Uma análise da obra “A Princesa e a Ervilha” e a sua relação com a atualidade brasileira: desafios para retratar a história e cultura africana e afro-brasileira no contexto da Educação Infantil. 

Por Jéssica Georgia Rosa Barros | 10/10/2023 | Educação

Uma análise da obra “A Princesa e a Ervilha” e a sua relação com a atualidade brasileira: desafios para retratar a história e cultura africana e afro-brasileira no contexto da Educação Infantil. 

 

Resumo 

 

Durante uma década, a autora e ilustradora Rachel Isadora percorreu vários países do continente Africano, encontrando fonte de inspiração para a recriação de contos de fadas, incluindo a presente narrativa clássica de Hans Christian Andersen. As ilustrações de notável qualidade elaboradas por Isadora transportam os leitores às pitorescas paisagens do continente africano, proporcionando uma plataforma através da qual uma modesta ervilha é capaz de alterar destinos. Dada a importância de sua obra, no Brasil, a Lei de Racismo, nº 10.639 de 2003, que estipulou a obrigatoriedade da inclusão do estudo da História e cultura africana e afro-brasileira, não tem efetivamente sido abordada nas instituições de ensino de nível básico, abarcando tanto o setor público quanto o privado. Assim, ressalta-se que a teoria deturpa a realidade. Para tanto, o propósito do presente artigo consiste em examinar a relevância das disposições legais no âmbito educacional em relação às temáticas étnico-raciais. Em sequência, almeja-se destacar determinados desafios inerentes à aplicação de um currículo fundamentado na luta contra o racismo no contexto brasileiro, tendo como base a escrita da autora supramencionada. 

 

Introdução  

A obra literária "A Princesa e a Ervilha", da autora e ilustradora Rachel Isadora, emerge como uma expressão literária que vai além da mera contação de uma história. Ao reimaginar o conto clássico de Hans Christian Andersen, Isadora infunde uma nova vida na trama ao contextualizá-la dentro das ricas nuances culturais do continente africano. No entanto, sua abordagem transcende o domínio da criatividade literária, pois essa obra também lança um olhar penetrante sobre uma questão crucial: o racismo. 

Por meio de uma narrativa que se desdobra no contexto da cultura africana, Isadora intrinca a história com temas fundamentais de identidade, discriminação racial e representatividade. "A Princesa e a Ervilha" se tornam, portanto, mais do que um simples conto; é um veículo para explorar a experiência da discriminação racial de maneira sensível e poderosa. Através dessa obra, Isadora incita reflexões sobre como o racismo afeta as narrativas, a autoestima e as aspirações de crianças, construindo um diálogo sobre a importância da inclusão e do respeito à diversidade em histórias e na sociedade como um todo.  

Além disso, a autora busca quebrar os padrões e estereótipos da população negra dentro do mundo literário, os quais sempre se encontram atrelados a escravidão e inferioridade, realizando essa ruptura por meio do protagonismo de uma princesa negra e sua representatividade para com as crianças. 

Isto posto, faz-se mister a necessidade de uma abordagem similar dentro de sala de aula, com intuito de ensinar e educar sobre a diversidade étnica no Brasil, a fim de garantir um ambiente escolar afetuoso e acolhedor para crianças e professores que se encontram dentro dessa diversidade. 
 

  1. Racismo, Educação Infantil e Desenvolvimento na Primeira Infância: os desafios e complicações para uma educação socio-igualitária e étnico-racial no Brasil  

O Brasil é amplamente reconhecido como uma nação pluricultural, caracterizada pela união de três grupos étnico-raciais primários: indígenas, brancos e negros. Os negros constituem a parcela majoritária da população. A problemática da discriminação racial assume uma dimensão considerável no país, afetando indiscriminadamente a população negra. Assim sendo, as repercussões do racismo são sentidas inicialmente pelas crianças em tenra idade, e nesse contexto, a Educação Infantil possui um potencial significativo para exercer influência positiva sobre essa questão. 

