Um leve fio de seda
Por Ivan Henrique | 07/08/2022 | ContosMinha vida confortável por vezes me faz esquecer das múltiplas camadas que existem lado a lado em nossa sociedade. Vivemos num país desigual e tive a sorte, aliada ao esforço, de estar no lado limpo, organizado e sorridente da vida. Nem sempre foi assim mas não importa mais. Minha vida é confortável mas não é uma redoma asséptica e intransponível. A realidade está sempre ao lado, na calçada ou no ônibus, no asfalto, no concreto ou na terra suja, no semáforo e debaixo da marquise. O prédio de luxo e vidro brilhando ao Sol foi assentado sobre a pele e os ossos anônimos esquecidos pelo tempo.
Demorei um pouco para perceber a real dimensão do abismo que separa grande parte de nossa sociedade. Fendas tão largas e profundas, no entanto estão ao alcance das mãos, mas impedem estas mãos de se tocarem. Não acredito numa sociedade igualitária, mas numa sociedade solidária. Contudo, o que acredito ou não parece não ter a mínima importância, apesar do fato de estar no lado produtivo, culto e bem-humorado da vida. O fato que importa é que numa sexta-feira num início de março, há cerca de 2 anos vim a saber, voltando para casa, que nosso idoso fora levado para um pronto socorro. Sua esposa já lá estava desde o dia anterior, e passara a noite a seu lado. Não havia necessidade de pedir, eu já sabia que teria de substituí-la, por obrigação moral. E me preparei para passar a noite em algum lugar desconhecido.
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Sexta-feira e a volta para casa estava como sempre, lenta por causa do trânsito. Cheguei em casa antes da energia, que faltava desde cedo. Minha vida é confortável mas o banho teria de ser frio e a refeição sob os auspícios de uma lanterna. Não gosto de reclamar. Após o banho preparei uma pequena mochila com alguns itens que poderiam, quem sabe, me ajudar a passar uma noite em claro num hospital público.
A caminho do hospital fiquei pensando nas ironias que a vida guarda e nos mostra em momentos inesperados. Nosso idoso não tem nenhum parentesco comigo. Não é meu sogro, não é meu pai, avô ou tio. No entanto eu é que estou a caminho, para passar uma noite em claro num hospital público que eu nem sei onde fica. Sua esposa, minha sogra, está exausta por passar a sua quota de noites em claro, então cabe a mim parte desta quota. Hoje é o dia. Ou a noite, sei lá.
Então cheguei. Me identifiquei na recepção e me dirigi à enfermaria. Como dito reiteradamente no início da história, eu habito no lado claro e pleno de bem-estar e saúde da vida. Hospitais públicos não fazem parte da minha existência. Atravessei o corredor e cheguei no quarto.
Ao ver o semblante da minha pobre sogra comecei a entender o que aquela noite significaria. A imagem do desalento se apossara dela, uma sombra pesada de cansaço e desespero. Tão logo foi possível, ela se retirou daquele ambiente carregado em busca de um descanso muito mais do que merecido.
Virei a ampulheta de ponta-cabeça e a areia começou a escorrer, lentamente, grão a grão. Neste momento preciso são 19 horas. Elas se foram e estou só neste quarto. Ao meu redor há cinco leitos, todos ocupados. A meu dispor uma cadeira de madeira levemente reclinável, a qual seria minha cama nesta noite. Era março e quente, ainda verão no hemisfério sul.
Abri a mochila para retirar os objetos que poderiam facilitar aquela jornada noite adentro. O celular, um notebook e um livro. Porém... onde está o carregador do notebook? E onde está o carregador do celular? Em casa, é claro. Mas não aqui. Achei melhor não me aborrecer e me resignar.
De repente o primeiro grito. O quarto ainda estava com as luzes acesas e a minha frente num leito de emergência de um hospital público jazia um rapaz. Foi dele o primeiro grito daquela noite. Nas grades laterais de sua cama amarras prendiam seus braços. E ele se debatia, se contorcia e grunhia como um animal. Bem jovem e naquele estado deplorável. Haviam amarras nas suas pernas também, parecia bem contido naquele leito. Descabelado, desfigurado, desorientado ele gritava e grunhia, querendo se soltar daquele leito.
