Um olhar sobre a gestão da cadeia de suprimentos da rede de vestuário Zara.

Por Allan Roberto Regis | 17/05/2015 | Adm

Introdução.

Se tem uma coisa que a globalização nos mostrou é que a competição não ocorre mais entre duas ou mais empresas, e sim entre cadeias de suprimentos. Esse olhar ampliado nos ajuda a entender a preocupação com a velocidade das operações e a busca constante por lucros cada vez maiores por parte das empresas (principalmente se considerarmos que muitas dessas empresas tem ações na bolsa de valores), ao mesmo tempo que deixa a mostra uma certa corrupção de sentido, pois o "aumento de lucro" quase sempre está ligado apenas a uma "redução de custo" imediatista. E custos menores não garantem mercados!

Se custo e velocidade são itens importantes, a capacidade de inovar no gerenciamento de transições - mudanças nas condições de mercado, evolução tecnológica, exigências diversas à medida que o produto avança em seu ciclo de vida - também é. Um exemplo vem com a rede espanhola de artigos de vestuário Zara. Depois do 11 de setembro - que foi naturalmente uma época de luto - a empresa foi capaz de mobilizar toda a sua estrutura para, no espaço de duas semanas, lançar uma nova linha de vestuário na cor preta, que obviamente se tornou um sucesso de vendas.

Então, se um dos axiomas dos negócios é que para sobreviver se precisa "cortar custos", talvez um outro pudesse ser que, para prosperar, é preciso inovar.

E para nos ajudar a refletir sobre a "inovação" no processo de gestão da cadeia de suprimentos, chamo a atenção para o artigo "Suprimento imediato" de autoria compartilhada entre Kasra Ferdows, Michael A. Lewis e Jose A.D. Machuca. O ponto em análise é o modelo de distribuição da já mencionada Zara.

Um pouco da história.

Quem hoje reconhece a rede Zara como uma das maiores redes de vestuário do mundo (mais de 700 lojas em 50 países) não imagina que tudo começou por conta de um pedido de roupas intimas cancelado. Quando em 1975 um grande atacadista alemão cancelou um pedido, Amancio Ortega, que na época tinha uma pequena empresa de vestuário na qual havia investido todo seu capital para o atendimento desse mesmo pedido, temeu que sua empresa iria a falência. Em uma ação desesperada ele abriu uma loja perto de sua fábrica em La Coruña, no noroeste da Espanha, e vendeu, ele mesmo, suas peças. À loja ele deu o nome de Zara, e pelos apuros que sofreu, aprendeu uma importante lição: "Você precisa ter cinco dedos tocando a fábrica e cinco dedos tocando o cliente". Em outras palavras: "Controle o que acontece com seu produto até que o cliente compre".


Um jeito "diferente" de fazer gestão.

A cadeia de suprimentos da Zara tem alta capacidade de resposta. Ela consegue criar, produzir e entregar uma peça em qualquer de suas lojas no mundo, em meros 15 dias, enquanto a concorrência tem somente no processo criativo, vários meses envolvidos. A rapidez na criação e distribuição permite que ela consiga até 85% do preço da etiqueta em suas roupas no varejo, enquanto a média do setor fica em torno de 60% a 70%.

Mas ainda, há mais. Meio que na contramão do setor, a Zara não definiu a terceirização como uma estratégia essencial (ela fabrica quase metade do que coloca no mercado). Não maximiza a produção, mas mantém capacidade intencionalmente ociosa. Não busca economias de escala, fabrica e distribui peças em pequenos lotes. Gerencia ela própria toda a fase de design e as funções de armazenamento, distribuição e logística. Exige de suas lojas o cumprimento de um rígido cronograma para colocação de pedidos e recebimento de estoques. As etiquetas de preço são afixadas aos produtos antes de serem despachados e não nas lojas. Mantém intencionalmente espaços vazios em suas lojas, e incentiva que ocasionalmente as lojas fiquem sem estoque de determinado produto. Parece loucura, mas tudo é um efeito direto daquela grande lição aprendida a muito tempo por seu fundador. Tal ensinamento se desdobra em três princípios.

1 - Feche o circuito da comunicação. O sistema todo é organizado para transferir tanto dados numéricos quanto qualitativos de forma rápida e fácil dos compradores para os designers e o pessoal de departamento de produção. Rastreia em tempo real materiais e produtos em cada etapa do processo (incluindo estoque em exposição nos pontos-de-venda). A informação flui deste o usuário final até as operações industrias de design, processo de compras, produção e distribuição.

2 - Mantenha o ritmo ao longo de toda a cadeia. Na Zara, o timing acelerado e a sincronia são fundamentais. A empresa tem por prática investir em qualquer coisa que ajude a aumentar ou reforçar a velocidade e a capacidade de resposta em toda a cadeia. Timing, nesse contexto, significa uma certa dose de sensibilidade para reconhecer o momento ideal de realizar uma ação.