Inicialmente, o racismo pode ser definido como um sistema de discriminação, hierarquização e dominação baseado na ideia de raça, ou seja, na superioridade de um determinado grupo sobre outro. Dessa maneira, o racismo se manifesta por meio de um conjunto de mecanismos de controle que se desenvolveram ao longo de séculos, moldando e estruturando as dinâmicas das relações sociais. 

Em sociedades com alta disparidades sociais, e que são moldadas pela presença do racismo, como é o caso do Brasil, priva-se inúmeras crianças de ascendência negra de alcançarem a plenitude de seu desenvolvimento durante um momento crucial para a formação físico-psíquica do indivíduo, que lhes confere a oportunidade de um futuro desempenho mais eficaz ao longo de toda a sua vida.  

Consequentemente, um processo educacional destinado a crianças pequenas que negligencia a importância da raça como um elemento presente no dia a dia resulta em diversas situações de racismo, especialmente para as crianças de origem negra. À vista disso, este capítulo abordará tais situações, as quais englobam manifestações de preconceito, discriminação, exclusão, desrespeito, desvalorização e descuido. Essas ocorrências se revelam tanto nas relações entre as crianças e seus colegas quanto nas interações entre educadores e os próprios alunos. 

Preliminarmente, importa citar que o processo educacional atual no Brasil age com displicência acerca da relevância do estudo sobre a raça e suas situações cotidianas, perdurando como consequência situações de discriminação racial enraizadas na sociedade, tanto entre alunos quanto os mesmos e educadores. Esse contexto resulta em uma discrepância em afeto e atenção dentro do meio estudantil e em sala de aula, contrariando fortemente o principal fundamento da educação infantil: o cuidado.  

Paralelo a isto, a ausência desse importante elemento deixa de proporcionar um crescimento e progresso sadio na infância, marcado pelo sentimento de acolhimento e conforto, os quais se deixam de fazer presentes pelas práticas pedagógicas com elementos racistas e não igualitários. Tais práticas não se prendem apenas a educadoras brancas, mas também se replicam por pedagogas negras, pela sujeição de meios hierárquicos baseados na raça, externalizando protestações racistas já vivenciadas pelas mesmas. 

Dessarte, é imprescindível que o corpo social, de modo geral - não somente associações e movimentos pelos direitos da população negra - reivindique a prática da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), em primórdio os artigos 26 e 26-A. Tal legislação faz obrigatória a aprendizagem na educação básica, englobando a Educação Infantil, sobre as culturas abrangentes no território brasileiro, dentre elas: afro-brasileira, africana e indígena, sendo essa abordagem necessária para que crianças negras e indígenas possam cursar ambientes educacionais orientados a reconhecer a diversidade étnica, seu valor social e manuseio contra comportamentos racistas, tanto velados quanto explícitos. 

Mediante ao exposto, além do acesso garantido à Educação Infantil, é necessário que haja boa qualidade nesta, respeitando os parâmetros de diversidade e desenvolvimento da criança. Sendo implícito assim, a primordialidade de professores bem orientados e com acesso a materiais e bens para a promoção de uma educação étnico-racial e igualitária. 

 

  1. Leis, Políticas Públicas e Infância Negra no Brasil 

Durante o período de transição democrática no Brasil, ao longo da Assembleia Nacional Constituinte entre 1987 e 1988, houve discussões acerca dos direitos das crianças, resultando em avanços notáveis na Constituição aprovada em 1988. Esses avanços incluíram o reconhecimento do direito à Educação Infantil, uma condição posteriormente reforçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069/1990) através do artigo 227 da Constituição Federal.  

Anos mais tarde, em 1996, a Educação Infantil também foi estabelecida como a primeira fase da educação básica, na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que foi reformulada com base nos princípios da Constituição de 1988. 

Essas regulamentações solidificaram uma visão da infância como um período de direitos sociais, promovendo transformações na forma como as crianças são percebidas, abandonando a ideia de "menores" e eliminando a conotação negativa associada à visão da infância como um fardo demográfico.  