Eu estava sentado naquela cadeira de madeira observando aquele quadro convulsionado. Logo um gemido longo e áspero atingiu meu ouvido direito. No leito à direita havia um homem que aparentava uns cinquenta anos. Gemia de dor e parecia consciente. Clamava pela enfermeira, pedido remédio que aplacasse aquela dor profunda.
No leito do canto à minha frente e ao lado do rapaz que gritava amarrado estava um garoto. Inerte, apagado, desfalecido e também com amarras nos braços e pernas. Nenhum som saía de seus lábios. Nenhum movimento em seu corpo que, desta forma, fazia um contraponto com seu vizinho inquieto.
No canto oposto e também quieto, talvez dormindo, um homem de idade indefinida tinha seu rosto coberto por uma bandagem que circundava passando debaixo do queixo, ao lado das orelhas e por cima da cabeça.
E nosso idoso estava semiconsciente, vivendo em delírio, esquálido e consumido pelo tempo e a demência. Era o único naquele ambiente com alguém que lhe fazia companhia.
Onde eu vim parar?
E eu havia esquecido os carregadores do celular e do laptop. Malditos aparelhos que já me criaram dependência químico-tecnológica. Será que eu já perdi a capacidade de ficar a sós comigo? Ora, naquele ambiente eu já havia percebido que seria muito difícil ficar a sós comigo.
Resolvi andar um pouco e conhecer o hospital onde estava. Cheguei na recepção e era uma lástima. Umas cadeiras desconfortáveis e ninguém na fila de espera, apenas os plantonistas atrás de seus monitores. Uma ambulância parada já descarregara sua carga.
Na rua, apesar de cedo ainda, não havia muito movimento. Olhei ao redor e não havia lugar onde se pudesse fazer uma refeição, mesmo que indecente, como um salgadinho mergulhado na gordura ou um pacote de batatas fritas murchas. Voltei para a enfermaria.
Um médico e uma enfermeira inspecionavam o paciente com a bandagem enrolada na cabeça. Agora ele estava desperto. Perguntaram-lhe coisas da rotina do atendimento médico. Não prestei atenção. O tempo engatinhava naquele espaço insípido. Ameaçava chuva, ainda era verão. 5 seres reunidos sob este teto manchado, dois inertes, um que urrava de dor periodicamente, outro que se debatia e tentava arrancar as amarras com os dentes. Então percebi o paciente da bandagem sentado na cama, olhando para mim. Seus olhos estavam calmos. Desviei o olhar. Ele então repreendeu o seu vizinho amarrado que gritava e se debatia: “ô meu, cê tá atrapalhando o descanso do vôzinho”. Pobre do nosso idoso que nem sabia onde estava, em delírio constante chamando pelos parentes há muito embarcados na viagem final.
Triste figura a do nosso idoso, era pele e osso. Sua substância se esvaía aos poucos, de forma inexorável. Pedi a uma enfermeira que providenciasse água, ela me trouxe um copo e me apontou uma seringa onde eu poderia saciar sua sede. Deduzi que estivesse com sede, pois ele não mais respondia. Assim, gota a gota, eu pensava saciar sua sede. Odeio ver pessoas sofrendo, odeio.
Então o paciente da bandagem me dirigiu a palavra: “ Tadinho do vôzinho né? Ele é seu pai? ” “Não, na verdade eu nem tenho parentesco com ele”, respondi. Seus olhos então se encheram de lágrimas, talvez comovido pela resposta. Iniciamos uma longa conversa. Impossível relatá-la em toda a extensão. Seu nome era Aguinaldo e tinha 35 anos. Aparentava uns 50.
-O que houve com você? Perguntei.
- “Ah, sei lá, sei que eu tava na rua e, de repente, eu tava aqui” respondeu de forma honesta e quase engraçada. Entre o estar na rua e estar aqui um corte bem profundo poderia ter tirado sua vida naquela noite, eis o motivo da bandagem que envolvia sua cabeça. Como havia conseguido aquele corte ele não sabia. Mesmo à distância de uns três metros percebi o cheiro de álcool.
