Uma Intriga Internacional

Por Romano Dazzi | 03/10/2009 | Contos

UMA INTRIGA INTERNACIONAL

 

Eduardo fechou a janela da sala, trancou a porta da cozinha e sentou-se na poltrona azul do corredor.

- Renata, vamos? –

- Já vou, estou quase pronta, mais um momentinho!

Dois minutos depois Renata apareceu deslumbrante, no topo da escada.

Vestia saia azul marinho, blusa chemisier branca, de seda, de amplas mangas compridas e com um decote discreto.

Um colar e brincos de pérolas, simples, mas elegantes, um penteado sóbrio, um toque de perfume agradável.

Estava radiante, alegre.

O jantar prometido meses antes, estava para acontecer.

Destino, o Terraço Itália, no Centro da Cidade, para festejar cinco anos de casamento.

Sozinhos, desta vez, deixando para trás amigos, colegas, conhecidos e parentes, com os quais acabavam sempre dividindo o prazer das reuniões.

Mas esta era uma ocasião especial.

Só para eles dois; enfim!

Eduardo olhava-a embevecido, enquanto ela descia lentamente a escada.

Estava feliz por ter uma esposa tão bonita, inteligente, culta e preparada...

Queria que tivessem uma noite especial, inesquecível, que ambos mereciam.

Nos cinco anos de casamento, haviam enfrentado a luta diária com fé e seriedade, consolidando suas posições nas empresas em que trabalhavam, conquistando seu espaço; e haviam sido bem sucedidos na empreitada.

Só para registro de crônica, ele era Vice-presidente da filial de São Paulo da A.J.Taylor, conhecida investidora internacional de recursos privados, provenientes em grande parte do Estado de Illinois; e ela era analista-chefe da Wakhum Brothers Corp, especializada em estudos de viabilidade para firmas interessadas em aplicações no Brasil.

Ambos os cargos os empenhavam profundamente e ocupavam todo o seu tempo.  

Aproveitariam a vida mais adiante; teriam muitos anos para colher os frutos do seu trabalho.

 

Eduardo ligou o carro, saindo diretamente da garagem.

Era uma noite comum, de semana; depois das nove o trânsito era mais calmo e em poucos minutos estavam na frente do Edifício Itália.

Deixaram o carro com o manobrista, que lançou um olhar apreciativo para a figurinha esguia de Renata.  Ela esboçou um leve sorriso.

O elevador levou-os ao 37 e de lá, pelo privativo, subiram ao 41, no topo.

O Maitre, já conhecido, reservara uma mesa especial, no canto sul da sala.

O panorama, apesar do contínuo crescimento dos arranha céus nos últimos anos, continuava magnífico, abrangendo a cidade toda, cintilante, lá em baixo.

- Você está bonita, hoje, Renata; mais bonita que nunca. Como você faz para se superar assim? – brincou Eduardo.

- É a felicidade, meu amor. Ela apaga o cansaço, deixa o rosto sem rugas, estende a pele, molda as expressões. Não está vendo? 

- Vejo, vejo! Mereço os parabéns, por ter escolhido uma moça tão bonita!

- Alto lá! Você não escolheu ninguém! Fui eu, que escolhi você!

- E você só me diz isso agora!

 

 

 

 

- Mas vá desacostumando: a nossa festa vai acabar logo; fazemos trinta e dois anos o mês que vem... Estamos ficando velhos, Eduardo! O que será de nós? - choramingou Renata, continuando a brincar, enquanto pedia um pouco mais de vinho.

Ela sentia-se a vontade, Eduardo a mimara muito, nas últimas semanas.   

Um aperitivo leve, um cardápio difícil de ler, por causa da iluminação soft, e logo Eduardo convidou-a para dançar.  

Duas músicas apenas, e voltaram à mesa, para iniciar o jantar.   

 

Mas os pensamentos do Eduardo não eram os de uma pessoa sossegada, em paz com ela mesma.

Na segunda feira anterior, Renata dissera, de repente:

- Sabe, Eduardo: gostaria de ter um filho!

E o dissera com um sorriso tão doce, com uma expressão tão suave, como se já o estivesse esperando; e sem dúvida estava pronta para isso.

Eduardo tremera com essa possibilidade, desde aquele primeiro momento.

Ficara imóvel, surpreendendo a esposa com uma inércia inesperada, uma falta de reação, indicando que ele não concordava.

Ele simplesmente não se sentia preparado.

O assunto foi posto de lado naquele momento, mas voltaria na primeira ocasião favorável.

 

Eduardo achou que esta seria a ocasião melhor.

Um instante em que a intimidade favorecia as confissões e a compreensão.

Um instante em que poderiam analisar, juntos e pacificamente, um dos maiores demônios dele: o medo, quase patológico, da paternidade.

- Renata, não acha que deveríamos esperar um pouco, antes de decidir ter um filho? Assim poderíamos juntar alguns outros momentos inesquecíveis como este . ... O que você me diz?

- Não, Eduardo: não quero esperar. Não tenho tempo; não quero ser uma mãe-avó; quero um filho, agora. Preciso. Meu relógio biológico me diz que este é o momento certo. Não tem como fugir; não tem porque esperar.

- Mas Renata, você não entende! A decisão de ter um filho é um assunto grave; o mais importante de toda a nossa vida.  Não estou pronto. Não posso aceitar uma situação inteiramente nova, como esta.

- O que deu em você, Eduardo? O trabalho é todo meu, o problema é meu; são nove meses de adaptação e de sacrifício; você não vai fazer nada... Quero dizer, quase nada. E depois “daquilo” pode até me esquecer.

- Não é bem assim, amor; todo o nosso planejamento vai sofrer; vamos ter que enfrentar um mundo de novas obrigações; preocupo-me com o que pode acontecer com você, Renata. ...

- Então você acha que a gravidez vai ser divertida? Vou arrastar-me por aí, com dificuldade para fazer qualquer trabalho, com enjôo, numa dieta rigorosa, meu corpo disforme, mil sintomas estranhos, o receio que alguma coisa possa não dar certo; e depois, as dores do parto, a dúvida que os médicos me escondam algum problema... Sem falar na trabalheira que uma criança dá!...

- Mas é justamente disso que estou com medo! Quero prolongar por mais alguns anos a nossa situação atual. Não suportaria novas preocupações!

Estavam em posições opostas, a quilômetros de distância.

A discussão se arrastaria por horas, e não chegariam a nenhuma conclusão.

Resolveram parar, momentaneamente,.

Mas a atmosfera tinha sido quebrada, aquela aura romântica se desfizera, a noite estava perdida.  

Eduardo pediu a conta, alegando uma dor de cabeça dela; e ela, uma indisposição dele; cinco minutos depois estavam no carro, acabrunhados, sem saber se deveriam retomar o assunto – e de que maneira.

Do jeito que estava, enquanto alguém não cedesse, não haveria solução.

O carro subiu lentamente a rampa da garagem, saiu na Avenida Ipiranga, virou a direita na primeira esquina. Entraram na Avenida São Luiz.

 

 

De repente, um solavanco; outro; mais um; um carro atrás, empurrando com força o deles.

Eduardo instintivamente freou, depois tentou acelerar, ao perceber que não era um simples acidente.

Mas encontrou o caminho bloqueado por um outro veículo preto, de vidros escuros, sem chapa. Com certeza, um carro roubado.   

Não pôde fazer nada.

Deu apenas duas buzinadas, quase por reflexo, e parou o carro.

Dois grandalhões, surgidos do nada, cercaram-no, de armas em punho, obrigando o casal a abrir as portas e sair. Foram empurrados correndo para o carro da frente, e enfiados nele à força.

-Entra, entra ai, depressa! - gritavam os assaltantes – cala a boca, senão te mato!  Vamos, vagabundo! Depressa, depressa! Anda. Fica quieto! Olha para o chão! Não levanta a cabeça, senão leva bala!

Não tiveram a mínima possibilidade de resistir, de fugir, de gritar.

Apenas obedecer, tentando não se mexer e não dar a idéia de uma reação.

A coisa toda deve ter durado no máximo vinte segundos.

Ninguém, em volta, pareceu perceber o que ocorria.

O carro preto saiu cantando pneus, entrando na Consolação em alta velocidade, enquanto o carro do Eduardo, parado na avenida, atravancava o trânsito, criando rapidamente uma grande confusão. 

Dois policiais chegaram logo, mas o carro dos bandidos tinha sumido e àquela altura com certeza já teria atravessado a Paulista, rumo aos Jardins. 

Depois do primeiro momento de pavor, o casal percebeu que não se tratava de um assalto comum, mas de um seqüestro, organizado cuidadosamente; e ocorrera na maior calma, numa ação rápida e surpreendente.  

