Uma leitura psicanalítica do personagem Samuel no conto Pausa de Moacyr Scliar

Por Hélia Oliveira | 16/10/2009 | Educação

Introdução

Embasando-se nas teorias estruturalistas de Saussure, o francês Jacques Lacan faz uma reescrita da teoria freudiana e nesse novo olhar sobre a psicanálise, Lacan procurou considerar a relação do sujeito com a linguagem e para isso constrói sua tese de que o inconsciente se estrutura como linguagem e que os lapsos da língua, tropeços com a linguagem, os atos falhos e os sonhos, ou seja, todas as formações do inconsciente surgem como conseqüência das substituições de um ou mais significantes por outros, vinculados aos originais por diferentes tipos de relações.
Esta tese leva Lacan a prestar especial atenção à organização da linguagem para que possa extrair dela inúmeros conceitos e conseqüentemente aplicar ao conhecimento do objeto de estudo da psicanálise: o inconsciente, já que este é apenas um movimento e uma atividade constante de significantes, cujos significados nos são muitas vezes impenetráveis por serem reprimidos.
Pautados nesses conceitos lacanianos, procuramos analisar o personagem Samuel do conto Pausa de Moacyr Scliar.

Análise psicanalítica de Samuel

O conto retrata a vida de um executivo (Samuel) casado, que busca sair da realidade do final de semana. O texto está estruturado a partir de frases curtas, extremamente secas, como se percebe logo no início do texto. Além desses aspectos, o texto apresenta elementos sutis que dá a expectativa de um casal em desacordo e paulatinamente vai criando uma expectativa de um cenário obscuro, sujo e sombrio. Ao analisarmos o titulo "pausa", este nos remete a uma interrupção temporária de uma ação, ou seja, o personagem resolve interromper o seu cotidiano em pleno dia de domingo. A pausa representa um refúgio, uma fuga da realidade, do meio social e familiar. Entendemos, assim, que a pausa é o momento em que ocorre a manifestação do inconsciente. É nesse momento que o sujeito expressa seus desejos e sua insatisfação com a vida, ou seja, com o Um (aquilo que ele pensa que é) e por essa razão, a pausa é exatamente o momento em que percebemos, de acordo com Lacan, que o sujeito Não-Um, o inconsciente, "encontra espaço" para apresentar a outra parte do sujeito (Samuel) que ele procura esconder, reprimir enquanto está no convívio social.
Essa idéia é ratificada no trecho "Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura". Isso nos faz crê que o Outro (inconsciente) é simbolizado através do significante máscara escura, já que o termo máscara traz uma significação de algo que esconde, que se oculta, revelando assim, um sujeito que busca negar a si próprio.
Percebemos essa negação no momento em que o outro (Samuel) usa um nome falso Isidoro, criando no inconsciente (sua outra face do espelho) e por não aceitar esta outra face, e se sentir sujo e imundo, busca lugares que lhe dê essa sensação de sujeira, de imundície como o local suburbano que procura para satisfazer seu objeto de desejo, como vemos no trecho: "Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo... Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada." Ao freqüentar um ambiente submundo, sugere-nos que ele, o sujeito, considera esse comportamento um desvio moral e por essa razão, sua vida está retratada nesse ambiente, porque o sujo na realidade representa aquilo que ele tem dentro de si, por isso procura um lugar que represente essa sensação. E ao decidir ir ao último andar, metaforicamente isso representa o fundo do poço, ou seja, ratifica a idéia de que ele não se aceita.
Ele tem medo de ser reconhecido, ou seja, medo de que o Outro seja identificado pela sociedade, e isso é ratificado no trecho: "Olhou para os lados entrou furtivamente", quando o sujeito nega sua própria identidade para o mundo e para si mesmo. Além disso, um outro trecho que nos leva crer que ele busca ocultar-se é que ao estar no carro, guia vagarosamente, mas ao ir ao encontro do seu objeto de desejo, tem a preocupação de estacionar o carro distante do hotel "sujo" e caminhar apressadamente.
Outro fato que nos leva a esta tese é a idéia da vida dupla sugerida: Samuel x Isidoro. O casamento, a mulher representam a defesa, o refúgio para que ele possa encobrir aquilo que ele se nega a aceitar. Tenta preservar uma identidade que na verdade não existe, no entanto, o seu inconsciente teima em mostrá-la. A sujeira do hotel representa o significante, uma vez que apresenta o que Samuel tem dentro dele, pois de acordo com Lacan é preciso analisar a cadeia de significante para se chegar ao significado e ainda conforme Dor (2003, p.45) "a supremacia do significante se traduz, portanto, eletivamente, por uma dominação do sujeito pelo significante, que o predetermina lá mesmo onde ele crê escapar a toda determinação de uma linguagem que ele pensa controlar", quer dizer, o sujeito é enganado pelo significante, visto que, ele revela a outra face do sujeito (aquilo que ele busca negar em si mesmo).
A partir da narrativa, vemos o que Samuel deseja aquilo que lhe é negado e é pelo fato de não poder ter o seu objeto de desejo que ele acaba reprimindo-o. Ele, na verdade, passa por uma castração que se apresenta no momento em que ele é impedido de viver a sua verdadeira identidade. A sociedade exerce o papel de castradora de Samuel, ou seja, ela o limita, priva-o de ter uma vida sexual que ele deseja, uma vez que está preso às convenções sociais, é a sociedade que assume o papel de pai na vida do personagem, de acordo com aquilo que Lacan postulou, como ressalta Dor (2003, p. 85) ao afirmar que "o pai a priva do falo que ela supostamente tem sob forma da criança identificada como seu objeto de desejo".
Dando seqüência a narrativa, percebemos que a pausa enunciada pelo título do conto, ocorre exatamente no momento em que Samuel dorme. A narrativa vem mostrando apenas o cotidiano, o percurso feito pelo personagem para, enfim, fazer uma pausa.
Em pouco, dormia. Lá embaixo a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos. [...] Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Depois, silencio.

