Um quarto de dúzia
Por Abelardo Santiago Silvério | 15/01/2013 | CrônicasO início da semana prometia não ser nada bom. Isso por que, no último dia da semana passada, um dos alunos encaminhou para a coordenação de cursos uma reclamação contra o professor George. Enfim, a merda já estava feita, e agora era encarar a fera. A aula do professor de Literatura é a primeira da semana e começou a quarenta e cinco minutos atrás, mas, como de costume, o professor não havia chegado ainda.
Quando a reclamação foi encaminhada, os alunos da classe foram orientados a procurar primeiro o professor, o que os deixou assustados. Bater de frente com o problema não é fácil pra ninguém, por isso haviam buscado meios alternativos. Mas, quem iria chamar a atenção do professor primeiro? E agora, que ele está a uns 20 passos de chegar à sala?
Tudo começou com uma série de atos cujos alunos consideravam irresponsável. Nunca havia chegado aos primeiros trinta minutos que fossem de aula, ao invés de desmanchar os grupos de conversa, criava um pra ele mesmo e mais um quarto de dúzia, consumia os primeiros quarenta minutos de sua presença instalando um Datashow que não usava e falando sobre as poesias que leu no último fim de semana. Falava somente para aqueles um quarto de dúzia que pertenciam ao seu grupo. Sobravam apenas quinze minutos semanais, que ele usava pra pedir-nos pra responder durante a semana uma apostila recém entregue.
– “Aí já é abuso!”, afirmou o Daniel, Não dá pra ficar nesse lero-lero o ano todo, sem aprendermos nada!
Daniel era um menino inteligente, à beira de seus 17 anos, no esplendor de sua revolta. Tinha posto em mente que a melhor forma de conseguir as coisas rápido, era sendo arrogante. Por isso, juntou quase todos os alunos da turma e mostrou sua estratégia pra tentar derrubar o agente agressor.
Já tinham feito isso com um professor que não bate bem dos parafusos. Achavam agora que poderia conseguir o que quisessem, se trabalhassem duro. E, de fato, poderiam. Qualquer um pode. É só se esforçar... muito!
Para agir, o Daniel só precisava de 50% de aprovação. Eram vinte e sete alunos. Destes, quatorze concordaram, sete não estavam, e três pediram para esperar. Não convocou o outro quarto de dúzia, pra bloquear a ação de puxas-saco. O caminho estava livre. Chamou dois colegas e foi à coordenação, e reclamou, e contou tudo, e até exagerou um pouco, sem perder o fio da verdade.
Agora estavam lá, na sala, todos sentados, temerosos, defronte o professor que havia acabado de chegar. Ninguém ia tomar uma atitude? O Daniel levantou.
– Professor, semana passada encaminhamos à coordenação uma reclamação contra o senhor.
– Hum... Acho isso uma maravilha! – foi mais irônico que verdadeiro, o professor – Conte-me, sobre o quê?
Citou todos os motivos, um por um, que pareciam cair como ácido na cara do professor, e ele se contorcia cada vez mais, a cada palavra dita. Nisso, metade da sala olhava, boquiaberto, para o Daniel. Um quarto de dúzia querendo participar das reclamações, outro querendo se evadir do assunto, outro, o contradizer, e ainda outro, só queria porrada. Doze participavam, e os outros doze só assistiam. Três faltaram.
– Minha prova foi muito longa? Eu cobrei um assunto que eu não ensinei?
–Sim. – o Daniel dessa vez falou com rispidez.
– Como assim? Que assunto? Tenho umas fotocópias pra tirar agora. Já volto.
Não sei bem se o professor foi tomar um ar, se foi descontar sua raiva em alguma coisa ou alguém... Era mestre e tinha vinte e cinco anos de sala de aula. Em todos esses anos de enrolação, jamais tinha acontecido algo parecido. Ainda mais se tratando do Daniel, o aluno que ele mais admirava naquela classe. Sem dúvida, um dos mais brilhantes. Apenas quatro alunos haviam ficado em cima da média, e o Daniel era um dos quatro. Então, por que reclamar?
Na sala, os meninos se perguntavam que argumento usar. Procuravam uma questão entra as dezenove, sim, dezenove páginas de uma prova bimestral de ensino médio. Procuravam questões que não tinham que ver com o conteúdo do bimestre. Alguns comentavam: “Olhem essa questão”, “olhem essa”. Outros murmuravam: “Agora esse cara merece nosso respeito.” “Que coragem!”
O Daniel ouviu alguns desses múrmuros e empinou um pouco o nariz, só por um instante. Depois, voltou a procurar questões e as listou. O professor voltou, vinte minutos depois. A aula estava prestes a terminar.
– São essas as questões? Eu falei sobre isso sim!
– Pode até ter falado, mas, não ensinou.
– Se eu falei, não ensinei?
– Se não nos ajudou a fixar, não. Não é pra isso que server o professor?
– Tudo bem. A prova foi longa, vocês querem assunto de ensino fundamental e o que mais?
– Não foi isso que quisemos dizer. Depois disso, tem o fato de você se atrasar muito em todas as aulas, e suas aulas serem improdutivas, pois você as gasta falando sobre livros com um quarto de dúzia que senta no fundo. – o Daniel guardava um trauma da Olimpíada Nacional de Língua Portuguesa, da qual o professor se prontificou a preparar a todos, depois os abandonou.
– Mas, a aula envolve Português e Literatura. Eu devo prestar consultoria sobre livros.
– A três alunos?
– Não tenho culpa se Bárbara é a única que lê.
Nessa hora, subiu ao Daniel e ao resto da metade perturbada da sala um vapor, derivado do ódio que consumia a todos por causa das colocações infelizes do Mestre. O Daniel se calou.
– Então, chegarei cedo, pois acordo todo dia às 05h45 para estar aqui. Não venho cedo, por que não tem ninguém na sala cedo! – mentira – Além disso, na próxima aula vamos aprender os assuntos do ensino fundamental que vocês não aprenderam ainda: análise morfológica.
– Professor, o senhor está sendo demagogo, e sabe que está! – o Daniel explodiu.
O professor fechou os olhos, e num tom enfurecido exclamou:
– Você pode chamar o seu pai de demagogo. Pode chamar a sua mãe, de demagoga. Mas, a mim, não!
Depois de fazer essa colocação, o professor recolheu suas coisas e saiu da sala. Acompanhado com um pouco mais de um quarto de dúzia de puxa sacos.
O Daniel ficou parado, perplexo. Pra falar a verdade, passou a desconfiar do significado de “demagogo”. Será que era tão pesado assim? Orgulhou-se de si mesmo, mesmo achando que tudo aquilo poderia não dar certo. Orgulhou-se por ter conseguido mover um quarto de dúzia a lutar por um benefício comum. Quanto a como o professor reagiria dali pra frente, não se sabe. O que se sabe apenas é que, na outra semana, quinze minutos antes do início da aula, o professor estava na sala. O Daniel chegou atrasado e, pedindo para entrar na sala, enxergou um nome bem grande no quadro: “Morfologia”.