Uma decisão difícil
Por Romano Dazzi | 05/06/2009 | CrônicasUMA DECISÃO DIFÍCIL
de Romano Dazzi
Tom entrou em casa, cumprimentou rapidamente Anna, sua esposa e deixou-se cair sem força na sua poltrona preferida.
Estava cansado, frustrado.
Anna sentou-se perto dele, com ar resignado, entendendo que não havia novidades.
Olhou-o com aqueles seus olhos meigos, que a cada dia se entristeciam mais e limitou-se a passar-lhe a mão sobre a testa, com infinita suavidade.
- Tenha paciência, meu bem – disse-lhe, quase sussurrando – ainda vamos encontrar a nossa estrela...
Ele esboçou um sorriso, agradecendo em silêncio a doce mentira.
Estava no fim de suas forças, depois de mais um dia de visitas inúteis, de telefonemas vazios, de longas caminhadas sob o sol escaldante, de um endereço a outro, à procura de um emprego.
Resumindo o que os dois pensavam, falou gravemente:
- Nem precisaria ser um emprego, na verdade; do jeito que as coisas têm andado, já me contentaria de ser acompanhante de cachorros, ou guardador de carros ou distribuidor de folhetos na esquina; só preciso de uma oportunidade, nada mais...
Olharam-se nos olhos, longamente.
Durante os muitos anos passados juntos, algumas vezes o amor de Tom por sua esposa tinha arrefecido um pouco; as suas ambições, o envolvimento nas atividades que exercia, tinham criado uma espécie de afastamento; em certos curtos períodos dificilmente teria tempo – ou, quem sabe, sentiria vontade – de sentar junto de Anna e olhar dentro dos olhos dela, – assim como agora – para procurar um momento de paz.
Mas este olhar deles, agora, era diferente e profundo; tinha o sabor especial daquela solidariedade, do companheirismo e da compreensão carinhosa, em que consegue se transformar um grande amor, depois de meio século de convivência diária.
.
O pó branco dos anos, de repente pairou sobre eles.
Sim, porque a nossa vida – a vida de cada um - é prisioneira de um grande moinho de vento; alto, imponente, poderoso, construído no meio da planície onde sempre sopra o vento.
Todos os dias a roda gira, movida pelas longas pás de vida própria; você as descobre balançando preguiçosamente, empurradas pela leve brisa da primavera; ou se arrastando cansadas, sob o vento quente e pesado do verão; ou estremecendo perigosamente, quando enfrentam o ímpeto irresistível da tempestade.
A cada volta das pás, a cada giro da roda, as moendas amassam, moem e trituram todos aqueles grãos que juntos representam a nossa vida, que significam os nossos dias, nossos sentimentos, nossas paixões; elas transformam tudo em um simples pó, branco e leve; tão branco e leve, que o primeiro sopro de vento – ainda e sempre o vento – o levanta, empurra e espalha sem dó, transformando-o em uma nuvem etérea, que logo se desfaz.
Feliz daquele que conseguir salvar um punhado desse precioso pó; viverá dele, dele se alimentará e com ele sonhará, quando ficar sozinho; poderá chamá-lo de saudade, de recordação, de passado; e quando o seu tempo chegar e uma rápida rajada de vento – sempre o vento – vier para levá-lo embora, o pó de seus sonhos irá com ele e com ele ficará, envolvendo-o para todo o sempre.
O olhar de Anna, tinha este tom branco e triste dos sonhos passados.
Tom olhou-a e sentiu-se de repente mais forte.
- Sim Anna, - repetiu ele – ainda vamos encontrar a nossa estrela....
.........................
A caça à estrela continuou no dia seguinte.
Tom levantou cedo, pegou dois endereços e foi à luta.
Um deles era do outro lado da Cidade; resolveu procura-lo primeiro.
Subiu com esforço os três andares e deu com um escritório que seria arriscado chamar de modesto; era a dizer a verdade, um pardieiro; sujo e empoeirado, com centenas de papeis desordenadamente jogados em duas mesas, uma delas ocupada por um quarentão gordo, já quase grisalho, mal vestido, mas simpático.
- Você deve ser o Tom – disse ele. E estendeu uma enorme mão, de forma tão amigável, que o Tom se sentiu reconfortado.
– Prazer. Sente-se, por favor. Não repare na bagunça. Eu sou o Garcia, o dono do escritório; que, como você vê , não é grande coisa.
- Prazer, senhor Garcia, – respondeu um Tom visivelmente acanhado e desengonçado.- e parou, sem imaginar o que mais poderia dizer.
- Vou ser muito franco, Tom – continuou Garcia - Sei que você tem um grande passado; sei que você trabalhou para gente grande, e que deve ter aprendido um bocado em tantos anos.
