Um Verdadeiro Estado Democrático de Direito e a Realidade Angolana
Por Eugénio Joaquim Próspero | 05/03/2025 | Direito
Resumo
O Estado Democrático de Direito é um princípio fundamental que garante a legalidade, a separação de poderes e a proteção dos direitos fundamentais. Em Angola, embora a Constituição de 2010 estabeleça esse modelo como base do ordenamento jurídico, sua implementação enfrenta desafios como a concentração de poder, a fragilidade do Judiciário, a corrupção e a limitação das liberdades fundamentais. Este artigo analisa os princípios do Estado Democrático de Direito, confrontando-os com a realidade angolana e apontando desafios e soluções para o fortalecimento da democracia no país.
Palavras-chave: Estado Democrático de Direito, Constituição, Angola, separação de poderes, corrupção, direitos fundamentais.
Abstract
The Rule of Law is a fundamental principle ensuring legality, the separation of powers, and the protection of fundamental rights. In Angola, although the 2010 Constitution establishes this model as the foundation of the legal system, its implementation faces challenges such as power concentration, judicial weakness, corruption, and limitations on fundamental freedoms. This article examines the principles of the Rule of Law, comparing them with the Angolan reality and identifying challenges and solutions for strengthening democracy in the country.
Keywords: Rule of Law, Constitution, Angola, separation of powers, corruption, fundamental rights.
Introdução
O conceito de Estado de Direito é fundamental para a democracia e a justiça social, garantindo que todos os cidadãos e instituições estejam subordinados às leis. Ele pressupõe a supremacia da Constituição, a separação de poderes, a independência do Judiciário e o respeito aos direitos fundamentais.
No contexto de Angola, a transição para um Estado de Direito enfrenta desafios históricos, políticos e institucionais. A Constituição da República de Angola (CRA), aprovada em 2010, estabelece formalmente o país como um Estado Democrático de Direito, mas na prática ainda há obstáculos para a sua efectivação.
Este artigo analisa os princípios que caracterizam um verdadeiro Estado de Direito e examina a realidade angolana, com base no ordenamento jurídico vigente.
1.O Conceito de Estado de Direito
O Estado de Direito é um sistema de governação onde todas as acções do governo e dos cidadãos estão subordinadas à lei, garantindo previsibilidade e justiça. De acordo com a Constituição da República de Angola (CRA), no seu artigo 2.º, Angola se declara um Estado Democrático de Direito, baseado:
Na soberania popular;
No primado da Constituição e da lei;
No pluralismo de expressão e organização política;
Na separação e interdependência de poderes;
Na garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.
A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Comissão de Veneza do Conselho da Europa definem um verdadeiro Estado de Direito como aquele que cumpre os seguintes princípios:
1.Supremacia da Constituição e das leis: Ninguém está acima da lei, garantindo previsibilidade e segurança jurídica.
2.Separação e equilíbrio entre os poderes do Estado: Poder Executivo, Legislativo e Judiciário actuam de forma independente, evitando abusos.
3.Garantia dos direitos fundamentais: A dignidade da pessoa humana deve ser protegida, conforme previsto na CRA (artigo 31.º a 88.º).
4.Independência do Poder Judicial: Os tribunais devem ser autônomos e imparciais, como previsto no artigo 175.º da CRA.
5.Legalidade e transparência na administração pública: O governo deve agir conforme a lei e prestar contas à sociedade (artigo 6.º da CRA).
Países onde esses princípios não são respeitados enfrentam instabilidade jurídica, desigualdade e corrupção.
2.O Estado de Direito em Angola: Avanços e Desafios
•Evolução Histórica e Constitucional
Desde a independência em 1975, Angola passou por um regime de partido único, seguido por uma guerra civil prolongada. A democratização começou com os Acordos de Bicesse (1991) e foi consolidada com a Constituição de 2010, que estruturou um sistema presidencialista forte.
O artigo 108.º da CRA estabelece que o Presidente da República é o Chefe de Estado e de Governo, acumulando amplos poderes, o que pode enfraquecer a separação entre os poderes.
Apesar das reformas legais, Angola ainda enfrenta desafios para garantir um verdadeiro Estado de Direito, devido à centralização do poder e à dificuldade na aplicação equitativa das leis.