3 - Alavanque seus ativos de capital para aumentar a flexibilidade da cadeia de suprimentos. A Zara investiu pesado em instalações de produção e distribuição, que são usadas para alavancar a capacidade de resposta da cadeia de suprimentos e ajustá-la a novas e flutuantes demandas. A empresa produz peças complicadas em suas próprias instalações e terceiriza as mais simples.

Embora a filosofia vigente na Zara não seja completamente transferível a qualquer empresa, o objetivo de extrair altos lucros é amplamente compartilhado, e no caso dela é conseguido através do controle ponto a ponto da cadeia de suprimentos e de uma resistência a modismos gerenciais que mudam a cada dia. Vou detalhar um pouco mais cada um dos três princípios.

1 - Feche o circuito da comunicação. Lojas amplas que mantém estrategicamente espaços vazios, com poucas peças a mostra, tem por finalidade criar um senso de urgência no consumidor. Mas isso só é possível por existir e funcionar um sistema de criação e reposição rápido. São aprovados cerca de 10 mil modelos anualmente para a produção, muitos inspirados na alta costura e que por serem adaptados ao grande público (tecidos mais baratos) e rapidamente distribuídos conquistam mais e mais espaços de mercado.

Para se ter uma ideia da complexidade do sistema de comunicação, considere que a maioria das peças vem em cinco ou seis cores com cinco a sete tamanhos, e você verá surgir pouco mais de 300 mil SKUs anualmente.

As informações se encaminham de clientes à gerentes de loja. De gerentes de loja à especialistas de mercado e designers. De designers à equipe de produção. De compradores à subcontratantes. De gerentes de estoque à distribuidores.

Existe apenas um centro de produção e design central, localizado em La Coruña com três linhas de produção paralelas (feminina, masculina e infantil). Cada uma das linhas tem equipes exclusivas. Embora seja efetivamente mais caro operar três canais diferentes, a compensação vem através de um fluxo de informação extremamente mais rápido dentro de cada canal, pois não há sobrecarga com as informações de outros canais.

Há também uma grande integração entre os profissionais, sejam designers, especialistas de mercados e produção. Até uma loja protótipo foi montada para cada linha, o que incentiva as pessoas a fazerem comentários sobre os modelos a medida em que são desenvolvidos. A proximidade física dos grupos envolvidos em todo o processo diminui as possibilidades de distúrbios de comunicação (efeito chicote) e permite ainda que a Zara acomode ajustes de mudança depois que a estação já tiver começado de até 50%, enquanto a média do setor é de 20%.

O estoque também é fortemente influenciado pelo bom fluxo de informação. Para quem introduz novos produtos em pequenas quantidades, se torna natural ter redução de custos relacionados ao fim de estoques de determinado item. A Zara consegue se valorizar com o que deixaria outras empresas desesperadas. Prateleiras vazias não fazem a rede perder clientes, pois há sempre coisas novas a mostra. Zerar o estoque de um item é uma estratégia para impulsionar a venda de outro. Embora essa prática não seja barata, funciona com perfeição na Zara por conta dos lotes pequenos de produtos. Na Zara itens não vendidos correspondem a 10% do estoque (a média do setor gira entre 17% e 20%). Outro ponto é que as pequenas quantidades de produtos fazem com que as pessoas visitem mais as lojas, cerca de 17 vezes ao ano (a média do setor é de 4 visitas ao ano). O alto tráfego nas lojas economiza dinheiro com propaganda. Enquanto a Zara investe em propaganda cerca de 0,3% de suas vendas, as concorrentes injetam cerca de 3% a 4%.

2 - Mantenha o ritmo ao longo de toda a cadeia. A Zara controla quase todos os pontos de sua cadeia de suprimentos. Ela é responsável pela criação e distribuição de todos os seus produtos, e dona de quase todas as lojas de varejo. A ideia por trás dessas ações é permitir que a rede dite o ritmo com que fluem as informações e produtos e evitar gargalos do tipo "ter de correr em uma etapa e depois esperar para começar a próxima".

Um exemplo do quanto a rede é disciplinada com relação ao fluxo de suas informações temos no cronograma de pedidos. Os gerentes de loja no sul da Espanha e no sul da Europa colocam pedidos, duas vezes por semana, até as 15h de quarta-feira e 18h de sábado. Os prazos do resto do mundo são 15h de terça-feira e 18h de sexta-feira. Se uma loja Zara em Barcelona perder o prazo de quarta-feira, terá de esperar até sábado. As encomendas chegam aos pontos de venda europeus em 24 horas, norte-americanos, em 48 horas e japoneses, em 72 horas.