-“ Quando eu tô bem eu trabalho de pedreiro, trabalho direitinho viu? Já trabalhei em muita obra. O ano passado eu fiquei internado quase três meses porque fui atropelado. Aí hoje eu vim parar aqui. Nem sei dizer como é que foi? ”, me contou de forma quase angelical e infantil.
-“Você mora em Osasco mesmo? ”, perguntei.
_”Moro. Moro com a minha mãe. Ela fica triste comigo. Eu gosto muito dela”.
Conversamos por mais de uma hora até que resolvi esticar as pernas mais um pouco. Saí do quarto e deixei o Aguinaldo ainda deitado na cama. Cerca de dez minutos depois retornei e ele não estava mais lá. Pouco depois uma enfermeira entrou e perguntou se eu sabia do paradeiro dele. “Eu saí para caminhar um pouco e quando voltei ele não estava mais”. Ele havia se dado alta hospitalar depois de conversar um pouco comigo. Saiu pela rua afora somente com a camisola do hospital sobre o corpo esquálido. Sabe-se lá com quantos mililitros de álcool ele ainda encharcaria sua alma naquela noite de sexta no verão.
Nesta altura já seria por volta de uma hora de sábado. Chovia e muito. Percebi que o quarto tinha goteiras. Por sorte ela pingava no chão e não sobre a cama do nosso idoso ou sobre a cadeira-cama onde eu me instalara. Tentei dormir um pouco.
Logo acordei sobressaltado porque o paciente amarrado conseguira soltar uma das mãos e tentava tirar a outra mão do seu cabresto. Achei prudente procurar alguém da enfermagem. A enfermeira afixou novamente suas mãos e a sua agonia recomeçou. Ele se debatia e se contorcia, sacudia a cama quase a ponto de virá-la. Este rapaz era bem jovem, muito magro e sem nenhuma condição de interagir. Não articulava nenhuma palavra que eu conseguisse entender. Tive medo e pena, muita pena dele. Pensei em tantos amigos, filhos de amigos, filhas, sobrinhos, amigos e amigas das filhas, todos saudáveis, inteligentes, preparados para enfrentar o mundo. Na minha frente havia um pobre animal contido por amarras.
À minha direita estava o homem que reclamava de dores. Aparentava uns cinquenta anos. Estava quieto em seu leito, só reclamava por sentir muitas dores. O resto do tempo dormia. Dormia? Ou estava anestesiado? Passado o efeito da sedação voltava a sentir as dores e chamava pela enfermeira. Chamava em voz alta, reclamava em voz alta, gemia em voz mais alta ainda. Uma boa noite de sono estava fora de questão para mim.
Ao lado do pobre animal que se debatia, totalmente inerte encontrava-se um garoto. Também atado pelas mãos e pés, muito embora me parecesse desnecessário, já que se encontrava totalmente inerte, e assim permaneceu pela noite afora.
O que teria acontecido a estes infelizes? Onde eu estava? Que hospital era este? Só descobri depois. Era um pronto-socorro psiquiátrico. Um depósito de infelizes. Nosso idoso foi levado para lá por acaso ou por azar de ter sido recolhido por uma ambulância de resgate em final de turno. Nós cuidávamos dele, sua esposa cuidava dele até quando teve condições para tanto. No entanto, por acaso e muito azar veio parar aqui.
Eu estou a seu lado. Ele delira e chama pelos parentes mortos, parece conversar com eles, talvez os sinta próximos. Ele não sabe que estou a seu lado. Dei-lhe um pouco mais de água, gota a gota. Seu aspecto é lastimável, nem de longe lembra o senhor que um dia havia sido imponente, de bom porte e voz forte, o avô mais presente para minhas filhas, sem ter sido avô.