- Sim, - tentou atalhar o Tom – de fato, mas .....
- Mas também sei que você não está atravessando o seu melhor momento, não é mesmo?
- Sim, tentou falar novamente o Tom – mas ....
- Bom, sei que nos entenderemos – continuou Garcia, sem dar nenhuma chance ao Tom - este aqui não é um paraíso, mas o que lhe ofereço é um trabalho, camaradagem e um pequeno salário. Como você vê, aqui também as coisas não andam muito bem; mas tenho certeza que, com a sua ajuda, vamos reverter a situação.
- Sim, sim - tentou dizer pela terceira vez o Tom – e acrescentou, de um fôlego só: pode contar comigo, senhor Garcia, posso fazer muitas coisas! E também.......
Mas o Garcia não queria soltar a bola.
– Muito bem – continuou – Estamos de acordo; de contabilidade você entende, e não quero perder tempo para lhe explicar o serviço; sei que você saberá exatamente o que fazer, só de olhar os papéis . Você pode começar amanhã ?
- Amanhã ? – perguntou incrédulo o Tom e imediatamente recomposto confirmou – sim, sim, é claro, amanhã, sem falta, e obrigado. Senhor Garcia, obrigado mesmo!...
Assim – “tout court” em dois tempos. Contratado. Salário pequeno. Quanto seria? Tom teve medo de perguntar; e se o homem fosse um lunático? E se ficasse bravo por ouvir uma pergunta boba como esta : quanto vou ganhar ? onde já se viu pergunta mais impertinente? Pôr tudo a perder por uma curiosidade inútil? De repente o emprego era a única coisa que importava. Todo o resto ficava para trás. Calou-se e ficou a escutar.
Garcia, por seu lado, não se impressionava facilmente.
Homem do mundo, do mercado, do comércio, calculista e precavido, sabia que já tinha todos os trunfos na mão.
Sabia que Tom seria ideal para arrumar seu escritório.
Sabia que ele não conseguira trabalho por muitos meses.
E que as finanças dele não estavam nada bem.
E na verdade este “nada bem” era apenas um eufemismo .
O Tom estava quebrado. Definitivamente, irremediavelmente quebrado.
Tom, ainda atordoado, saiu e dirigiu-se ao Metro.
Tanto tempo procurando, tanto desânimo, tantos “não” atirados em sua cara, resvalando nas suas faces como se fossem outros tantos tapas doloridos; e agora, agora que tinha acontecido, não conseguia acreditar.
Qualquer que fosse o salário, seria uma salvação.
Qualquer que fosse o emprego, seria melhor que levar cachorros a passear, e recolher seus cocôs.
A viagem de trem, desconfortável, demorou muito. Já era quase o meio dia, quando Tom pôs finalmente os pés em casa.
Anna correu à porta, abraçou-o e perguntou com apenas um fio de esperança, como fazia todos os dias;
- E então, como foi ?
Aí, Tom desabou . Caiu em um choro incontrolável, nervoso, libertador, enquanto Anna, sem saber o que tinha acontecido, o afagava carinhosamente.
Finalmente se aquietou
:- Tenho um emprego, Anna! Tenho um emprego! Estamos salvos!...
Foi só depois de fazer um esforço imenso, para engolir as suas próprias lágrimas., que Anna pôde finalmente falar.
E começou logo a fazer perguntas impertinentes e irrespondíveis; onde era, em que horário, o que iria fazer, quanto ganharia, se o lugar era bom, e tranqüilo, e perto de condução, enfim toda uma saraivada de informações que o Tom não podia dar.
Finalmente o cansaço provocado pela emoção se apoderou dos dois. E ficaram ambos quietos, vencidos, vagando em seus pensamentos, sem trocar uma só palavra.
A tarde foi tranqüila,; parecia que um grande peso havia sumido das costas de Tom e Anna.
Não tinham ganhado um único real, mas tinham a sensação de serem dois milionários.
O que pode gerar, no espírito humano, o simples entreabrir-se de uma porta, mesmo quando ele não sabe o que vai encontrar do outro lado!.....
No dia seguinte, bem cedo, Tom arrumou-se preparou o seu lanche, fez uma leve carícia em Anna que ainda dormia e foi para o trabalho.
A confusão naquele escritório era realmente terrível.
Calmamente, com a tranqüilidade que lhe era peculiar, começou a separar as pilhas de papeis. Contabilidade era o seu forte, Separou tudo o que podia identificar pelo nome do cliente, depois, pela data, depois pelo tipo de papel. Contas a pagar, contas a receber, folhas de pagamento, recibos, faturas, intimações reiteradas da Receita Federal. A tarde, a metade dos papeis parecia ter sumido. Cinco pilhas ordenadas sobre a mesa testemunhavam o trabalho feito.
