Uma Leitura de 'Simoa', de Adonias Filho (1915-1990)

Por Alcir de Vasconcelos Alvarez Rodrigues | 23/11/2008 | Literatura

Procederemos apresentando, em primeiro lugar, uma espécie de síntese da novela aqui estudada, em decorrência de sua extensão impossibilitar uma leitura breve. Esperamos ser esclarecedora. Caso contrário, pedimos desculpas. Segue o texto:

Em 1968, Adonias Filho publica Léguas da promissão (LP), um livro-coletânea de seis novelas, das quais a última, analisada neste trabalho, é "Simoa".

Avulta nesta novela a presença de três "povos" – três agrupamentos humanos – e, lógico, três espaços ficcionais, que recriam o locus do sul da Bahia (na primeira metade do século XX), mais precisamente uma vasta área às proximidades de Itajuípe, "capital do território" (LP, pág. 2), segundo palavras do próprio Adonias.

A ação que movimenta a narrativa é a guerra entre dois "povos": os plantadores de cacau e os caçadores. No meio do território de uns (plantações de cacau) e de outros (matas), o território do "povo da várzea". Conforme diz o novelista, a terra gera a guerra (ou melhor: a disputa por esse bem é sua causa): "É a terra, conquistada a fogo e a machado, provocando a guerra – uns contra outros – gotejando o sangue onde se plantava a semente" (LP, 2).

Os cacaulistas querem produzir mais. E, para isso, precisam de mais terras. As da várzea não servem – a não ser para plantar cana e para a criação, diversificada mas diminuta, de animais: galinhas, bovinos, caprinos, etc. ( o que já é feito comunitariamente pelo "povo da várzea", negros remanescentes de antigo quilombo) – fato esse a induzir à invasão e ao desmatamento da selva, espantando e extinguindo a caça, liquidando de vez o modus vivendi do povo de caçadores, que reagirão ferozmente.

A guerra, pois, move duas forças em contraposição, que acabam por se confrontar dentro dos limites do território dos negros, que nada teriam a ver com o conflito, exceto por seu território – muito fértil – estar localizado entre os dois fortes oponentes. Então, urge uma escolha: permanecer e enfrentar o fogo cruzado, ou fugir e encarar as agruras de espaços territoriais hostis, tais como a selva e o semi-árido, destino final dos negros, "o lado morto do território" (LP, 129), conforme o autor registra.

Simoa, moça adotada por Sabina e seu marido Rozendo (dono de uma venda ali na várzea) é a protagonista desta história. Foi achada por uma viúva de pescador, de Ilhéus: "Uma semana de nascida. Na areia úmida, as águas lavando o corpo, a pretinha não chorava" (LP, 133). A viúva morreu. O delegado de Itajuípe e sua mulher, como último pedido da viúva, que morreria em seguida ("Entreguem ela ao povo da várzea (LP, 133)".), deram-na para o casal, dizendo-lhe que a viúva lhe chamava Simoa.

É Simoa, apoiada pelo líder comunitário Honório, convence a todos da comunidade a empreender a jornada de escape, guiada por Naro, filho de Chico Lontra, líder dos caçadores, que muito a contragosto libera o filho para a empreitada, dizendo: "Meus olhos apodreçam se abençoar você" (LP, 140).

Muito pouco é revelado sobre a guerra ou sobre os plantadores de cacau. Um pouco mais ou menos é dito sobre os caçadores. Possivelmente porque a axiologia eufórica é notória no que diz respeito aos remanescentes do quilombo, seu território, religiosidade, senso de coletividade. Já em relação aos caçadores, tal axiologia vai esmorecendo, só em alta conta o fato de serem comparados a ecologistas de agora, pois "dispersos em grupos, acampados como índios, protegiam a selva e a caça (LP, 127)". Pelas palavras a seguir, percebe-se que valores negativos a instância enunciativa atribui aos cacaulistas: "Invadiram os rumos aqueles brutos, palmo a palmo, destruindo as florestas (LP, 127)". Na verdade, em graus diferentes, a axiologia é disfórica em relação a caçadores (um pouco menos) e plantadores de cacau (aqui, totalmente), como se vê em "Os brutos da selva e as feras do cacau seriam capazes de tudo (LP, 127)".

Quem vence a guerra? Não importa. Poderia ser assunto para continuar esta novela, como o diria bem Moisés, no seu Dicionário de termos literários: "O novelista procede de tal modo que, não obstante atenda às aspirações do leitor, deixa algumas aberturas finais na direção de novas aventuras (DTL, 368)." O fato relevante é que Simoa, ajudada por Naro e aconselhada por Honório e Sabina, leva seu povo para o deserto. Lá, a provação, principalmente a sede, e após, a fome iminente, seguida da desconfiança e falta de fé nos orixás, constantemente referidos no texto, aumentam a tensão dramática e conduzem a história para o surpreendente desfecho: a transfiguração de Simoa em Iansã (sempre indiciada desde o início da novela), senhora das tempestades, raios e ventos.