Um dos assaltantes guiava com perícia, enquanto outro, apontando uma pistola, exigia que os dois ficassem deitados, encolhidos no piso do carro, sem falar, de olhos fechados.

O carro balançava perigosamente e o casal sentia-se empurrado com violência de um lado para outro; mas esta era a menor de suas preocupações.

Estavam apavorados, sentiam a morte chegar e não poderiam fazer nada, nem lutar, nem reagir, nem mesmo se mexer. Só parar e esperar.  Assim seria menos doloroso.

Finalmente, talvez uma meia hora depois, o carro parou.

Um dos bandidos abriu a porta, eles saíram.

Estavam no meio do nada, na escuridão.

Uma trilha no mato raso, sem o menor indício de onde se encontravam.

Fizeram o Eduardo esvaziar os bolsos e ficar ajoelhado, enquanto o revistavam.

Examinaram à luz de uma lanterna os documentos, os cartões de crédito, todos os papéis da carteira. 

Ficaram murmurando um tempo, trocando breves monossílabos e finalmente um deles gritou ao outro: Vamos cair fora, cara! Larga eles aí! Vamos embora! Vamos!

Soltaram ainda algumas imprecações e entraram apressadamente no carro, que partiu em seguida, sacudindo pela trilha e deixando um rastro de poeira.

Na fuga, ainda jogaram pela janela alguns documentos, que se perderam na escuridão. 

Atarantados, Eduardo e Renata ficaram por um bom tempo imóveis, como se os assaltantes ainda estivessem apontando as armas, ou a ponto de voltar, a qualquer momento, para matá-los

Depois, sem trocar uma única palavra, saíram correndo daquele lugar, de mãos dadas, em sentido contrário ao do carro, procurando fugir, afastar-se de um perigo iminente.

Só pararam uma centena de metros adiante, ambos sem fôlego e sem forças.

Descansaram um pouco, apenas o suficiente para a respiração retornar ao ritmo normal.

Depois, continuaram a afastar-se, agora caminhando apressadamente, retesados, rígidos, ainda sob uma intensa reação nervosa.  Renata, carregando na mão os sapatos de salto alto, nem sentia que o pedregulho machucava-lhe a sola dos pés.

Não saberiam dizer por quanto tempo caminharam; quando se deram conta, estava quase amanhecendo. Estavam em pleno campo, Não havia a quem pedir socorro.

Só então começaram a sentir os pés doloridos, as pernas inchadas pelo esforço e acima de tudo, um redemoinho de sensações aterradoras.

A repentina redução do nível de adrenalina tirou-lhes as poucas energias restantes, deixando-os esgotados, incapazes de andar mais um único metro que fosse, ou de formar um só pensamento. 

Desabaram, quase desmaiados, na grama úmida.

Foram acordados mais tarde, já de manhã, por dois rapazes de bicicleta, que os avistaram da trilha.

Os rapazes não acreditaram na história que ouviram, mas chamaram a Polícia.

Não estavam longe da cidade. Estavam no Embu – o Embu das Artes, como o chamam, uma Cidade na parte Oeste da Grande São Paulo, afastada uns dez quilômetros da Marginal.   

Logo um carro de polícia apareceu para recolhê-los.

Os dois foram levados à delegacia, onde cansados, famintos, sujos e se sentindo os mais miseráveis habitantes deste mundo sem lei, tiveram que registrar a ocorrência, prestar queixa: o assalto, o sequestro, o desaparecimento do carro, o roubo dos documentos; e tiveram que repetir inúmeras vezes, nos mínimos detalhes, tudo o que haviam passado.

Não houve uma única declaração, que o delegado de plantão não contestasse.

- Primeiro: se tudo aconteceu como estão contando, o carro não desapareceu: foram vocês que o largaram no meio da rua; portanto, não cabe um boletim de ocorrência, mas uma multa por estacionamento proibido, ou por abandono de veículo na via pública. A causa do abandono é irrelevante, para a Lei.

 - Segundo: se viram os “supostos” ladrões – nada confirma que fossem mesmo ladrões, como vocês afirmam -, como é que não conseguem descrevê-los, dar-nos algum detalhe, para que possamos identificá-los? Como querem que acredite numa história destas?

- Terceiro: os documentos também não foram roubados. Quando viram que foram jogados fora, deviam ter corrido para buscá-los e não deixa-los lá, no meio do mato, vindo depois aqui para queixar-se de um roubo. Vocês mesmos podem ter dado sumiço neles. Ainda acho que estão mentindo.

- Quarto: não tenho provas que vocês não sejam coniventes com os pretensos assaltantes. É possível – digo “possível”, sem afirmar nada – que tenham feito amizade com essas pessoas na própria boate em que estavam...

-Boate, coisa nenhuma, doutor! Estávamos no restaurante do Terraço Itália!

-Bem, vá lá que seja no Terraço; mas lá também tem uma boate e podem ter saído todos juntos, quem sabe, até bêbedos; depois, por qualquer motivo simularam um assalto, um sequestro, sei lá mais o quê. Pode ter havido um desentendimento na partilha de algum furto e os outros foram embora, largando vocês no mato.

Nada vi até agora, que caracterize um crime. Resumo: não houve nada.

Continuem normalmente as suas vidas.

Mas fiquem sabendo que esta coisa não me cheira bem.

E garanto-lhes que vou até o fim!.

 

O Eduardo irritado, nervoso, ofendido e ridicularizado, por pouco não esganou o delegado lá mesmo.

– Quem vai até o fim, sou eu, doutor! Lembre-se bem disso! Vai descobrir logo com quem está se metendo e vai se arrepender amargamente de sua leviandade!–

Não tinha dito um décimo do precisava, para desabafar; queria continuar, mas desistiu diante do desespero da Renata, que só queria sair dali; certamente, porém, ele faria o possível para fazer o delegado pagar por sua atitude pouco profissional.

Eduardo não era homem de prometer coisas à-toa. E já pensava de fato em alguma maneira de se vingar.

 

Finalmente chegaram em casa e começaram a longa série de contatos e telefonemas necessários para “continuar normalmente a vida” como tinha sugerido ironicamente o delegado.

Logo perceberam que durante a noite anterior, alguém havia entrado na casa e remexido cuidadosamente em todas as gavetas, do quarto, do escritório, da biblioteca. Metódicos como eram, os dois notaram isso distintamente e telefonaram ao Dr. Carbone, advogado, amigo da família do Eduardo, que providenciou logo um boletim de ocorrência na delegacia dos Jardins.

 À tarde, o perito da polícia viria fazer um levantamento. Recomendou que não mexessem em nada.

Mas outro fato, bem mais grave e impressionante, tinha acontecido na noite anterior; Eduardo percebeu, desde o primeiro telefonema, que algo importante tinha virado de ponta-cabeça a firma .

Emilia, a telefonista, apenas cumprimentou-o e passou a linha a um policial, certo Dr. Rebim, que se apresentou como encarregado das investigações do “caso Taylor” , como ele o chamou.

- Mas não existe nenhum “caso Taylor”! Esbravejou o Eduardo.

- Agora existe – respondeu friamente o Dr. Rebim. – “o Diretor Presidente Growler está morto.”

- Mas como foi, o que aconteceu, onde, quando? – chegou a perguntar o Eduardo.

Mas o Dr. Rebim foi peremptório.

– Venha imediatamente para cá. Espero-o dentro de meia hora; caso não se apresentar nesse prazo, vou emitir um mandato de captura contra o senhor e de busca e apreensão de tudo o que for útil para esclarecer os fatos. Considere-se desde já um suspeito e indiciado principal. Bom dia.

E desligou, deixando o Eduardo de queixo caído, sem saber o que pensar.

Eram tantas as coisas que tinham acontecido e estavam acontecendo desde o jantar perdido, tantos os sustos e as surpresas, que os dois custavam a encarar a realidade.

Mas não acabariam aí; ao meio dia, Gisele, a secretária da Renata na Wakhum Bros. telefonou perguntando aflita por um dossiê sigiloso, que deveria estar no cofre da sala da Renata, e que havia sumido. Continha informações confidenciais importantes às quais só o presidente, Renata e a própria Gisele tinham acesso. 

 

Imediatamente relacionaram os quatro fatos .

Eles, assaltados; o Dr. Growler, morto; a casa, vasculhada; e agora, um dossiê desaparecido!  Quantas coisas estranhas estavam acontecendo! Mas não havia no momento, nenhuma resposta, nenhuma pista. 

Pior: o investigador – qual era mesmo o nome dele? Rabin? Rebam? – tinha sido tão áspero, que deixava imaginar um crime, não uma morte natural. O Dr. Growler era uma pessoa ativa, esportiva, saudável; a hipótese que tivesse morrido por causas naturais era improvável – impossível, arriscou o Eduardo.. 

Quanto menos informações se tem, maior é o numero de perguntas que se fazem.