Tom suspirou aliviado, pegou o paletó e:
– Até logo, senhor Garcia, - falou com voz baixa, de uma maneira que era sem dúvida de agradecimento.
- Até amanhã, Tom – fez o Garcia, que não tinha aberto a boca durante o dia inteiro e nem tinha olhado para a mesa do Tom. – Bom serviço, rapaz!...
- Rapaz? Rapaz eu, um velho de quase 80 anos, que poderia ser seu pai... Bem, deixa pra lá. É um modo de falar até carinhoso. Sacudiu ligeiramente a cabeça, e começou a descer a longa escadaria de madeira....
Nos dias, e nas semanas seguintes, a rotina se repetiu.
Anna tinha voltado a ver a vida com um pouco mais de confiança e o tempo todo fazia mentalmente as somas do que tinham a pagar.
Tentava imaginar como poderiam distribuir o pequeno salário que receberia, para deixar todos os credores mais tranqüilos.
Afinal, era graças a estas pessoas que tinham sobrevivido tantos meses sem nenhuma entrada.
Mas Anna não tinha a menor idéia, assim como o Tom, de quanto entraria no fim do mês. Só tinham que aguardar, pacientemente.
Duas semanas depois, um cidadão baixote, de paletó e gravata, mal encarado e – Tom pensou – com um aspecto até um pouco arrogante, tocou a campainha, às sete da noite, quando estavam começando o jantar.
- Meu nome é Henrique – disse o recém chegado, logo que se instalou na poltrona da sala. – sou amigo do Zeca, o funcionário do Banco, que mora a duas quadras daqui.
Tom lembrava do Zeca; havia conversado algumas vezes com ele, no ponto do ônibus; sabe como é: o ponto de ônibus é o lugar em que você fica sem jeito; ou encara as pessoas, ou desvia o olhar para o chão. O melhor mesmo, é iniciar uma conversa sem compromisso.
- Sou representante comercial – dizia o Henrique – e graças a Deus tenho muitas conexões, aqui e no exterior; ouvi dizer que você – não se incomoda, Tom, se o tratar por Você , não é?- está momentaneamente sem emprego.
- Sim, é verdade – respondeu o Tom - sem querer revelar que já tinha, graças a Deus, uma nova ocupação. – e do que se trata?
Anna também ficou calada, esperando ouvir o que o visitante tinha a oferecer.
- Bom, - retomou o Henrique – temos uma ótima oferta para Você. Estivemos examinando sua vida e percebemos que você é um cidadão exemplar, um ótimo pai de família, um trabalhador correto e respeitador.
Tom estava começando a perder a paciência. O jantar estava esfriando.
- Temos uma grande oferta para Você, Tom! – exclamou o moço enfaticamente – uma oferta irrecusável, como nunca lhe apareceu antes na vida e como nunca mais vai aparecer!.
- Temos, somos, fazemos, oferecemos..... Mas quem está fazendo esta oferta? – perguntou o Tom, pondo em estado de alerta todos os sentidos. Quem é o senhor? E em nome de quem está falando?
- Oh, eu não lhe disse? – perguntou, visivelmente contrariado, o senhor Henrique: – peço perdão, Tom; mas é o Grupo K.B.Arnold! K.B.Arnold é um nome conhecido, um grupo famoso, com filiais no mundo todo! – e simulando uma pretensa incredulidade prosseguiu: - Não me diga que nunca ouviu falar dele!! Talvez não lhe venha à memória agora, mas com certeza vai se lembrar !....
Tom abriu todos os arquivos de sua cabeça, esquadrinhos todas as pastas, que mantinha rigorosamente em ordem no seu cérebro, e não encontrou nada. Nem a mais pálida lembrança de um grupo chamado K.B. Arnold.
- Não consigo me lembrar,- disse por fim - Mas em que consistiria este serviço?
- Ah bom, - retomou o Henrique – vejo que consegui chamar a sua atenção. –
O grupo está comprando uma firma de contabilidade na América Central; o negócio está sendo tratado em sigilo, e lhe recomendo a maior discrição. Decidimos encarrega-lo de fazer uma rápida auditoria no escritório da firma.
É um pé lá, um pé cá . Vai num dia e volta no dia seguinte. Simples e tranqüilo, não é?
- Não faço idéia do que querem saber; não posso chegar lá e fazer perguntas sobre uma situação que não conheço!
- Mas não, meu amigo! Vamos lhe dar todos os detalhes necessários, que estamos preparando. No dia de embarcar, nosso pessoal lhe entregará a mala com os papeis, que você poderá ver ao chegar ao destino. Por razões de segurança, a mala estará fechada com um cadeado e só será aberta ao chegar lá, no escritório.