Como todos os itens já foram etiquetados e apreçados e a maioria já é despachada nos cabides, ao chegarem nas lojas, as peças já vão diretamente para a venda. Aqui temos o entendimento do que faz aumentar o número de visitas dos clientes a rede. Como os clientes habituais sabem quando as novas remessas chegam, suas visitas acontecem nesses dias. E como a capacidade de criação é alta, há uma rotina associada as visitas na busca constante por novos modelos.

3 - Alavanque seus ativos de capital para aumentar a flexibilidade da cadeia de suprimentos. Embora se aconselhe que em um mercado volátil, com produtos de ciclo de vida curta, o melhor é ter menos ativos, a Zara segue seu próprio caminho. Produz quase metade dos seus produtos em fábricas próprias. 40% de seus tecidos são comprados de uma empresa do grupo Inditex (do qual a Zara faz parte). O material de tingimento também é comprado de outra empresa do grupo. A visão interna é que investir em bens de capital dá a empresa maior flexibilidade total. Dá um nível de controle sobre os cronogramas e capacidades que seria praticamente impossível de conseguir se a empresa fosse inteiramente dependente de fornecedores externos.

Um exemplo de flexibilidade vem da capacidade de aumentar ou diminuir sua produção já que, em geral,a produção é feita em apenas um turno em unidades altamente automatizadas. Muitas de suas linhas produtivas foram desenvolvidas em parceria com a Toyota. No seu centro de distribuição a operação segue o ritmo semanal dos pedidos: em uma semana normal, o centro funciona 24 horas por dia durante quatro dias, mas funciona com apenas um ou dois turnos nos outros três dias. Em geral 800 pessoas trabalham em períodos de oito horas. Entretanto, durante os picos de estação a empresa acrescenta até 400 pessoas. O que a Zara permite, de modo bem planejado, é a subutilização da capacidade de suas fábricas e centros de distribuição, o que permite rápida reação a picos de demanda.

Graças a capacidade de resposta de suas fábricas e centros de distribuição, a empresa reduziu a necessidade de capital de giro. Também, a capacidade de vender seus produtos poucos dias após a fabricação permite que a empresa opere com capital de giro negativo, o que compensa o investimento em capacidade adicional.

 

Considerações sobre o sistema Zara de gestão. Suas forças e fraquezas.

Forças.

Não há como negar que o objetivo de cada empresa é o lucro, de preferência o maior possível. Tal premissa, por vezes, incentiva ações unilaterais. Como uma grande parte das empresas tem ações na bolsa, é comum que para proporcionarem retorno a seus acionistas se concentrem exclusivamente na redução de custos, não se importando muito com o quê, exatamente, esteja sendo "cortado" .

Assim, em nome de determinadas metas de curto prazo, se comprometi a saúde da empresa no longo prazo. No Brasil, um caso bem notório por esses dias é o que tem acontecido com a gestão da Petrobrás. Embora nesse caso existam também questões políticas envolvidas, a fundamentar as ações está a visão de curto prazo.

Embora possa parecer óbvio, uma redução de custos tem por objetivo aumentar a margem de lucro. O aumento da margem de lucro não vem diretamente do foco no cliente, mas nos acionistas. É como se a empresa criasse pura e simplesmente meios e modos de agradar aos acionistas sem atentar que o atendimento ao cliente é essencial para que isso seja possível. Embora também seja sabido que é mais fácil aumentar a margem de lucro por meios da redução de custos, a redução pura e simples não faz com que a empresa conquiste novos clientes. E a conquista de novos clientes também faz aumentar as margens de lucro e retorno. Outro ponto é que nem mesmo a melhor relação custo-benefício é suficiente para que uma empresa consiga obter uma vantagem competitiva sustentável sobre seus concorrentes.

Em um artigo muito interessante chamado "A Cadeia de Suprimentos dos três As", Hau L. Lee apresenta o exemplo de que apesar da crescente eficiência da cadeia de suprimentos de várias empresas, e do percentual de produtos que tiveram seus preços reduzidos nos EUA crescer de menos de 10% em 1980 para mais de 20% em 2000, a satisfação dos consumidores com a disponibilidade dos produtos caiu durante esse mesmo período.

E o equilíbrio delicado que a Zara consegue nesse quesito (disponibilidade) é um dos fatores de seu sucesso. Afinal, encontrar o meio-termo entre estoques zerados de alguns itens e variedade de modelos com pequena quantidade de cada um, não é algo simples.

A cadeia de suprimentos da Zara é veloz e não tem baixo custo. Ela centraliza instalações de fabricação e distribuição e não se preocupa em gerar economias de escala através de, por exemplo, entregas de produtos por contêineres ou um maior aproveitamento dos turnos de trabalho na produção. Indo contra o senso comum seu aparente "descaso" na produção é oportunidade de acompanhar variações de demanda que naturalmente ocorrem no setor.