Mas quando não há respostas, as perguntas repetem-se, repercutem, ecoam na cabeça das pessoas, obrigando-as a um contínuo trabalho mental de pesquisa, extremamente cansativo.

 

 Eduardo e Renata olharam-se fixamente nos olhos, e sentiram que nas últimas vinte horas tudo havia mudado.

Sentiram que aquela parede segura, atrás da qual pensavam estar protegidos, esfacelara-se. Não havia mais paredes seguras. Ou talvez, nunca tivesse existido.  Era apenas uma ilusão.

Estavam indefesos, vulneráveis a qualquer ataque, sujeitos às dúvidas, às insinuações, às intimidações dos que os conheciam e trabalhavam com eles.

Estavam os dois, sozinhos contra o mundo.

Não dispunham de nenhuma arma: tinham apenas um ao outro. 

 

 

Do outro lado da cidade, no antigo bairro do Tatuapé, um modesto e velho sobrado resistia bravamente aos avanços do tempo, das novas avenidas e da arquitetura vertical, que transforma o passado em ruínas e o presente em minúsculas e incômodas casas de abelhas.

Nele, o velho professor Surtani, advogado criminalista aposentado, descansava à sombra de sua enorme mangueira.

Ele mesmo a havia plantado cinqüenta anos antes e fizera dela uma amiga e protetora por mais de quarenta verões.

A amizade entre o homem e suas árvores é proverbial; se ele se esforçar em não incomodá-la, não atacá-la, não podá-la – apenas o necessário, é claro – ela oferece-lhe frutos saborosos, sombra acolhedora e ampla possibilidade de reflexão e de consolo. 

O Professor Surtani era o avô materno da Renata e não raro a havia aconselhado e guiado, em seus estudos.

Continuava com seu jeito modesto e tranqüilo, com sua pacífica forma de ver o mundo, no qual existem, como repetia sempre:

“Uma única, tímida justiça e um número incontável de injustiças arrogantes....”

Ele tinha razão: hoje em dia, inúmeras injustiças apresentam-se vestidas com roupas brilhantes, parecendo legais, legítimas, lícitas, honestas; mas continuam sendo injustiças.

Limitava-se a olhar, a assistir, de longe; mas dizia-se que na maioria dos julgamentos mais clamorosos, havia sempre uma orientação dele, pedida e acolhida com respeito pelos juizes mais famosos.  

O professor Surtani estava naquela fase da vida em que tudo já foi ouvido, visto e pensado; não há muito mais a aprender. Mas há sempre muito a ensinar.

Pois isso ele fazia todos os dias, transferindo aos alunos, cada vez mais raros, o tesouro de sua sabedoria, acumulado em décadas de trabalho.

Ficou contente quando viu Renata e escutou atentamente o relatório dela.

Franziu várias vezes a testa, puxou e coçou repetidamente as sobrancelhas, apertando os olhinhos ainda vivos, como a procurar algo no futuro, além do pouco que a sua vista já fraca lhe permitia enxergar.

Por fim, pediu-lhe que repetisse a descrição toda, sem omitir nem esquecer nada, a um juiz conhecido, ao qual telefonou, avisando-o sobre a visita da neta.

- Por agora, não posso fazer mais nada – disse tranquilamente – mas estarei de prontidão. Avise-me imediatamente sobre qualquer novidade. Fique sossegada. Quem não deve.....- mas retratou-se a tempo e mudou o ditado:- é bom que sempre tema um pouco, porque nunca se sabe de que é capaz uma mente perversa.

 

Renata dirigiu-se logo depois à casa do pai, o Dr. Albertini, proprietário de uma firma que tinha o seu nome; era uma transportadora, média, especializada na mudança de objetos valiosos e delicados. 

Ele morava numa rua tranqüila – quase escondida, diríamos – no Morumbi. As poucas pessoas que passavam por lá eram em sua maioria empregadas domésticas, babás, jardineiros, motoristas.  Uma empresa conhecida executava discretamente o serviço de segurança daquele conjunto de umas vinte casas, não luxuosas, mas cômodas, agradáveis e bem localizadas.

 

Renata abraçou efusivamente o pai, e contou-lhe o que já sabemos. 

- Ficou assustado, Papai? – perguntou-lhe no fim.

- Estou acostumado com os altos e baixos da vida, com seus desvios e suas surpresas, Renata. Nada me assusta mais. Vamos tomar um café e depois escolheremos as armas para esta nova batalha! 

Ele parecia animado e ansioso por iniciar o trabalho que Renata, sem citá-lo diretamente, havia colocado diante dele.

-Você sabe que eu sempre fui um homem prático. No ramo de transportes enfrento muitas vezes situações de emergência; por exemplo, um assalto a um caminhão que leva obras de arte, é muito mais freqüente do que aparece nos jornais...

- E como faz para resolvê-lo, Papai? 

- Quase sempre de maneira “civilizada”, intermediando um acordo entre os assaltantes e o seguro.

- O seguro? Como assim?

- As companhias de seguro sabem que uma parte dos altos prêmios que recebem deve ser redistribuída e não olham o problema com excessivo rigor.

- Mas então, você sabe como “trabalhar” com essa gente, não é?

- Bem, não é tão simples. Eu tenho um arquivo confidencial, no qual são registrados os pormenores de cada assalto; quantas pessoas foram, a descrição de cada uma, a maneira como a ação foi conduzida, o tempo usado, armas, meios de transporte, o “modus operandi”, enfim.

- Mas como conseguem obter essas informações?

- Filha, não vai pedir também a água benta, depois de saber o milagre; temos inúmeras fontes; conseguimos informantes com dinheiro, dentro ou fora da cadeia; às vezes usamos o ciúme, o orgulho ferido, a inveja ou problemas familiares. As pessoas observam e falam. Nós registramos.

- E para que servem essas informações?

- Para descobrir o autor. Todo crime, todo assalto, toda operação ilegal, tem suas características. Pela maneira como é montada e executada, sabemos quem a programou, com certeza absoluta. É como uma assinatura.  Não há como errar.

- Então é um jogo de gato e rato: a cada movimento deles, você faz o seu...

- Não. Eu acho que é mais uma partida de xadrez: as nossas torres e os nossos bispos, contra os deles....os peões servem apenas como cobertura. São descartáveis.

- E a polícia?

- A Polícia investiga, procura com seus próprios meios; às vezes colaboramos com ela, juntando detalhes e aperfeiçoando o quadro.

- Renata estava visivelmente interessada e envolvida na conversa; e avançou a pergunta-chave: existe uma Rainha?

- Sim, meu bem: independente da polícia e das justiça, existem duas poderosas Rainhas, uma de cada lado do tabuleiro, cada uma de uma cor, ambas inteligentes e capazes. São elas, na verdade, que mandam no jogo.

- E quem são?

O Dr.Albertini fechou a expressão, o rosto retesou-se, toda a figura dele ficou curva, numa atitude de defesa; por um breve instante, que pareceu à Renata incrivelmente demorado, segurou a respiração, liberando por fim um longo suspiro.

- Não. Não posso dizer nada, Renata.  Desculpe. Segredo profissional. Quem possui esta informação corre perigo. É um jogo complexo, com apostas muito altas. Esqueça-se de tudo isso, para o seu próprio bem.

 

Renata despediu-se e correu para casa.

 

O Dr. Albertini apertou o interfone:

- Venha à minha sala, por favor; traga-me o dossiê do Comando 14 bis. -

Logo apareceu um mulato claro, alto, de olhos inteligentes e inquiridores.

- Domingos, tenho um serviço para o qual preciso de alguém de total confiança.

- Estou pronto, Doutor.

- Bom. O noite passada foi bastante agitada: Minha filha e o marido foram levados até perto de Embu e deixados no mato. Tem o jeito de um sequestro relâmpago, mas pensamos que os alvos fossem outros. O diretor geral da Taylor, morreu no mesmo horário. Ainda não sabemos se foi assassinado, mas há uma forte probabilidade. E por fim, a casa da Renata foi visitada. O invasor mexeu em tudo cuidadosamente, mas deixou um rastro. Parece que não levou nada.

- Uma sopa e tanto, doutor – comentou o Domingos, enquanto remoia as informações.

O Dr. Albertini deixara de mencionar, de propósito, o sumiço do dossiê do cofre da Wakhum; e continuou:

- Pelo que escutei, o “trabalho” foi feito ao “estilo” do Comando 14 bis; vamos conferir os detalhes que minha filha me forneceu.

Este é o primeiro ponto. É o mais importante e urgente.

O resto veremos depois.

Vire-se, mas depressa.

Alguma coisa muito grande está fervendo por aí.    

E encerrou a conversa.