•Independência do Judiciário e Aplicação da Lei
A independência do Judiciário é essencial para o Estado de Direito, conforme o artigo 175.º da CRA. No entanto, há desafios na sua implementação:
Nomeação de Juízes e Procuradores: O Presidente da República nomeia os juízes do Tribunal Constitucional, Supremo e de Contas, o que pode comprometer a independência judicial.
Falta de recursos e corrupção: Muitos tribunais enfrentam dificuldades financeiras e influências políticas, limitando a imparcialidade das decisões.
Impunidade selectiva: Enquanto crimes de cidadãos comuns são severamente punidos, processos envolvendo figuras políticas podem enfrentar obstrução.
A Lei n.º 29/22, de 29 de agosto (Lei Orgânica dos Tribunais Comuns) estabelece a estrutura do Poder Judiciário, mas sua efectivação ainda precisa de fortalecimento.
2.3 Direitos Fundamentais e Liberdade de Expressão
A CRA, no artigo 40.º, garante a liberdade de expressão e imprensa. No entanto, jornalistas e ativistas frequentemente enfrentam repressão ao denunciarem corrupção e abusos de poder.
A Lei n.º 1/17, de 23 de janeiro (Lei de Imprensa) prevê liberdade de imprensa, mas também estabelece restrições vagas que podem ser usadas para censura.
Casos de prisões arbitrárias e perseguições políticas mostram que a aplicação dos direitos fundamentais ainda é desigual.
•Corrupção e Transparência na Administração Pública
A corrupção compromete o Estado de Direito, pois enfraquece a confiança nas instituições. A Lei n.º 5/20, de 27 de janeiro (Lei de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo) busca combater crimes financeiros, mas sua aplicação ainda enfrenta desafios.
A Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (2023-2027) busca fortalecer os mecanismos de fiscalização, mas para ser eficaz, precisa de maior independência dos órgãos de controle.
2.5 Educação Cívica e Cultura de Legalidade
Para um verdadeiro Estado de Direito, a população deve conhecer seus direitos e deveres. O artigo 79.º da CRA estabelece o direito à educação, mas a falta de investimentos no ensino cívico dificulta a formação de cidadãos conscientes.
O fortalecimento da educação jurídica e participação popular é essencial para a consolidação do Estado de Direito.
3.Conclusão e Recomendações
O Estado de Direito em Angola existe formalmente, mas enfrenta desafios na sua implementação. Embora a Constituição estabeleça princípios fundamentais, a realidade ainda está marcada por limitações na independência judicial, corrupção e desigualdade na aplicação das leis.
Para fortalecer o Estado de Direito, recomenda-se:
1.Garantir maior independência do Poder Judiciário, reduzindo a influência do Executivo nas nomeações de juízes e promovendo reformas no Conselho Superior da Magistratura Judicial.
2.Combater a corrupção de forma efectiva, fortalecendo a independência dos órgãos fiscalizadores e garantindo punições sem selectividade.
3.Fortalecer a liberdade de imprensa e direitos civis, assegurando a protecção de jornalistas e ativistas.
4.Reforçar a transparência e a participação popular, garantindo acesso à informação pública e ampliando os mecanismos de controle social.
5.Investir em educação cívica e jurídica, para que a população compreenda seus direitos e exija a aplicação da lei de forma justa.
A construção de um verdadeiro Estado de Direito exige compromisso político, fortalecimento institucional e participação cidadã activa. Angola tem potencial para consolidar esse modelo, mas isso dependerá da vontade das lideranças e do envolvimento da sociedade na defesa da legalidade e da justiça.
Referências bibliográficas:
Constituição da República de Angola de 2010
Lei n.° 1/17, de 23 de janeiro
Lei n.° 5/20, de 27 de janeiro
A Lei n.º 29/22, de 29 de agosto
FORTNA,Virginia Page. (2003). A Lost Chance for Peace – The Bicesse Accords in Angola. Georetown Jornal of International Affairs.
REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado, 4ª Edição, 1984.
FEIJÓ, Carlos. Estado de Direito Democrático e Reformas Constitucionais em Angola (texto/resumo), Londres, 24-25 de Setembro de 2001.
Por: Eugénio Joaquim Próspero (Advogado)