Todavia, apesar dos progressos observados em termos de acesso, é importante ressaltar que tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) não abordaram de maneira específica a questão racial de modo a promover melhorias substanciais nas condições de desenvolvimento das crianças negras. 

Nessa perspectiva, a luta travada pelo Movimento Negro desempenhou um importante papel na consolidação da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira nos programas curriculares das instituições de ensino, tanto públicas quanto privadas, por meio da lei nº 10.639/2003, no Brasil.  

No entanto, apesar da legislação em vigor, conforme mencionada neste artigo, muitos são os desafios para que a História e Cultura Africana e Afro-brasileira sejam, de fato, trabalhadas em sala de aula - tendo em vista a formação inadequada de profissionais, que será tratada adiante; e quando ocorre, é feita de forma tímida ou descontextualizada da luta negra por liberdade, respeito e representatividade. 

Dessa forma, o currículo escolar não deve ser subestimado, visto como apenas uma compilação de conteúdos e avaliações a serem abordados durante o ano letivo. Pelo contrário, ele reflete, entre outros aspectos, o contexto histórico em que foi desenvolvido, abrange uma diversidade de interesses e engendra disputas dentro dos âmbitos de influência, como a própria escola.  

Portanto, para assegurar a equidade, é imperativo adotar a abordagem de igualdade substantiva, a qual leva em consideração as desigualdades concretas como ponto de partida para implementar ações direcionadas à superação dessas diferenças. Nesse contexto, é essencial reconhecer que as diretrizes voltadas para a infância não podem negligenciar a dimensão racial, com o intuito de evitar a intensificação e perenização das desigualdades que são originadas pela própria sociedade. 

 

  1. A relação entre quem cuida e quem é cuidado 

A maneira como se desenrolam as relações sociais nos primeiros anos de vida requer uma consideração específica no contexto do desenvolvimento infantil. Interações com caráter permanente, como aquelas estabelecidas entre uma criança pequena e os adultos encarregados de seu cuidado, assumem a forma de relações sociais singulares. Estas desempenham um papel intrínseco no processo de aprendizado e amadurecimento da criança, podendo exercer influências positivas ou negativas.  

Neste viés, a construção da identidade individual ocorre através da interação com o próprio corpo e das relações com outros indivíduos, que, durante os primeiros anos, frequentemente incluem figuras como a mãe, o pai, o educador e outros adultos. Através de olhares, toques, vozes e gestos dessas pessoas, a criança, gradativamente, desenvolve consciência sobre o próprio corpo, compreendendo o valor atribuído tanto a ele quanto ao dos seus semelhantes. 

Entretanto, no contexto atual da educação brasileira, o retrato da pluralidade e diversidade étnica se faz escasso durante o processo de aprendizagem pela não captação de educadores ao retratar tais questões. Consequentemente, há um lapso na criação de identidade e autoaceitação de crianças negras, afro-brasileiras e indígenas durante a Educação Infantil, levando a problemas de autoestima e outros transtornos psicológicos. 

Indubitavelmente, torna-se essencial proporcionar uma educação em constante evolução para com os professores, especialmente porque muitos não tiveram orientações durante sua formação inicial sobre como abordar questões étnico-raciais na sala de aula. 

 

Considerações finais 

Em suma, a obra “A princesa e a Ervilha” de Rachel Isadora é um modelo de representatividade e respeito, tratando de forma minuciosa a diversidade étnica e quebra de estereótipos. Analogamente, a sociedade brasileira necessita fazer jus à narrativa escrita, procurando retratar a pluralidade étnico-racial no ambiente escolar e fora dele.  

 

  1. Jane Gomes de Castro : Graduação Ciências Biológicas e Pedagogia; Especialização: Ecoturismo e Educação Ambiental
  2. Adriana Peres de Barros: Graduação  Pedagogia; Especialização em Educação Infantil e Psicopedagogia.
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