 

 

Eduardo, depois do telefonema do Dr. Rebim, revirou as pastas, os cadernos da firma, os documentos sigilosos que tinha no cofre e separou em duas maletas aqueles que a polícia não deveria ver.

Nada tinha a temer; mas eram papeis que, se chegassem ao conhecimento dos concorrentes ou dos adversários comerciais, poderiam incomodar bastante e até fazer a empresa balançar.

 

Dez minutos depois, deixadas às maletas displicentemente amontoadas numa prateleira da garagem, saiu a pé, para se apresentar ao delegado Rebim. 

 

O policial de plantão encaminhou-o à sala do delegado, que veio atendê-lo sem demora.

Era um homem de meia idade – uns 45 anos, talvez, completamente careca, mas com um bigode avantajado e uma barba bem tratada, mas esquisita, grossa, cheia, que lhe dava aquele ar hierático próprio das imagens sacras.

É estranho – pensou Eduardo, cujo pensamento voava, para se afastar dos seus problemas mais urgentes - como nos homens os cabelos desaparecem da cabeça e reaparecem pelo resto do corpo todo.  

O Dr. Rebim apresentou-se de maneira formal, estendendo-lhe uma mão morna, solta, com uma consistência indefinida, que impressionou Eduardo.

A sensação estranha desse aperto de mão – se é que era um aperto – levou-o a um passado remoto: lembrou-lhe um fígado de vaca, que a avó lhe tinha mostrado, quando criança, e que ele, curioso, quisera tocar, mas com um aflição que quase chegava a ser nojo.

 

A entrevista – como a definiu o delegado – ou o interrogatório – na interpretação do Eduardo – teve inicio imediato, sem preâmbulos.

Eduardo informou seus dados, endereço, generalidades. Ele sabia que este era apenas um estagio de preparação.  Logo viria o bombardeio pesado.

A atitude do Dr. Rebim não revelava nenhuma simpatia, nenhuma tentativa de agrado.

Era estritamente profissional.

Eduardo, apesar de não conhecer nenhum pormenor, intuía que algo de muito grave pesava na sua cabeça e agia com cautela, falando o mínimo possível e respondendo quase sempre com monossílabos às perguntas cada vez mais específicas do delegado.

Depois de indagar sobre o relacionamento dele com o Dr. Growler, finalmente, o delegado soltou a bomba.

- Caso não saiba, o Dr. Growler foi assassinado ontem, no “seu” escritório, Senhor Eduardo, com um tiro de revolver.

- Assassinado?

- Sim., assassinado. Agora, por favor, limite-se a responder às minhas perguntas: onde o senhor estava às 21 horas de ontem?

- Assassinado?  Soube que ele tinha morrido. Pensei em um ataque de coração, em um aneurisma, outro problema de saúde ...mas... assassinado?!!!

O delegado estava perdendo a paciência; levantou a voz, repetindo:

 - Responda, senhor Eduardo: Onde o senhor estava às 21 horas de ontem?

Só então o Eduardo pareceu acordar, saindo de um pesadelo.;

- Às nove da noite? Estava no carro, indo de minha casa ao Terraço Itália

- Sozinho?

- Não. Com minha esposa, Renata

- Quem tem as chaves da sua sala no escritório da Taylor?

- Que eu saiba, além de mim, só a Rafaela, minha secretária, e o pessoal da limpeza.

- Conhece alguma pessoa da limpeza?

- Não, nenhuma. É uma firma terceirizada. Estão sempre mudando.

- O Dr.Growler não teria uma cópia da chave?

- Não. Nunca precisaria dela.  A porta foi arrombada?

- O senhor tem uma arma de defesa pessoal?

- Sim.  Mas a porta foi arrombada?

- Qual é a arma?

- Uma pistola Beretta, calibre 6,35; pequena, quase uma arma de senhora...

- Limite-se a responder por favor.  É a única?

- Sim. E nunca foi usada.

- Onde está guardada?

- Na segunda gaveta de minha camiseira

- Nunca a leva com você?

- Não.

- Vou mandar a perícia técnica buscá-la, se permitir.

- Claro.

- E em tempo: a porta da sua sala não foi arrombada

Enquanto o Dr. Rebim falava com a técnica, Eduardo ficou repensando na sua situação.

Estava arrasado.

Agora entendia a atitude rígida, quase agressiva do delegado.

O Dr. Growler morto, assassinado, com um tiro; (um tiro? Ouvira bem? Um tiro só? Não seriam dois? – De onde vinha a idéia de dois tiros?)

Pensava confusamente nas conseqüências desse crime: aqui, na filial de São Paulo, e lá, na matriz de Chicago; e na família do pobre Dr. Growler.

Conhecera-os de passagem, numa de suas raras visitas aos Estados Unidos.  Nem se lembrava dos rostos. Mas sentia pena da viúva e dos dois filhos.

A falta repentina do presidente deixaria a Taylor em sérios apuros.

Várias negociações estavam em andamento e algumas dependiam da grande capacidade do Dr.Growler de convencer até os mais difíceis investidores.

Uma grande perda, sem dúvida; e a necessidade de uma reestruturação imediata.  Sentiu um calafrio, ao lembrar que a única pessoa que se beneficiaria com essa morte trágica e não prevista, seria ele próprio. 

Um herdeiro involuntário, agraciado por uma doação valiosa; de fato, ele herdaria todos os negócios da Taylor, sem ter que dar um centavo à família. 

Era o contrato que haviam assinado oito anos antes, ao formar a sociedade.

Growler, assustado diante do exíguo valor de uma vida na América do Sul, particularmente no Brasil, exigira esta clausula peculiar, que repassava totalmente ao sobrevivente de um possível “acidente de percurso” o acervo da firma.

A voz incisiva do Dr. Rebim trouxe-o de volta à realidade.

- No momento não tenho mais perguntas. - Vou liberá-lo; mas peço-lhe que não saia da cidade; fique a nossa disposição. Quero sua palavra de honra que não fugirá.

- Este ultimo pedido foi interessante – pensou o Eduardo – só se via isso em filmes de cinqüenta anos atrás. Hoje, a palavra de honra não vale mais um caracol. E nem a própria honra.  Quem sabe por que diabos o Dr. Rebim havia dito isso.

Seria uma forma de coagir-me, sem parecer descortês?

- Estou sendo acusado de alguma coisa? – perguntou olhando fixamente o delegado.

- “De nada, absolutamente, Sr. Eduardo; se houvesse a menor suspeita, eu o deteria imediatamente; não gosto de assassinos andando à solta por ai: eles tendem a repetir os erros, pensando em corrigi-los”.

“O senhor está livre, nos limites que lhe fixei.”

Começava a gostar do homem, apesar de ter que apertar-lhe novamente a mão de fígado; tinha bom senso e evitava comentar o que não conhecia.

Foi escoltado até a porta e encontrou-se na rua, assaltado por mil pensamentos e aflito pela preocupação de tantas providencias a tomar.

Entrou em casa dez minutos depois, comportando-se como um robô.

Pior.

Sua programação, se ele fosse um robô, teria sido simplesmente suspensa. Bastaria um comando e tudo retornaria a funcionar.

Mas com os seres humanos a coisa é bem mais complicada.

Informações, comandos, reações e deduções cruzam-se sem parar, aumentando a confusão. É preciso parar, desligar tudo e respirar fundo. 

Deixou-se cair na poltrona azul do corredor, a sua preferida, e.... respirou fundo.

Renata apareceu logo, trazendo um copo de uísque. 

-Estava precisando mesmo! Obrigado, meu amor! – murmurou Eduardo.

E mergulhou de novo em seus pensamentos.

 

 

O Dr.Rebim voltou à sua sala e tentou estabelecer alguns pontos.

a) O álibi do Eduardo era fraco, inconsistente;

b) Entre o assassinato e o registro do assalto, havia um lapso de doze horas.

c) Eduardo conseguiria uma grande vantagem financeira com a morte do Growler.

d) Não havia vestígio de conexões do Growler com um possível assassino. 

Contudo – pensou - um jogo de xadrez não é um jogo de damas. Haverá que derrubar alguns peões, para limpar a área; assim as figuras se movimentarão mais livremente e descobrirão seu jogo.

Não há dúvida que o Dr. Rebim era um apaixonado estudioso da antiga arte do xadrez. Aguardaria a jogada seguinte do seu poderoso oponente. Fosse ele quem fosse.

 

 

 

No fim da tarde, Renata recebeu um telefonema.

- Alo, querida!

- Oi, Vovô, que prazer ouvi-lo! Preciso mesmo de alguma notícia animadora!

- Pois é: comentei o crime – você já sabe que foi um tiro a queima-roupa, não é? - com um dos meus alunos, agora há pouco. Ele é um “foca” da Folha e me disse que estão todos em polvorosa.

- Alguma informação importante?

