UM POUCO DO QUE APRENDI

Por Carmen Pio | 10/12/2008 | Crônicas

Doenças Reumáticas

 

UM  POUCO  DO  QUE  APRENDI

Eu, portadora de Esclerodermia, com sintomas desde 1978, teria muitos e muitos relatos a proferir, tristes, profundos, trágicos, de dor, de desespero, sem dúvida. Entretanto, prefiro dizer que tudo que passei e passo me tornou uma pessoa muito melhor do que aquela de antes da descoberta da doença. É fundamental sempre elencarmos primeiro os pontos positivos.

Tenho a dizer que esse crescimento como ser humano e essa condição de poder conviver com a doença, sem que ela me destruísse por completo, somente ocorreram pela condição intelectual e pela capacidade e conhecimento de que dispunha e dispõe o médico que me acompanha nos últimos 38 anos de minha vida, Dr. Carlos Alberto Von Muhlen. Afirmo que o profissional que nos acompanha é tudo no manejo da doença. O médico precisa gostar de gente! O médico precisa compreender os sinais emocionais do paciente. Sem essa capacidade de compreender e perceber o outro, nenhum médico poderá ajudar um paciente com Esclerodermia, eis que uma doença que oscila e se manifesta, principalmente, conforme o estado emocional de seus portadores.

Essa grave e ainda pouco conhecida doença, a Esclerodermia, sempre nos deixa muito inseguros, uma vez que nunca sabemos quando e o quanto ela poderá nos destruir de forma imediata. Isso é um fator determinante, a meu ver, no desenrolar e na aceleração da doença. Não podemos, de forma alguma, nos entregarmos a ela e muito menos nos aceitarmos 'doentes'.

É necessário, no manejo da doença, nos empenharmos com todas as forças e de todas as formas, para que não nos entreguemos quando das fortes dores, das isquemias alucinantes, das vasculites que nos tiram os movimentos de pés e mãos e muitas vezes atacando também órgãos internos, das tosses que não nos deixam dormir por meses e meses a fio, das azias, das faltas de ar quando caminhamos e subimos escadas, dos batimentos cardíacos acelerados e 'estranhos', da boca seca, dos olhos secos, da diminuição da audição, da visão, das tonturas, dos esquecimentos momentâneos, enfim, de tantos sintomas que nós portadores da Esclerodermia conhecemos tão bem.

Não podemos nos entregar a nenhum deles! Nós precisamos nos tornar guerreiros e aprender a lutar, pois será necessário derrubar um a um dos nossos 'inimigos', com técnica, perspicácia e muita sensibilidade, determinação e fé. A cada batalha vencida, estaremos nos tornando mais fortes e mais equipados para o próximo enfrentamento. Esse, na minha vivência com a doença, é o segredo para enfrentarmos a Esclerodermia: ir lutando e vencendo cada etapa, com serenidade, disciplina, vontade, fé, sem nos entregarmos, pois guerra se vence de pé, criando estratégias.

Aqueles que se entregam ao medo, ao pânico, à depressão, sem dúvida, estarão ajudando na instalação do 'inimigo', deixando campo fértil para ele. A vontade de viver, o verdadeiro amor pela vida, pelo próximo, pela família, pelos filhos, pelo trabalho, pelos animais, pela natureza, pela poesia, pela música, pelas expressões humanas, etc., nos ajudarão a enfrentar com dignidade essa situação. A esclerodermia chegou para nós, não sabemos os motivos, as causas, enfim, mas ela está conosco e precisamos enfrentá-la e encará-la de forma a tirarmos lições positivas dessa situação que a vida nos apresentou. Enfrentar os problemas, sejam eles quais forem, é a maneira positiva, construtiva e saudável de crescermos e nos fortalecermos para a vida. E, muitas vezes, até curá-los ou intimidá-los.

A maneira como o portador da esclerodermia encarar o problema, já indicará como será a evolução da doença. Ela será mais rápida e mais cruel quanto mais deprimido, inseguro e amedrontado estiver o portador. Irá cedendo e se tornando mais branda, se tomarmos uma postura otimista e de esperança e de confiança na ciência e na vida. Digo isso porque essa tem sido a minha experiência para com a Esclerodermia: eu venho enfrentando-a com mais força do que ela.

Comecei a ter sintomas aos 19 anos, com dores muito fortes nos pés e nas mãos, sempre que estava muito frio ou em momentos que eu me via muito ansiosa e preocupada. Meus dedos indicadores ficavam congelados e brancos, até que a dor se tornava insuportável, quando, em incontáveis vezes, colocava-os sob a chama do fogão para aliviar aquela sensação de não ter dedos e ao mesmo tempo ter uma dor alucinante (essa sensação, eu creio, só os portadores de esclerodermia sentem).