O controle entre os processos de fornecedor e fabricante, de distribuidor e varejista, de loja à cliente final, exige um nível de inter-relação altíssimo, mas garante a flexibilidade e agilidade. É possível esboçar 5 pontos entronizados na filosofia da Zara:

1 - Diminui os riscos por meio da coordenação e da comunicação efetivas.

2 - Aumenta a lucratividade por meio da otimização de estoques, já que elimina os excessos, reduz ciclos de compras (aumentando o giro) e diminui o grau de incertezas no fornecimento.

3 - Obtém maior agilidade no processo, prestando um melhor serviço ao cliente pela diminuição do tempo de resposta.

4 - Tem maior aceitação do produto final.

5 - Aumenta as vendas em razão da elevação do grau de fidelidade do cliente.

A Zara consegue demonstrar que o aumento dos lucros pode ser conseguido com o foco no crescimento, através da busca constante para o encontro do equilíbrio entre pessoas, tecnologia e gestão de processos. Ao menos na maior parte do tempo.

 

Fraquezas.

Se até agora descrevi apenas as vantagens do sistema, isso não quer dizer que ele não tenha também algum ponto ruim ou mesmo, extremamente contrário a filosofia demonstrada até aqui.

Em tudo que foi colocado se nota que a comunicação é algo meio que fundamental a todo o processo. Temos um interesse demonstrado por cada etapa do processo e aparentemente por todos os envolvidos. Mas... não é bem assim.

No artigo que tomei por base para esse trabalho os autores deixam de lado as questões relacionadas a gestão dos parceiros terceirizados. E até compreendo a atitude deles, eles querem demonstrar que a Zara vai contra muitas das práticas vendidas como "melhores" e , ainda assim, cresce e tem lucro.

No entanto, que o sistema de comunicação não seja tão bom como a propaganda, que o interesse pelas partes envolvidas nem sempre vá além do papel, que os "custos de produção" tem sim peso nas escolhas produtivas, temos nos constantes casos de mão-de-obra escrava na base terceirizada da Zara.

Casos em que podemos notar contratações ilegais, trabalho infantil, condições humilhantes de trabalho, jornadas exaustivas com mais de 16 horas (Lembra da ideia vendida de trabalhar apenas um turno na Espanha?), enfim, superexploração dos empregados que caracteriza o chamado dumping social, a vantagem econômica indevida no contexto da competição de mercado.

O pior é ver como a o grupo Inditex (dono da Zara) tenta escapar de suas responsabilidades enquanto vende a ideia de total integração e respeito. Em resposta a um caso denunciado em 2011 o grupo afirmou que aquilo se tratava de uma "terceirização não autorizada", que "violou seriamente" o "Código de Conduta para Fabricantes", e se comprometeu a atuar para que situações assim não voltassem a ocorrer. Mas parece que o sistema de informação não funcionou tão bem, pois em 2014 novamente a Zara estava envolvida com questões relacionadas a trabalho escravo...

 

Conclusão.

Certamente cada gestor deve atentar para as reais características de sua atividade, a fim de encontrar oportunidades de crescimento. E uma coisa que a Zara deixa claro é que nem sempre praticar as "melhores práticas", nem sempre seguir os "gurus", tenha como efeito o sucesso de suas atividades. O jogo delicado entre estoque zero, movimentação maior de pequenos lotes sem a preocupação de ganhos de escala, trabalho independente de três linhas de produtos, chamam a atenção e mostram que é possível ganhar por esse meio.

No entanto, a nós, cabe a tarefa de filtrar aquilo com que nos deparamos. Pois uma coisa é certa. Se a Zara trabalhasse totalmente de acordo com a filosofia que vende, não poderia praticar os preços que pratica. Embora os custos de produção pareçam não ser parte essencial na tomada de decisões, na prática, tem um peso considerável.

Seja qual for a atividade que se venha a exercer, devemos unir ao olhar atento das singularidades do próprio negócio, uma postura ética com relação aos valores reais que devemos querer associar a marca. E esses valores são demonstrados através do relacionamento com todos os parceiros, irradiando com maior ou menor força, até os clientes.

 

Referências.

1 - Série HBR compacta. Gestão da Cadeia de Suprimentos - vários autores. Editora Campos, 2008.

2 - Campos, Luiz Fernando Rodrigues. Supply Chain. Uma visão gerencial. Editora. Ibpex, 2009.

3 - Roupas da Zara são fabricadas com mão de obra escrava. Disponível em http://reporterbrasil.org.br/2011/08/roupas-da-zara-sao-fabricadas-com-mao-de-obra-escrava/ Acesso em 13 de maio de 2014.

4 - Roupas da Zara são fabricadas com mão de obra escrava. Disponível em http://reporterbrasil.org.br/2011/08/roupas-da-zara-sao-fabricadas-com-mao-de-obra-escrava/ Acesso em 13 de maio de 2014.