- Parece que havia muita gente interessada na morte do Dr. Growler. Um grande grupo australiano, com interesses aqui, perderia uma fábula se a Taylor conseguisse trazer um investidor, supostamente de Chicago....

- Mas você não tem outros pormenores, Vovô?

- Isto é o que se comenta. Não consegui saber mais nada. É muito cedo. Vamos precisar de um pouco de paciência. 

- Está bem, mas diga-me algo, quando souber, por favor....

- Como está seu marido?

- Em estado de choque. Os homens são mais fracos que as mulheres....

 

  

No escritório do Dr. Albertini, também havia certo reboliço.

A pasta do Comando 14 bis continha algumas informações importantes: a maneira de planejar e executar uma “missão” (era como as chamavam) batia plenamente com o que o Dr. Albertini já sabia.

Em princípio participavam da ação seis homens.

Dois furtavam um veículo do tipo anônimo, que não chamasse muito a atenção, neutralizavam o rastreador e o alarme; tiravam as chapas e outros sinais de identificação e ficavam com o carro num ponto combinado, numa grande avenida.

Não se comunicavam por rádio ou celular, para não deixar pistas. 

Entregavam o carro a outros dois – que eram os assaltantes de fato - e sumiam. 

Estes realizavam o assalto; mas na hora de entrar no carro, eram substituídos rapidamente pro outros dois, que ficavam de prontidão, sem se envolver no caso e saiam logo de cena. Assim, qualquer reconhecimento se tornaria impossível.

O resto era com estes dois últimos, truculentos, agressivos, no papel de dominadores, que incutiam nas vítimas uma sensação de pânico incontrolável.

Um único, importante detalhe, não combinava com os hábitos da quadrilha.

Nunca haviam abandonado vivo nenhum refém.

Este fato discordante colocava dúvidas sobre os objetivos reais da operação; ou melhor: das operações; porque haviam sido quatro ataques diferentes.

A primeira, o rapto do casal, tinha a marca do Comando 14 bis; as outras – a invasão do apartamento, o desaparecimento da pasta e principalmente o assassinato frio e sem pistas do Dr. Growler, eram ações independentes, mas organizadas com um único fim e por uma única cabeça.

 

Albertini nunca agia diretamente; não lhe faltavam meios para descobrir qualquer trama, mais cedo ou mais tarde, mas evitava qualquer envolvimento pessoal.       

Numa rápida conversa com o Domingos, resolveu que seria útil “puxar” algumas outras informações do Geremias.

Este era um ladrão de galinhas; um coitadinho, não muito esperto, indolente e aproveitador; ficava na periferia do bando, sem nunca chegar perto da cúpula.

Fazia pequenos serviços por conta deles, ou algum furto fácil, por conta própria. Entrava e saia da cadeia três vezes por ano. Era o elo fraco do “Comando”.  

Em geral esses elementos são eliminados ao primeiro erro, porque podem pôr a perder toda a organização; mais raramente, são mantidos no grupo e recebem informações falsas ou incompletas, para confundir a polícia, caso caiam nas suas malhas.

Às oito da noite, Geremias foi colocado num furgão preto, que sumiu rapidamente.

No carro, assustado, contou todo o serviço, pela parte que conhecia.

Confirmou-se assim que a ação tinha sido executada pela Comando 14 Bis.

O mandante era alguém da África do Sul; mas era tudo o que ele sabia. 

Uma hora depois, Geremias passeava de novo pelos bares.

Ninguém percebera sua falta.

 

A noite andava funda quando finalmente o Dr. Albertini recebeu as informações do Domingos. Nas horas seguintes, várias mentes iriam trabalhar no caso, cada uma por sua conta, tentando chegar a entender o que realmente acontecera – e a prever os desenvolvimentos futuros..

 

De manhã bem cedo, a perícia trouxe a arma do Eduardo e a colocou sobre a mesa do Dr. Rebim.

- É uma Beretta calibre 6,35 , quase nova, doutor – resumiu o perito - Mas o número de matrícula foi raspado e ela foi disparada recentemente. Faltam duas balas no pente.  Não há nenhuma impressão digital, como era previsível.

O delegado ficou surpreso e mandou buscar o Eduardo.

Por sorte o Dr. Carbone, aquele advogado, amigo da família, com o qual a Renata havia falado em primeiro lugar, acabara de entregar-lhe a cópia do B.O. sobre a invasão de domicílio. Eduardo seguiu para a delegacia com ela no bolso, e a mostrou ao delegado.

O Dr. Rebim estava azedo.

Alguém de cima o havia cutucado com perguntas embaraçosas e ele se sentia acuado

Precisava sair logo desse enrosco, mas não via como.

Não tinha informações suficientes. Não estava entendendo o porquê de muitos fatos.

Resolveu então mudar completamente sua estratégia. 

- Senhor Eduardo! – falou suavemente, abrindo um largo sorriso, tão largo quanto lhe permitia a barba fechada – preciso muito de sua colaboração. Posso contar com ela?

Eduardo ficou surpreso; esperava no mínimo uma detenção imediata, para averiguações; esta atitude do delegado desarmou-o.

- Claro, doutor! – respondeu mais que depressa – é meu interesse limpar meu nome, o quanto antes. Polícia é ruim para os negócios. Os clientes somem.

- Sinto muito. Mas quero que saiba que, apesar dos indícios, acredito no senhor; acho que é uma pessoa de bem e foi envolvido nesta trama sem ter nenhuma participação nela.  É verdade?

- Verdade, doutor, eu juro.

Então, vamos sentar naquela mesa e tentar desvendar juntos o que aconteceu, pelo pouco que sabemos. Concorda?

- Não quero outra coisa.

 

Sentaram os dois lado a lado e um contínuo trouxe um café recém coado.

- Bem melhor que os costumeiros cafés de delegacia, sempre aguados e mornos – concordaram os dois.

Puseram-se ao trabalho. Numa grande folha de papel foram registrando o que sabiam.

Primeiro, a conversa com a Renata; depois, a discussão; a saída do prédio do Terraço.

- Pode não ser nada – disse lentamente o Eduardo, enquanto refazia mentalmente o que se passara na noite anterior; - pode ser que não tenha a ver com o assunto; mas lembrei-me da olhada estranha do manobrista para a Renata, quando entramos.  Quando saímos, o rapaz não estava mais lá.

- Este me parece um detalhe interessante – confirmou o delegado – anote-o ai, na sua parte da folha.- chamou um investigador e mandou-o buscar o registro de empregados do Auto Parking, que servia o Edifício.

Enquanto esperavam, repassaram os momentos do assalto. Nada de importante emergiu dessa conversa; mas o Eduardo estava visivelmente emocionado e tinha dificuldade em lembrar dos detalhes.

Chegaram ao momento em que o casal fora retirado do carro. Eduardo lembrou-se que o bandido usava luvas – luvas de lã branca, ou clara. Provavelmente era uma pessoa já procurada, fichada, com antecedentes.  Mas para folhear os documentos tirara a luva

Se encontrassem os documentos, poderiam descobrir as digitais do assaltante.

Outro ponto a favor, que logo se desfez: os documentos, se fossem encontrados por alguém, conteriam certamente outras impressões. Aquelas que eles queriam, não seriam mais identificáveis.

O contínuo trouxe os registros do pessoal do Parking.

Nenhuma das fotos chamou sua atenção.

Àquela hora, deviam estar de plantão dois garotos negros, empregados antigos do parking . O rapaz que retirara o carro era branco, alto. 

Não tinha cara de particularmente inteligente. Era provavelmente um aprendiz. 

Não havia o menor sinal dele. Sumira, simplesmente.

Este era mais um ponto a verificar. 

Eram por enquanto apenas hipóteses, sem base ou confirmação; não havia um rosto, um nome. Mas algo estava em movimento.

Ainda estava faltando o porquê, do sequestro. Era nesse ponto, que o trabalho devia ser concentrado. Sem saber os motivos e os objetivos dos criminosos, não haveria resposta possível.

O Dr. Rebim começou a alinhar suposições:

A ação principal tinha sido executada por um grupo profissional.

Tal grupo não tinha interesses diretos no caso

A ação tinha sido encomendada por alguém próximo à Taylor,

Estava ligada a um grande jogo de interesses

Não havia intenção de matar o Eduardo e sua esposa

Mas alguém queria envolvê-los no assassinato do Dr. Growler

A morte deste e a prisão do Eduardo liberariam o campo

Para que? Para quem? 

Os mandantes precisavam de mais informações

Assim, conseguiram entrar na posse o dossiê, através da Gisele.

O Dr. Rebim puxou um suspiro profundo.

Estava olhando um panorama que se configurava lentamente diante dos olhos.

Esse suspiro era apenas um ponto de exclamação.

