Um pai valente
Por GESIEL MARCONE MEIRA SANTOS | 09/06/2015 | ContosSentia o suor escorrendo pelo meu rosto, o lençol que mamãe fazia de travesseiro para mim ficava ensopado. Todos os dias eram assim; mal o sol batia na turva lona e o acampamento acordava, ninguém aguentava o forno. Vida de sem-terra não era fácil, ainda mais naquela fazenda daquele senador, em pleno Mato Grosso. Porém, sessem aquilo era ruim para mim, pior para o meu irmão Antônio, que há dois dias ardia em febre. Chorava o dia inteiro a não ser no colo de papai. Nos braços fortes do líder que ele era, meu irmãozinho se calava. Mamãe, preocupada, resolveu levar o Antônio ao postinho médico. Era longe, mas a única saída. Papai, mesmo querendo ir, ficou. Não podia abandonar o acampamento, pois este era seu e deveria zelar por ele.
– Raimundo – gritou um sem-terra para meu pai –, os “home tão” vindo.
O senador viera de Brasília só para resolver está “pendenga”. Sabia da fama de “Raimundo, o conquistador” – apelido ganho pelo número de fazendas desapropriadas conseguidas –, e não queria arriscar. Disse que queria falar com o líder “a sós”. Todos ficaram receosos, menos meu pai; se fosse preciso enfrentar bala no peito, ele enfrentava.
Voltei para a nossa tenda, a conversa iria demorar. Encontrei mamãe chorando e não vi Antônio. Perguntei o que havia acontecido e ela me mandou dormir, mesmo sem jantar. Papai chegou mais tarde, bravo, gritando. Acordei assustado e fiquei ouvindo. Pareceu-me que o tal senador oferecera dinheiro ao papai e, então, recebeu um soco como um não. Se existia uma coisa que todos sabiam era: a honestidade e o orgulho de Raimundo eram inquestionáveis.
Foi só após repetir esta célebre frase que papai percebeu que algo estava errado. Não era hora de falar, era hora de escutar. Ficou sabendo que meu irmão estava muito ruim e precisava ser operado “às pressas”. Porém, isto requeria dinheiro, e este nós não tínhamos. Sem acreditar no que ouvira, papai correu para o posto de saúde comigo e com mamãe. Havia duas enfermeiras e um jovem médico ao lado do leito de meu irmão. O pobrezinho estava estático, parecia um defunto. Papai estava atônito. O Antônio doente em casa era uma coisa, mas ali, morrendo, era totalmente diferente.
Voltei-me para papai e vi algo que nunca esquecerei: o grande Raimundo chorava. Talvez pela tristeza, talvez pelo medo, talvez pela impotência. Não sei o motivo, sei que chorava. Ele olhou para mim, no fundo dos meus olhos, era como se nossas almas conversassem, então deu um singelo sorriso e saiu. Nunca descobrirei o que papai pensou naquele momento para ter tomado a decisão que tomou.
Naquela mesma madrugada, papai conversou com o senador e voltou cheio de dinheiro. Mamãe disse que ele seria morto por causa disso e ele respondeu que preferia morrer a perder um filho. Eu, meu irmão e minha mãe saímos do Mato Grosso em um dos jatinhos do senador. Jamais a tinha visto chorando tanto, falava que papai era um burro, pois em vez de fugir ficou, só para que lavassem sua honra.
Hoje vivemos, ou melhor, sobrevivemos em Brasília. Meu irmão está saudável e estuda, como meu pai queria. Mamãe é doméstica e toda noite chora de saudade. Eu tive que largar o colégio para trabalhar. Não me queixo, me sinto útil. Cada gota de suor que brota em mim lembra-me meu pai. Soube que foi assassinado, como mamãe profetizara. Porém, a vida é assim: todo grande líder tem que tomar enormes atitudes, com gigantescas consequências. Meu pai fez o certo: percebendo que só o seu suor não era o suficiente, deu o próprio sangue para salvar sua família, manter seus ideais e redimir seu pecado de vida e morte.