companheirona de primeira. Amiga de todas as horas e todos os momentos. Era uma loucura só. O Mauricio a levava para tomar banho de mar. Adorava brincar com água. Inteligente. Valente. Braba e defensora da Camila. Ciumenta que dava dó. Corre pai. Arritmia total. Pulso irregular. Enfarte. Corre para a clínica. Procedimento padrão. Estabilizada. A Camila branca e assustada. Correria. Parada cardíaca. Voltou. Doutor vamos fazer o seguinte. Qualquer anormalidade eu telefono. Tocou o telefone. Não resistiu. Choro convulsivo. Dava dó. A Camila era uma desolação só. Enterro digno de uma amiga fiel. Se no meu enterro a Camila e Clau chorarem cinqüenta por cento, me dou por feliz...
Ia me esquecendo. O Mauricio ganhou um Husky Siberiano. Uma fofura. Malandro que só ele. Fazia das suas e quando chamado a atenção, imagine só: resmungava como que chorando. A Pere e o Budy eram inseparáveis. Budy era o seu nome. Mas um dia tivemos que arrumar um novo dono para ele. Qual a razão? Dera de fugir e ficar nas casas da vizinhança, além de brigar com todos os cachorros do condomínio.
Surpresa. Aniversário da Camila.
Um casal amigo. O Carlão e a Jane, sabendo que a Camila gostava de cachorros, gentilmente me presentearam com uma fêmea. O Jansen (colega de profissão) ficou encarregado das coberturas vacinais. No dia do aniversário da Camila, o Jansen e a Eliane, chegaram com a cachorrinha, toda vestida, com direito a fita no cabelo. A Camila logo se encantou. Tentou pegar no colo. A Eliane falou que a cachorrrinha estranhava as pessoas. E foi andando em direção aos amigos e a Camila atrás. Tia me deixaeu pegar um pouco a cachorrinha. Deixa, vá? Camila, mas você gosta tanto de cachorro assim? Gosto. Acontece que a minha Pere, morreu... Lágrimas. Então os seus pais estão lhe dando como presente de aniversário, esta linda cachorrinha. Agora foi uma tempestade de lágrimas. Até os convidados choraram.
Nome? Preta. Para os íntimos Pretinha.
Hoje a Pretinha está em São Paulo. Mas já morou em Florianópolis, na praia do Jurerê.
E a responsabilidade da Pretinha agora não é só cuidar da Camila.Agora tem a Bárbara, que pelo jeito deverá gostar de cachorros.
E um dia quem sabe, possa escrever algo como -Uma vez eu "tinha" um cachorro-.
Eu tive muitos amigos e ainda os tenho. Mas os meus cachorros...