 

O delegado e o Eduardo estavam agora um passo à frente do Dr. Albertini, mas estavam chegando às mesmas conclusões.

Provavelmente, se conseguissem entrar em acordo e agir em conjunto, descobririam os criminosos em pouco tempo.  Mas não era possível. Trabalhavam em campos paralelos; e duas paralelas nunca se encontram...

 

 

 

Quando chegou a relatar a conversa na delegacia do Embu, o Eduardo não se conteve.  Repetiu tudo o que ouvira e o que dissera, indignado, ao delegado do Embu.

Surpreso, o Dr. Rebim comentou:

- Não há delegado, no Embu. Apenas duas delegadas, duas senhoras, por sinal muito bem preparadas, que se revezam nos plantões.  Quero ser mico de circo, se este fulano que ficou com o seu B.O. for da Polícia. 

- Mas era pelo menos um advogado, doutor!

- Isso é o que vamos ver. Como ele era?  Digo, poderia descrevê-lo?

- Não vi a altura dele, porque me atendeu sentado. Era branco, uns trinta anos, não mais. Tinha cabelo preto, cortado à escovinha, um fino bigode, um brinco na orelha direita. Usava terno e gravata, tinha as mãos muito peludas.

- Conheço um sujeito assim – o delegado estava quase levitando – chama-se...... Silvestre e faz serviços para o Comando 14 Bis!..

- E o que é o Comando 14 Bis?

- Um grupo de criminosos especializados em grandes golpes. Desde arrastões a roubo de carros fortes. São violentos e cruéis. Com eles, não tem perdão. Não conseguimos ainda descobrir o rosto ou o nome de nenhum deles Vou mandar procurar o Silvestre. Sabemos onde ele mora.

Neste momento, um outro investigador entrava na sala.

- Bom dia, Dr. Rebim!

- Bom dia Fernando!

- Sabem quem encontraram morto, hoje, com uma bala no coração?

- Vai adivinhar! Com tanta gente, tantos crimes, tanta confusão, fica difícil, não é? Quem é?

- Lembra-se daquele malandro bem falante que pegamos com a boca na botija, passando-se por policial, no ano passado?

- Quem, o Silvestre?

- Pois é! O Silvestre! Mortinho da Silva!

Eduardo engoliu em seco; então as coisas podiam acontecer assim; você brigava com um sujeito e ele aparecia morto no dia seguinte... Que mundo esquisito! Que sociedade perigosa!

O delegado pensou um pouco,depois se dirigiu a ele:

- Sei que não é assunto para brincar; mas o senhor ontem esbravejou, ameaçou, jurou vingança. Não foi o senhor, não é? Parece um crime encomendado. Veremos os detalhes depois....

 

Pouco a pouco, as coisas avançavam; mas muito lentamente, exasperando a ansiedade dos dois.

A marcha para encontrar a verdade é dura, difícil; o tempo todo aparecem espinhos, complicações, desvios; e neste caso, começavam a aparecer também cadáveres.

 

Tinha chegado o momento de somar os resultados: cuidadosamente montaram algumas peças, desistindo por enquanto daquelas que não se encaixavam.

 

Por exemplo, o furto e a substituição da pistola.

O Dr. Rebim pensava em voz alta:

- Alguém entrou no apartamento, encontrou a pistola depois de procurar bastante – pois mexeu em tudo – e a levou. Deixou uma outra, com a qual, com certeza, o Dr. Growler tinha sido assassinado. Um tiro? Ou dois tiros? Faltam duas balas.  Mas só uma atingiu o alvo. A menos que.... Não; não pode haver outro morto!

A coisa já está complicada demais!

Já eram quatro horas da tarde quando decidiram, de comum acordo, suspender o trabalho e encontrar-se novamente no dia seguinte.

 

Eduardo chegou em casa esbaforido, agitado. Mas não quis aborrecer Renata.

Ela ficou feliz em ver que ele não havia sido detido, indiciado ou molestado de alguma forma.

Serviu-lhe o costumeiro uísque e sentou-se perto dele, tentando reiniciar uma conversa que queria continuar.

- Eduardo, você não me disse por que está com tanto medo de assumir um filho. Quero que você me explique.

- Apesar de todo o pastiche em que estamos metidos?

- Sim. Apesar disso tudo. E quero a verdade!

 

Ele ainda hesitou um pouco, mas depois se deixou convencer.

 

- Ao casarmos, eu era o paradigma da segurança; tinha minuciosamente calculado e previsto tudo: uma esposa, o casamento, casa, carros, férias, carreira; até os indefectíveis cursos de mestrado e de aperfeiçoamento, o crescimento planejado, a escalada ao topo.

Você, em vez, era um poço de incertezas e de dúvidas. Não preciso lembrar-lhe quantas vezes ficou matutando sobre o futuro: o que acontecerá comigo, será que consigo organizar uma casa, como posso lidar com empregadas, roupa, comida e ao mesmo tempo administrar minha profissão, minha carreira ...

Acontece que aos poucos você foi firmando sua posição, ajeitando suas decisões, levando à frente sua vida de maneira cada vez mais segura.     

Agora, ao cabo de cinco anos, você sabe exatamente onde está e o que quer

Eu, em vez, estou perdido e sem rumo.

Desculpe, Renata.

Deixe-me resolver os problemas que apareceram entre ontem e hoje, e depois, prometo, vamos conversar muito sobre isso. Está bem, amor? Pode ter um pouco de paciência, sim?

Uma vez mais, a conversa parecia estar completamente fora de lugar.

Ambos reconheceram isso e aceitaram adiar o assunto para uma ocasião melhor.

 

Paradoxalmente, a conversa com Renata acalmou o Eduardo, que assim conseguiu passar uma noite sossegada e apresentar-se na delegacia pronto para um novo dia de aperto.

 

Quando recomeçaram, o Dr. Rebim estava outra vez irritado e ríspido

- Você não me falou que a pasta desaparecida do escritório da sua esposa era tão importante!

- Mas achei que não era importante! Nada tem a ver comigo, e nem com ela, provavelmente. Uma das moças deve ter cometido um engano. E pelo que sei, eram apenas documentos administrativos, de pouco valor. Com certeza vão encontrá-los em alguma gaveta.

- Não esteja tão certo, Eduardo: é uma pesquisa sobre investimentos de uma firma australiana – que você certamente conhece!

- Mas a Renata não me disse nada disso! Disse que era uma pasta sem valor, coisa de nada; uma coincidência, somente! O que está acontecendo?

- Vamos voltar à nossa folha, Eduardo. Vamos colocar tudo o que sabemos a respeito, depois veremos o que é verdadeiro e o que é falso nisso tudo.

E peça à sua esposa que venha à delegacia, porque temos algumas perguntas, cujas respostas poderão esclarecer uma parte do nosso problema...

 

 

O telefone tocou insistentemente no escritório do Dr. Albertini.

Quando ele atendeu, uma voz rouca do outro lado sussurrou simplesmente:

- Código TM! Código TM!

E desligou.

Albertini chamou o Domingos, pelo interfone.

- Algo não está correndo como deve – disse, agitando os braços.

Consiga-me uma passagem para Foz do Iguaçu no primeiro avião.

Avise-me quando souber o horário.

Vou me preparar.

Cinco minutos depois, o Domingos confirmou; às 11:40, doutor. Fiz a reserva, mas não sei se dará tempo. Boa viagem!

O Dr. Albertini, sobraçando uma pesada pasta de documentos, entrou num táxi e dirigiu-se ao Aeroporto de Congonhas. Estava com ar preocupado e concentrava-se em alguma coisa muito importante.

 

 

Debaixo da sua mangueira, o prof. Surtani estudava com a mais completa atenção o vai e vem das formigas cortadeiras, empenhadas em transportar pedaços de folhas trinta vezes maiores e trinta vezes mais pesadas que elas. 

- Será que elas sofrem assim porque foram condenadas pelo destino?

Ou esta é uma realização de seus instintos básicos, e só assim são felizes? 

Quem ia querer uma hérnia, por carregar com tanta pressa, tantas folhas pesadas a vida toda - e sem remuneração alguma?

As formigas são ainda mais estranhas que os seres humanos!

Acabava de filosofar assim, quando o telefone tocou; aquele “foca” voltava com as últimas notícias.

- Novidades, professor!  Parece que um pilantra se passou por delegado, no Embu e armou para o Eduardo! E agora está morto! Assassinado! O senhor sabe de alguma coisa?

- Quem deve saber é você, menino, e não eu! – brincou o professor. – Mas obrigado pela dica. Fico lhe devendo mais esta!

 

Desligou e chamou a Renata.

- Tudo bem, obrigado. Fiquei sabendo que a pessoa que atendeu vocês no Embu não era um delegado, mas um safado, provavelmente ligado aos seus seqüestradores...Ele foi morto, ontem à tarde.  Você sabe de alguma coisa? Alguma coisa que eu também deva saber?