Após o nascimento do meu primeiro filho, aos 21 anos, comecei a ter outros sintomas, como as isquemias nos pés e mãos, vasculites enormes nas mãos e logo a seguir nos pés, dores terríveis no abdômen, ulceração no pulmão, esquecimentos momentâneos, visão turva, diminuição da audição, aceleração nos batimentos cardíacos, dores fortes nos rins, secura da boca, dos olhos. Com esse quadro, comecei a receber medicação muito forte, através de pulsoterapia (terapia indicada para o tratamento de doenças crônicas autoimunes), indo por muitos e muitos anos para o hospital receber tal medicação. Utilizei bengala por anos seguidos. E duas luvas em cada mão, assim como duas a três meias nos pés. Tomava a medicação durante a madrugada e não deixava de trabalhar e ter a rotina normal durante o dia, mesmo que com muitas dificuldades e dores inenarráveis. Essa opção e postura por não me entregar e não ceder à doença, eu tenho toda a certeza, foi a minha maior aliada.

E aqui, quero deixar grifado, entra a importância do médico, que no meu caso particular, tive a sorte de ter ao meu lado um profissional competente, com uma postura humana, sensível e ética irretocáveis, que somadas ao seu profundo conhecimento e saber, além do envolvente gosto pela profissão escolhida, contribuiu e teve papel fundamental na condução exitosa de todos os tratamentos praticados, fazendo de mim, que era uma paciente em situação grave, com inúmeras complicações, muito jovem à época, 24 anos apenas, insegura pelas circunstâncias do momento, a mulher segura e confiante que sou hoje, apesar da Esclerodermia.

Tenho sim essa doença! Não é fácil conviver com ela, são conquistas diárias, é sempre mais um dia vivido e sobrevivido, pois nós sabemos que ela não nos deixa esquecê-la, em nenhum minuto do dia sequer, tendo em vista as dores, as limitações, os incômodos e os transtornos que causamos também àqueles com quem convivemos. Mas não podemos perder a esperança e a vontade de viver, existem tantos e tantos problemas, cada pessoa que convive conosco tem o seu problema também, e muitos deles são tão graves ou maiores do que o nosso. Precisamos continuar percebendo e ouvindo os outros também e não nos tornarmos os únicos seres com doença ou com problema no mundo. Não seremos o centro do universo só porque temos Esclerodermia.

Precisamos continuar inseridos na nossa família, no nosso trabalho, nos nossos grupos de amigos, na nossa comunidade, sem nos tornarmos um peso para aqueles com quem convivemos. A postura que adotarmos ditará a vida que passaremos a ter e, portanto, dependerá de nós a qualidade de vida que teremos.

No caso de precisar da ajuda de outras pessoas para as lidas domésticas, para nos vestirmos, pentearmos, etc., devemos pedi-la e aceitá-la com amor e carinho, nos oferecendo para retribuir naquilo que estiver ao nosso alcance. A vida é uma troca, nunca podemos nos esquecer disso. Não devemos nos sentir mal em solicitar ajuda, precisamos aprender a receber o apoio e atenção daqueles que nos querem ajudar. Essa ajuda se recebida com carinho, dignidade e respeito ao outro, fará de nós pessoas muito melhores, mais humanas, mais solidárias, mais justas e muito mais conscientes. Até ao receber ajuda nós poderemos estar também ajudando e oferecendo algo a mais ao outro.

Quando somos acometidos de algum problema grave, físico, como no caso da esclerodermia, devemos lutar para desenvolver e apurar nosso lado emocional, intelectual, cognitivo, a consciência, a fim de termos subsídios para colaborar com nosso médico e com as tão esperadas descobertas científicas, além de podermos alcançar certa serenidade e compreensão daquilo que estamos enfrentando. Nossa lucidez é fator primordial para que levemos uma vida possível e feliz. Possível, sim! Eu, uma portadora de Esclerodermia, afirmo. A felicidade, a serenidade, são sentimentos muito sutis e muito profundos, muito nobres, com os quais eu só tive um contato verdadeiro, após meu encontro com a Esclerodermia. A expansão da minha consciência teve um grande avanço após o surgimento da doença.

Outro fator de suma importância é a aproximação entre os portadores da doença. É muito fortalecedor ao portado da doença a conversa entre seus iguais, a troca de experiências, a formação de grupos, de associações. É muito reconfortante eu saber que aquela pessoa que estou vendo e nem imaginando que tem a doença, ser um portador como eu, ser alguém que luta diariamente pela sobrevivência da mesma forma que eu. Essas trocas nos aprimoram e nos dão esperança redobrada. São injeções de ânimo e de estímulo.

Por isso tudo, e aqui fiz um resumo do resumo, eu me coloco à disposição de todos portadores de Esclerodermia, para que nos comuniquemos através do site da ASCLERO, do GRUPAL, Dr. Von Muhlen (canal Youtube), de nossos e-mails pessoais ou pelo telefone ou até mesmo pessoalmente. Eu sou a prova viva de que é possível conviver com a Esclerodermia. Meu e-mail é: carmenprs@zipmail.com.br

Desejo a todos que tenham a sorte que eu tive de encontrar o médico que encontrei e que, assim como eu, possam compreender essa doença como uma forma de nos tornarmos seres humanos melhores, independente da beleza ou não de nosso físico ou do tempo de vida que possamos ter.

Carmen Pio

Porto Alegre/RS

(Artigo original de 2008 – reeditado em 2020)