Estas são as últimas linhas da novela: "E debaixo de seus pés, onde pisava, a água nascia, água doce, como se viesse de Oxum. Água que enchia os canais, as cavidades, o pó virando barro. Continuou andando, Naro a seu lado, atrás, os negros. Viram, todos viram quando sumiram no fundo da fronteira, em caminho do mar (LP, 147)".

A partir de agora, segue "uma" análise embasada no livro Teoria do texto, de Salvatore D'Onofrio (TT, págs. 54-104), em alguns aspectos; noutros, conforme a conveniência, usaremos fundamentos mais tradicionalmente já assentados, com base no livro Como analisar narrativas (CAN), de Cândida Vilares Gancho:

1. Plano da enunciação: o narrador é pressuposto do tipo onisciente neutro, que se coloca atrás e acima das personagens, mas relativamente, em decorrência de certos julgamentos de valor:

"Poderiam entrar na várzea, esmagando o canavial, incendiando as casas,matando as mulheres e os meninos. Assassinos, todos eles!"

Na terminologia proposta por Genette, o narrador seria extradiegético.

2. Plano do enunciado: três níveis de análise:

a) nível fabular: a história:

Propp: podemos identificar o dano, o pedido de socorro, a partida, o deslocamento espacial, a tarefa difícil, a transfiguração, o "casamento".

• Greimas: programas narrativos de estado conjuntivos e disjuntivos: o povo da várzea está , a princípio, em conjunção com a felicidade, por exemplo.

• Barthes: funções: núcleos: a decisão do povo da várzea de partir; o encontro entre Naro e Simoa; a decisão de Naro de guiar o povo; a "permissão" de Chico Lontra; o início da guerra; a transfiguração de Simoa. Catálises: a chegada de Naro à várzea; a ida de Naro até a casa do pai; o percurso pela selva. Índices:

"Sabina a surpreendera na janela com os olhos nas estrelas do lado do mar" (LP,134); " a voz de Simoa era como se houvesse maresia no ar e o cheiro de praia destruísse a resina. Voz sem palavras, apenas o som, salgava a terra por baixo da relva e das raízes." (LP, 142)

Informações: (falsas, pois são índices, na verdade)

"Uma semana, para Orixalá, é menos que um segundo. Para os negros, porém, foi mais que um mês" (LP, ; "a jangada com o nome de Janaína".

b) nível actorial:

Personagens quanto ao papel desempenhado no enredo:

Protagonistas: Simoa seria a protagonista a heroína, fazendo par com Naro (assim como poderíamos considerar a coletividade do povo da várzea).

Antagonistas: opositores dos protagonistas, plantadores de cacau e caçadores.

Secundários: menos importantes, como o dlegado e sua mulher, por exemplo.

Personagens quanto à caracterização:

• A maior parte deve ser classificada como planos, devido à pouca complexidade apresentada por eles. Só Simoa e Naro têm espaço para agir e apresentar maior complexidade, apresentando mudanças, transformações no decorrer da narrativa. Chico Lontra, por esse aspecto, também. Seriam considerados esféricos.

c) nível descritivo: as determinações espaciais e temporais:

Os espaços, do ponto de vista axiológico, podem ser vistos na obra como eufóricos, já que considerados locus amoenus (a várzea, para os negros; as matas intactas, para os caçadores), ou disfóricos, já que considerados locus horrendus (a várzea destruída, a mata desmatada, o deserto, para onde seguem os negros). Para Gancho, é necessário estabelecer diferenças entre espaço e ambiente (CAN, 23). Espaço é o lugar onde transcorre a ação, no que diz respeito ao aspecto físico; já o ambiente seria mais psicológico, depende da moral, da cultura, do grupo social. Segundo Dimas, em Espaço e romance (ER, 20-22), a ambientação pode ser franca, reflexa e dissimulada. Na novela, é predominantemente, franca: o narrador introduz a história diretamente a partir de uma caracterização espacial.

O tempo, do ponto de vista da enunciação, em "Simoa", não é linear, é, segundo terminologia empregada por D'Onofrio, invertido. Apresenta Simoa já na idade adulta, depois, utilizando-se do recurso da analepse, retoma o tempo do nascimento da heroína:

"Simoa se aproximou de Sabina. (...) a blusa de chita não abrandando a dureza dos seios ..." (LP, 130).; "Uma semana de nascida, talvez." (LP, 133)

Pode-se perceber uma espécie de prolepse no trecho "Orixalá sabia, não podia se enganar, Simoa salvaria o povo." ( LP, 138)

Do ponto de vista do enunciado, o tempo é, visivelmente cronológico: "Os dias de trabalho" (LP, 125); "O arruado no domingo"(LP, 131); "naquele meio-dia" "A estaçãodas borboletas" (LP, 135)