- Eu ia lhe telefonar a respeito, Vovô. O Eduardo acabou de descobrir.

- Escute, Renata. De você para mim, com toda a sinceridade: você me disse mesmo tudo o que sabe?

- Sim, Vovô, eu juro.   

- Mas me parece que tem muitas peças perdidas, neste jogo. Pense bem, e depois me telefone de novo. A propósito, você falou com aquele advogado amigo meu, que lhe indiquei?

- Não Vovô, ainda não. Não tive tempo nem para respirar!

- Então não fale com ele. Não vale a pena incomodá-lo. Mas chame-me, assim que puder, está bem?

- Está bem, Vovô. Até logo...

O professor meneou a cabeça, pensativo e preocupado. Alguma coisa não estava correndo bem. Mas ele não conseguia entender o que era. Suspirou – e recomeçou a observar as cortadeiras, com redobrada atenção.

 

 

Naquela mesma manhã, acompanhando o marido, Renata apareceu na Delegacia.  Foi cumprimentada secamente pelo Dr. Rebim, que partiu para um ataque rápido e imediato .

- Quero saber – iniciou sem preâmbulos – o que havia no dossiê que desapareceu. Não alegue questões de sigilo ou segredos, nem problemas com a concorrência, porque se eu não souber toda a verdade, já, passarei o caso à Promotoria e alguém vai sofrer bastante.

- Mas doutor! Não posso revelar meus clientes, minhas fontes, os resultados de minhas investigações: é um trabalho de mais de um ano, que irá perdido, se forem revelados seus detalhes....

- Não há alternativa, mocinha! – insistiu o Dr. Rebim – sugiro que fale agora, por bem, para não ter que fazê-lo depois, sob coação. E Você sabe que podemos chegar a isso, não é?  Estamos lidando com dois assassinatos e com algumas outras quireras! Não estou mais a fim de brincadeiras!

O tom não admitia recusas.  Depois de longa hesitação, Renata finalmente decidiu-se a falar.

- Um ano atrás, recebemos de um cliente uma solicitação comum. Queria um levantamento das atividades de mineração em alguns locais específicos do Brasil.

Não é raro recebermos este tipo de pedido; e temos toda a infra-estrutura necessária para dar as respostas que nos pedem. 

O cliente não se referia a nenhum minério em particular; assim, juntamos documentos que ilustram a produção, as prospecções geológicas, os aspectos econômicos , os nomes dos investidores atuais e o montante dos investimentos em diferentes regiões e para diversos minérios.

- E quem era este Cliente? – perguntou o Dr. Rebim, descartando os pormenores e tentando chegar ao âmago do assunto.  

 - Não posso dizer... – tentou reagir Renata, olhando para o marido.

- Senhora! – exclamou o Delegado, deixando de lado o termo “mocinha” que vinha usando. Repito-lhe que o assunto é grave. Se tentar me fazer perder mais tempo, paramos agora mesmo. Problema seu.

Estava blefando, é claro. O Eduardo percebeu isso claramente, mas acenou para a esposa, confirmando o pedido do delegado.

Finalmente, com um suspiro, Renata confirmou:

- Era a Transvaal Mining Co. da África do Sul, doutor Rebim.

- Ah, que bom! Finalmente alguém resolveu colaborar com este pobre escrivão! – brincou aliviado o delegado.

O clima pesado serenou num instante; mas Renata não se conteve e continuou:

- Repito-lhe que era apenas uma consulta, em termos gerais, sem nada de específico...

- Mas evidentemente, sua pasta continha alguma informação importante, que o seu Cliente julgou urgente, ou – continuou acompanhando o fio de sua reflexão, como se estivesse sozinho - que não poderia cair em mãos duvidosas ..Quem está querendo investir em minérios, neste momento, Eduardo?

Eduardo ficou pálido, engoliu em seco e por fim, depois de hesitar por alguns longos segundos, respondeu, em voz baixa: - Eu acabei de descobrir: juro, Doutor; estava num memorando que o Dr. Growler me mandaria, mas que não chegou a sair da sala dele: a firma interessada é a Oceanian Diamonds, de Sydney, na Austrália!

- Ora, ora, ora! Três vivas a Sua Majestade a Rainha, Eduardo! Finalmente uma noticia que serve para alguma coisa! Uma luzinha no fim da mina de diamantes! Agora sim, começamos a ter alguma coisa!  

Seu entusiasmo era sincero; ele estava realmente exultante; e continuou:

- Agora temos: primeiro, alguém que descobriu onde está o pote de ouro; segundo, alguém que quer saber onde o pote está.  Ambos estão dispostos a matar. A aposta é alta; precisamos saber qual das duas mãos esta cheirando a pólvora ...

Em completo contraponto a essa felicidade infantil do Dr. Rebim, Eduardo e Renata mantinham uma atitude composta, preocupada.

Ao olhar interrogativo do delegado, Eduardo se abriu:

-Não é tão simples assim, Dr. Rebim; há mais alguém, poderoso, ambicioso e sem escrúpulos, capaz de montar um plano como o que estamos vendo e mais do que isso.

Estava para abrir a boca, quando um telefone vermelho tocou.

O Dr. Rebim saiu apressadamente, com uma desculpa esfarrapada.

Um problema doméstico, disse. Mas dirigiu-se à sede da Polícia Federal.  

Renata e Eduardo voltaram aos seus trabalhos.

 

 

 

No escritório da Wakhum Brothers as coisas estavam começando lentamente a engrenar de novo, depois da volta da Renata.

Todos estavam ainda procurando a pasta sumida, mas não havia a menor pista. Ninguém a tinha visto.  Ninguém fazia idéia de onde ela poderia estar. 

Renata tinha tido uma conversa particular demorada e agitada com a Gisele.  Chamara-a de infiel e de irresponsável.

Gisele saíra da sala aos prantos.

Na hora do almoço, ela saiu sozinha, pensativa e ausente, deixando Renata preocupada e um pouco confusa.

A moça não merecia este tipo de tratamento.

Trabalhava na Wakhum havia uns quatro anos e nunca houvera a menor queixa dela. Era eficiente e capaz. Ordenada e minuciosa em tudo o que fazia. 

Decididamente, não merecia esta bronca.

Renata pensou em chamá-la à sua sala, na volta do almoço, para pedir-lhe desculpas, para esclarecer tudo, para fazer as pazes.

Não deu tempo. 

Da janela do terceiro andar, Renata observou-a enquanto atravessava distraidamente a Avenida, ouviu o guincho do freio de um táxi e viu arrepiada o corpo da moça, arremessado com toda a força contra a calçada, como se fosse uma boneca de trapos.

Estava morta.

Renata desmaiou e ficou longamente sem sentidos.

Era muita coisa demais acontecendo.

Era preciso dar um basta a essa série de eventos trágicos, que se sucediam vertiginosamente. 

 

Ao ser informado da morte da Gisele, o Dr. Rebim percebeu que a notícia tinha atingido em cheio o Eduardo. 

Inteirando-se dos pormenores, depois de pensar um pouco, com o rosto crispado, disse: - “Não acredito que, apesar das aparências, se trata de um acidente; tenho certeza que é um outro homicídio.”

e acrescentou: -“Pode parecer indiferença, Eduardo; mas acredite: este é outro dos peões descartáveis, que caiu. Os bispos estão agora prestes a mostrar as caras."

E refazendo-se, concluiu:

- Acho que a moça foi enredada por alguém que lhe pediu o dossiê.  Mas continuamos sem saber quem:

....................

A morte do Silvestre só chegou ao conhecimento do Domingos na manhã seguinte. 

Imediatamente concluiu que o malandro tinha exagerado com sua atitude, pondo em perigo a organização. 

A execução sumária era o método rotineiro num caso desses.  

Procurou logo falar com o Dr. Albertini, mas o celular estava desligado.

Nenhum dos recados sucessivos foi respondido. 

Às treze horas, a Renata telefonou. 

- Boa tarde, Domingos, - falou com a voz trêmula - Queria falar com o meu pai.

- O que houve, Renata, você está desanimada, triste...

- Sim, estão acontecendo coisas muito graves, por aqui. Desculpe-me, Domingos, mas não estou me sentindo muito bem.

- Seu pai não está. Viajou ontem com urgência e não sei quando volta. Também tentei falar com ele, mas o celular não responde, está desligado.

- Mas ele precisa ficar sabendo de uma morte, Domingos!

- Do Silvestre? É isso que estou tentando comunicar-lhe.

- Silvestre? Que Silvestre é esse? Não conheço ninguém com este nome!

- É a pessoa que os atendeu na delegacia do Embu ! Um falso policial!

- Deixe-me tomar o fôlego, Domingos; eu queria avisar meu pai que a Gisele morreu.

