Uma igreja bonitinha
Por Osorio de Vasconcellos | 16/01/2013 | CrônicasResumo: Pouco a pouco, os textos cedem lugar às fotos. Olha-se cada vez mais. Lê-se cada vez menos. De quebra, uma igreja bonitinha.
Uma igreja bonitinha
Era uma vez uma igreja. Uma igreja bonitinha, naturalmente.
À porta estava escrito em letras invisíveis: Entrada Proibida.
Se me perguntarem por que “naturalmente”, eu respondo: porque isto pretende ser uma fábula, e nas fábulas, ainda que pretensas, uma igreja bonitinha é a coisa mais natural do mundo.
Se me pedirem explicações do tipo vem cá, as letras não podem ser invisíveis, pois, se o fossem, como ler ‘Entrada Proibida’?, eu respondo: quem falou em ‘ler’? Eu disse apenas que à porta estava escrito ‘Entrada Proibida’. Nem passou pela minha cabeça que alguém se ocupasse em ler o aviso. Não sou ingênuo, sei muito bem que ler é hoje uma atividade prescindível. Assim sendo, se ler é prescindível, as letras podem ser invisíveis e ninguém vai notar a defecção.
Caso se insista na arguição, alegando o surgimento de alguém interessado, eu respondo: interessado em quê?
Se me replicarem que o interesse incide sobre o geral das considerações, eu respondo: cite pelo menos uma particularidade. Conduzirei melhor o pensamento se conhecer o que mais interessa.
Se me informarem que interessa conhecer mais de perto essa igreja que proíbe a entrada de fiéis, com inteira pertinência eu pergunto: por que?
Se me disserem: porque não é lógico, e o absurdo bloqueia a compreensão, eu respondo: obrigado por levar a sério a minha fábula. Mas é preciso entender que o absurdo, se bem tratado, pode encaminhar verdades inimagináveis.
Se me cobrarem fundamentação, eu respondo: convém não esquecer que a verdade habita entre os nossos pensamentos, ou seja, entre as representações que fazemos da realidade. Melhor ainda, habita entre as ligações e associações dos nossos pensamentos e representações.
Se me pedirem para trocar em miúdo essa teoria, eu respondo: sem afastar um pé desta capsula mostrarei como a verdade surge da associação de pensamentos e representações, ainda que absurdos. Acompanhem. Num primeiro estágio surgiu a representação abstrusa de uma igreja inacessível a fiéis, e um aviso absurdo escrito com letras invisíveis. Na sequência, bastou aduzir a hipótese de uma interpelação - vem cá, as letras não podem ser invisíveis, pois, se o fossem, como ler ‘Entrada Proibida’? - para deflagrar o conhecimento da primeira grande verdade produzida nesta associação de pensamentos, a qual verdade, uma vez liberada, expande-se nestes termos: pouco a pouco, os textos cedem lugar às fotos. Olha-se cada vez mais. Lê-se cada vez menos.
Se me apertarem contra a parede e exigirem de mim a segunda verdade, eu repondo: assim como o absurdo das letras invisíveis levou ao conhecimento da primeira verdade, o absurdo de proibir a entrada de fiéis na igreja bonitinha leva à segunda que, neste contexto, admite mais de uma tradução. Primeira tradução: do jeito que as coisas andam é melhor ficar em casa, aliás, em conformidade com o que aconselha o Doce Rabino da Galileia, em Mateus 6;5 : quando orardes, ide para o vosso quarto, e fechai a porta, e orai ao Pai em segredo; e o vosso Pai, que vê em segredo, vos recompensará.
Ora, se não vou sair de casa, pouco se me dá que me proíbam de entrar seja lá onde for.
Segunda tradução: é preciso rever urgentemente o papel decisivo das igrejas na obra de reconstrução do mundo. Separar o joio do trigo e parar de brincar com coisa séria.
Por fim, se quiserem me censurar, alegando que generalizo, que ataco injustamente todas as igrejas, eu respondo: de jeito nenhum.
E mesmo que atacasse não haveria o menor perigo. Afinal, a primeira verdade - a verdade da leitura prescindível - dá ampla segurança aos eventuais incomodados com a segunda.