O trecho acima retrata o momento de pausa do personagem, ou seja, o instante em que ele começa a dormir e sonha. É nesse momento de pausa que ele sente mais prazer, o momento em que ele se encontra, mesmo que dentro do plano imaginário, se realiza com aquilo que lhe é negado. O sonho traz no próprio corpo o ato sexual. É exatamente durante a pausa que Samuel sai da sua rotina e o inconsciente encontra espaço para se manifestar livremente. E o despertador é a garantia de sua volta ao Samuel, ao outro, ao Um.
Vemos, portanto, que no final da narrativa, Samuel sempre volta a este hotel, no entanto, busca negar a si mesmo esse seu desejo, essa sua condição, esse desejo reprimido e isso, fica evidente quando o gerente diz: "até domingo que vem, seu Isidoro. – Não sei se virei, responde Samuel, olhando pela porta. – O senhor diz isso mas volta sempre ( observou o homem, rindo." Vemos, portanto, que Samuel vivia negando a sua vontade de viver uma outra realidade, de sair do mundo de convenções que o protegia de si mesmo e, a partir do que descreve Lacan, não consegue se libertar do mundo imaginário. Acaba se prendendo ao mundo no qual já está acostumado, por considerá-lo mais seguro. E assim, Samuel não consegue assumir sua própria identidade e por isso mesmo se identifica com este ambiente de submundo, por ter raiva de si mesmo, de se reconhecer como Isidoro ( seu verdadeiro Eu).

Referências Bibliográficas

DOR, Joel. Introdução a leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem. Porto Alegre: ArtMed, 2003.

SCLIAR,Moacyr. Pausa. In:http://valisedecronnopio.blogspot.com/2008/05/pausa.html. Acessado em 07 de janeiro de 2009, às 17h48min.