- Como? O que aconteceu?

- Foi atropelada, e acho que foi por minha causa, Domingos.

- Fique calma, Renata. Não adianta se desesperar; é uma pena, mas não podemos fazer nada. Acabou.   Avisou o Eduardo?

- Sim. Por favor, se puder entrar em contato com o meu pai, diga-lhe o que aconteceu. Depois ele vai falar comigo, com certeza.

- Sim, vou tentar localizá-lo. Até logo.

Ao desligar o telefone, Domingos já sabia quem tinha provocado a morte da Gisele.  Um gordo, chamado Garcia, que procurara o Dr. Albertini, a mando de uma firma estranha: a Diamantes do Sul S.A., . 

 

O Dr. Albertini encontrava-se agora no Hotel da Cataratas, em Foz do Iguaçu.  Uma suíte especial havia sido reservada para um encontro memorável entre pessoas muito influentes, vindas do exterior.

A direita estava sentada a senhora Abigail N. Tundra,

Ela era nada menos que Vice Presidente e maior acionista individual da Transvaal Mining Co. de Johannesburg, grande mineradora de diamantes, possuidora das concessões sobre as mais extensas jazidas diamantíferas do mundo – excluindo as novas jazidas recém descobertas na Austrália.  Era uma distinta senhora negra, de meia idade, que tinha recebido uma fina educação na Inglaterra e que refletia no semblante e nos gestos uma força de vontade incomum.

Vestia uma alegre e colorida roupa africana típica, uma “buba” e uma “iro” finamente bordadas, reafirmando orgulhosamente sua origem e sua raça. 

 

A esquerda, sentava Dame Corinne Demper-Jones, presidente e principal acionista da Oceanian Diamonds Inc., recém fundada exploradora das riquezas do subsolo da Austrália setentrional, notadamente diamantes e pedras preciosas.

Como típica senhora da Sociedade Inglesa, punha em evidência todas as virtudes e os defeitos da educação recebida.  Roupas de viagem esportivas, cômodas e elegantes, apropriadas ao clima tropical, cabelos curtos, muito bem cuidados e penteados, o porte distinto e uma indisfarçável afetação em tudo o que fazia: como o uso de uma longa piteira de prata, certamente uma herança nostálgica de família.

Dame Corinne fora educada na Suíça a assimilara uma notável quantidade de conhecimentos e uma cultura invejável.  Os modos finos, porém, não conseguiam corrigir o seu olhar frio, penetrante, aguçado e inquiridor.

 

 Ambas as senhoras eram viúvas, provando mais uma vez a superioridade das fêmeas, a sua maior durabilidade e a sua completa adaptação a um habitat criado pelo macho, para uso quase exclusivo dele, mas que elas conquistaram definitivamente.

 

Sentado quase ao centro da sala, numa confortável poltrona estilo inglês, o Dr. Albertini. Este era um homem surpreendente, um trabalhado excepcional, um cavalheiro perfeito: em São Paulo, no seu armazém, podia manter longas conversações com o mais bronco dos motoristas de seus caminhões; aqui, num ambiente decididamente refinado e luxuoso, expressava-se num inglês perfeito, com um inconfundível acento de Oxford. 

 

O Dr. Albertini estava completamente à vontade; dominava o ambiente e dirigia a conversação.  As duas imponentes  poderosas Rainhas estavam finalmente confiando  a um simples e ágil cavalo, a abertura de um jogo difícil e temerário.

 O assunto era complexo. A Taylor possuía informações sobre a prospecção de uma importante jazida de diamantes, numa região restrita do Mato Grosso do Sul.

Sob o comando do Growler,.iniciara negociações com a Transwaal; mas alguém na Oceanian recebera uma sinalização, possivelmente da Wakhum

 

- Senhoras – disse o Dr. Albertini – agradeço sua presença aqui, para resolver este impasse tão desagradável. Minha filha foi seqüestrada, dias atrás e por pouco não perdeu a vida. Não entendi o propósito de tal ação. Gostaria que me explicassem.

Ambas as senhoras reagiram à declaração demonstrando certa surpresa e afirmando, impassíveis, que nada tinham a ver com o acontecido.

- Houve também – prosseguiu o Dr. Albertini – o assassinato do Dr. Growler, que ambas conheciam e depois, a morte de duas outras pessoas, e uma invasão de domicílio....Senhoras, o que está acontecendo com vocês? Seus empregados não conhecem mais limites? É guerra declarada?

Novamente ambas refutaram qualquer envolvimento.

- Dr. Albertini – começou a explicar a Dame Corinne, pousando a xícara de chá – o senhor sabe que neste mercado não é possível manter segredos....

- Qualquer coisa nova aparece imediatamente – acrescentou a Senhora Abigail, concordando – e as pessoas querem obter o máximo de informações, para negociá-las melhor.   

- Matando o Dr. Growler? – retrucou o Albertini

- Não. Não foi a Transwaal! Eu lhe juro! Não havia motivos. E mesmo que houvesse, nunca chegaríamos a essa covardia!   Eu estou aqui para desfazer qualquer equívoco. Queremos ver claro neste caso, para saber com quem estamos lidando!

- A Oceanian nunca cometeria um crime bárbaro desses. Éramos amigos; e lamentamos muito o acontecido!   Queremos encontrar o culpado!

- Mas senhoras: reconheçam que alguém contratou uma gangue de bandidos. Essa gangue,  além de seqüestrar minha filha, matar o Growler e incriminar meu genro, ainda deu cabo da secretaria da Wakhum, que havia provavelmente vendido o dossiê com as informações sobre a TM!

Se não foi nenhuma de vocês, quem foi?

Os três não precisaram de muito tempo para encontra-lo: “Foi a “Diamantes do Sul”!”  exclamaram quase ao mesmo tempo.

Uma firma nova, ambiciosa, descarada, tentando entrar no nível mais alto desse ramo de qualquer maneira e usando os piores métodos,.

Este era o terceiro, o mais perigoso e temível inimigo, porque usaria todas as armas para se instalar ao lado delas; a luta entre elas abriria um espaço para ele..

- O mais importante - declarou a Dame Corinne - é manter estável a produção, evitando, tanto quanto possível, um indesejável aumento na oferta.

E a Senhora Abigail reforçou: - A presença de um novo pólo de produção traria um prejuízo inestimável a todos.

O Dr. Albertini agradeceu a Deus, do fundo de seu coração pela concordância das Senhoras nestes pontos básicos; e respirou aliviado, quando recebeu das duas o sinal verde para apaziguar as partes, sem fazer barulho.

A Diamantes do Sul estava com o seu destino selado. Ela sumiria, de mesmo jeito que tinha aparecido.

- Agradeço sua compreensão, senhoras, - disse com  voz cansada.

- Mas por outro lado – continuou – não posso deixar de oferecer à justiça alguns carneiros, que exageraram em suas atividades, trazendo prejuízo a todos.

 A humanidade faz isso há milênios.

São apenas sacrifícios tribais, para propiciar-nos os Deuses!.

Todos concordaram. A Diamantes do Sul pagaria o preço de sua ousadia.

 

Agora, a polícia iria destrinchar o assunto.

Não haveria mais rebotes, vinganças, golpes inesperados.

E o Dr. Albertini seria doravante o árbitro da situação.

Em lugar de investimentos, apenas uma consistente quantia mensal, paga pelos dois cartéis, para se deixar tudo como estava e evitar a exploração comercial da jazida, por qualquer um.

 

Como qualquer outro negócio, o dos diamantes tem seus segredos, suas loucuras, sua forma específica de agir. Não há como fugir. Ou se está dentro das normas, ou se morre.

 

O Comando 14 bis foi desbaratado na semana seguinte.

O Geremias teve apenas uma condenação leve, mas foi forçado a trabalhar,  durante a sua permanência no “hotel”

O Professor Surtani não gostou muito. Ele sabia que havia algo, muito maior, atrás do acontecido. Mas estava particularmente interessado, agora, numa guerra sem quartel contra as formigas cortadeiras; se não providenciasse algum remédio logo, ficaria sem a sombra da sua mangueira.

 

Quanto ao Eduardo e Renata...bem, esta é outra história.

Todos, no fim, ficaram com algumas dúvidas. E é justo que assim seja.

Entre todos, principalmente, o Dr. Rebim, que foi convidado a ser padrinho do futuro filho da Renata; ele continua ainda a se perguntar quem seriam, afinal, as Rainhas desse grande jogo de xadrez, no qual, se os jogadores são bons, não há vencedores, mas só um glorioso empate.

Como sempre, à custa dos peões.

 

Nota importante:

Esta é uma obra de ficção.  Qualquer eventual referência a pessoas, fatos e locais realmente existentes, deve ser considerada mera coincidência.