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Por James Fernandes | 20/08/2010 | ContosMais tarde se saberá que, após trinta e cinco anos como diretor da Clínica de Reabilitação Psiquiátrica Bonsucesso, o Dr. Antonio Parletre de Azevedo faltou ao trabalho; justo hoje, dezenove de dezembro, dia em que completa esses trinta e cinco anos. Se saberá, mais tarde, o motivo da ausência e se conhecerá o porquê do desespero dos quarenta internos da pequena clínica abandonada pela administração pública. Por agora, é necessário esclarecer quem é Antonio Parletre de Azevedo; sua história, seus motivos e sua determinação em manter ativa uma unidade de saúde que a ninguém mais interessa. Quando assumiu o cargo, Parletre tinha pouco mais de trinta anos e dedicara-se, até então, a estudar casos mais variados de distúrbios psíquicos e enfrentara o antagonismo de seus antecessores com seus métodos de eletro-choque. Confrontava-os, diariamente, com a necessidade de dialogar com o paciente acerca de todas as suas fantasias e tomá-las como verdadeiras ? pois que assim o eram para os internos ? de onde conquistara o carinhoso apelido de Parletre. Ao longo dos anos, tornara-se ausente das discussões e pedidos de melhoria na qualidade do atendimento, desistira do sonho de recolocar aqueles internos no convívio familiar, mesmo por que não havia familiares para assumir os cuidados. Abandonados todos, vagas lembranças de irmãos, filhos, esposos, tudo de desvanecera num mundo isolado em que viviam. Parletre também vivia seu isolamento. Nunca casara; nunca se envolvera em um relacionamento mais duradouro que não o com os internos, considerava precioso disponibilizar seu tempo em cuidados e administrações de longas conversas e na busca incessante de estimular os seis funcionários disponibilizados pela Secretaria Municipal de Saúde e que nada mais queriam fazer a não ser aguardar o completar do tempo de serviço para aposentadoria. Mas guardava o segredo de um amor não correspondido ? ou conhecido. Por suas costas, os funcionários sequer seguiam suas orientações, e talvez ele o soubesse, mas não se importava mais. Havia atingido o objetivo de não ter problemas de comportamento dentro da unidade por parte dos internos. Contentara-se com o fato de haver manutenção da estrutura física e de alimentação para os pacientes. Com um jeito sempre alegre de enxergar a vida, apelidou-os conforme encontrava semelhanças em suas atitudes com personagens históricos que as lendas diziam ter agido de uma forma ou outra. José Adailton, por exemplo, gostava de queimar todos os papéis que encontrava pela frente ? portanto, todo cuidado com as fichas médicas era importante ? e ficou conhecido por Parletre como Nero. Ainda que José Adailton sequer compreendesse a referência. Questionado, certa feita, apenas limitou-se a dizer que Nero havia sido um homem que, contam, teria sido responsável pelo incêndio em uma grande cidade. Nem sempre os apelidos que colocava nos internos os agradava, mas Parletre guardava-os para si assim mesmo. Não necessitava mais anotar nada a respeito deles, os conhecia tão profundamente como nem a si mesmo tenha conseguido compreender. Ao voltar para casa diariamente, o que acontecia por volta das dezoito horas, cumpria a mesma rotina: tirava o capote branco que costumava usar, que fora bordado por Cora, uma interna, com o nome de Parletre, tomava uma taça de vinho tinto, ouvia a mesma ária de Puccini e, ao final, sempre cantarolava baixo e desafinado: vinceró, vinceró, vinceró. E preparava-se para dormir, não sem antes olhar o retrato já desbotado daquela que fora seu único amor e que jamais com ele estivera. Ocorrera tudo dentro da mesma normalidade na noite de dezoito de dezembro, exceto por, naquela noite antes de deitar, olhando a fotografia já profundamente gravada em sua mente, dizer adeus a ela. Não entendera o motivo da atitude, mas o fizera de forma impensada. Deitara, adormecera e não acordara. Já agora se revela o motivo da ausência do Doutor. Sonhara que via uma imensa floresta escura e um único caminho iluminado, com um suave vento batendo em seu rosto, começou a jornada a caminho da fonte da luz. E não acordou. Com a leveza dos que nunca cometeram falhas graves na vida, partiu silencioso e solitário como vivera dentro daquela casa nos últimos cinqüenta anos. Como herança, o que deixaria seriam os quarenta internos da clínica. Não houvera tempo para acumular bens de nenhuma espécie.