Deixou cair o assunto, e animadamente passou a citar as vantagens: - veja, você fará uma viagem rápida, mas inesquecível, à cidade do México ; como lhe disse, é uma assunto simples e sem comprometimentos; você prestará um grande serviço à K.B.Arnold, que, além de lhe ficar reconhecida, lhe pagará todas as despesas e, ao voltar, um bônus de 50.000 reais!.
Ao ouvir o valor, tanto o Tom quanto a Anna puseram em febril atividade suas calculadoras mentais. Seria o fim de todos os pesadelos, pagariam todas as dívidas, e ainda sobraria algum dinheiro – um bom dinheiro, na verdade!
E seria um trabalho tão simples, tão linear, uma auditoria sobre papeis já existentes, uma verificação de rotina, um simples passar de olhos nos números.
- Posso pensar até amanhã? – perguntou timidamente o Tom
- Mas claro ! Pode pensar a vontade, Tom. – respondeu o Henrique – mas recomendo que não perca esta oportunidade!. Passo por aqui amanhã a esta mesma hora. E espero que você aceite a oferta!.
Quando ficaram sozinhos, Tom e Anna olharam-se sem saber o que dizer.
O trabalho pedido – pensava Tom – era muito simples, não acarretaria nenhuma despesa , seria resolvido em apenas dois dias; o senhor Garcia, com certeza não se oporia.
O trabalho que o Tom tinha realizado durante a semana compensava amplamente dois dias de falta.
E depois, para mostrar boa vontade, poderia repor algumas horas extra.
A soma oferecida – pensava Anna, - era maior do que haviam visto durante muitos anos. Resolveria tantos problemas, pagaria tantas contas, liquidaria tantas preocupações, que compensaria qualquer sacrifício.
Só quem encarou estas dificuldades pode entender a mágoa que se sente; ter que pagar cem e receber trinta, põe a pessoa em uma posição complicada e sem saída. Varre o orgulho, o respeito, a auto-estima, a confiança deixando a alma vazia e vulnerável; e pior, acaba instilando no espírito algumas sementes malignas, que dizem respeito à seriedade e à honestidade....
De qualquer forma, esta situação, tão diferente daquela de duas semanas antes, era também, por sua vez, desagradável e difícil .
Por fim, algumas dúvidas bem razoáveis abriam caminho na mente do Tom.
O homem aparece do nada, e diz ter investigado o Tom; lhe oferece uma pequena fortuna – nas circunstâncias em que se encontrava – para fazer uma simples viagem, um trabalho bobo de confrontar números e ainda, por conta de um grande, mas desconhecido Grupo internacional: esta não é coisa que cheire bem.
- Deve haver alguma mutreta – decidiu por fim – e meu nome vale muito, para se perder por uma porcaria de 50.000 reais (bom, ele não disse exatamente “porcaria”, porque quem deve dinheiro, trata-o com o mais alto grau de respeito e aprende a nunca fazer pouco dele).
Quando, depois de vários minutos de silêncio, abriu finalmente a boca, suas palavras cruzaram com as da Anna, que decidiu falar naquele mesmo instante.
- Sabe Anna – começou ele; e – Sabe Tom – começou ela.....
Ambos sorriram desta pequena cumplicidade que surge entre duas pessoas quando convivem por muito tempo, e que os faz pensar de forma paralela, em termos de tempo e de espaço.
- Queria dizer que não vou aceitar, não – disse ele de um fôlego só, como para evitar que um súbito arrependimento pudesse tomar conta de suas palavras.
- Como é bom ouvir isso, Tom – respondeu suavemente Anna. – É este o Tom que conheço, o Tom que amo...
- Vamos então desistir da bolada?
- Sim, e no máximo, vamos apostar na Loteria, se quiser.....
O resto é sabido: apareceu nos jornais; com a negativa de Tom, o Henrique contratou outro candidato – têm ingênuos aos montes, a humanidade é feita quase toda deles. Este candidato – cujo nome me escapa – não chegou nem a ter a satisfação de subir no avião. O grupo internacional K.B.Arnold não existia. E a mala, que só seria aberta no destino, continha três quilos de heroína pura. Um cão farejador a descobriu facilmente.
A vida do Tom continuou igual, no dia-a-dia de sempre. Ao fim do mês, recebeu 3000 reais – muito mais do que esperava muito menos do que precisava.
Comprou um cartão postal, com o panorama da Cidade do México e o prendeu no espelho da penteadeira. Por um estranho jogo de luz, olhando-o da cama, o cartão refletia a grade da janela. E parecia de prisão.
Tom olhava, e repetia rindo, todos os dias: - olha do que escapei, Anna, olha do que me livrei!......
E na planície imensa, enquanto isso, os moinhos de vento continuavam a fazer girar as suas rodas e a moer recordações, para alimentar o futuro, com a branca, leve farinha do passado....