Mais uma vez fui para a recepção do hospital. Totalmente deserto e com menos pessoas trabalhando, já era outro turno. Já era madrugada, nem olho para o relógio, por cansaço ou resignação, quem sabe ? As cadeiras são desconfortáveis, o lugar é desconfortável. Parou de chover. Saí do trabalho quase direto para este desastre, com uma pequena parada em casa com direito a um banho frio e uma frugal refeição no escuro. Voltei para o quarto e me senti o mais afortunado dos seres ao olhar para os leitos impessoais coalhado de homens abandonados. Minha vida é confortável e eu tenho um teto seguro para pensar nestas coisas todas, e sou grato por isso.
Pouco depois de um breve cochilo, mais por fadiga do que por vontade, outra enfermeira entrou no quarto e atendeu ao homem das dores lancinantes. Acabei sabendo que ele havia caído do telhado de seu barraco, resultado de uma grande concentração etílica em seu sangue. A enfermeira disse que ele estava melhor e poderia ir para casa. E ele com a voz mais branda perguntou gentilmente se não poderia ficar mais um pouco, já que ali estava tão bom, mesmo considerando as goteiras, as formigas que passavam na parede da janela, os gritos do rapaz amarrado, isso sem falar na energia deprimente que aquele ambiente trazia carregado em cada partícula de ar. Eis o relativismo em estado bruto, se aquilo estava bom para ele imagine como seria sua casa? Tudo é relativo, nada é absoluto. Não aqui embaixo.
Aos poucos fui recolhendo pedaços de informação. Os dois mais jovens eram aprisionados pelas drogas, os outros eram escravos do álcool. Nosso idoso não pertencia àquele ambiente, mas caíra no vácuo e delirava, de certa forma era um alívio que delirasse pois assim não tinha consciência de onde havia sido entregue, como um pacote de pele e ossos.
Ele em alguns momentos falava mais alto, em outros só murmurava, chamando pelos seus parentes. Os olhos abertos, mas sem expressão me davam a impressão de olhar além daquelas paredes neutras. Quem sabe já estava sendo aguardado do outro lado daquelas paredes impessoais, e esta fosse sua última provação? Não posso afirmar, eu nada sei, só sei que sua figura me causava tristeza pelas lembranças destes quase trinta anos de convívio.
A noite avançava e meu raciocínio estava desgastado pela falta de sono. As formigas faziam trilha próximo da janela ao lado de nosso leito. O chão molhado pelas gotas da chuva que enganaram e atravessaram o concreto do teto. A luz branca do corredor do hospital. A impossibilidade de reverter aquele quadro. A constatação do fim próximo. A empatia para com os derrotados pelas armadilhas da vida terrena. O garoto inerte e o jovem atado, que retornaria sempre para suas amarras. Os bêbados de plantão, caindo dos tetos e escapando por pouco da morte nas ruas. E eu que pensava poder brincar um pouco com meu laptop até vir o sono e quem sabe aproveitar algumas horas de ócio, criando coisas agradáveis.
Com migalhas de sono e sonhos abreviados com cortes abruptos, a manhã chegara com a súbita luz branca perfurando meus olhos cansados. Outro turno teve início. O rapaz atado agora estava calmo e conversava com outra enfermeira. Ela perguntava se ele tinha família, ou no mínimo alguém que pudesse vir acompanhá-lo em sua alta. Fiquei sabendo que ele era paciente habitual daquele local. Fiquei sabendo também que havia outra ala com pacientes permanentes, abandonados pela família e alguns em estado tão deplorável que precisavam ficar enjaulados.
A mãe do garoto inerte estava ao seu lado agora. Ele estava acordado, porém quase não falava. Quanta sorte poder acordar num sábado de manhã e planejar o fim de semana na praia, no campo, ou simplesmente não querer fazer nada. Creio que estas opções não estavam disponíveis para aquela mãe.
Um copo de café com leite estava ao lado do leito de nosso idoso. Peguei a seringa e enchi, reclinei a cama e ministrei gota a gota o café da manhã. Olhei para a rua e um sábado nublado era a moldura correta para aquele momento. Fiquei aguardando o retorno da minha sogra para ir para casa tomar um banho tranquilo, comer uma refeição tranquila e dormir o sono dos justos.
Olhei para o nosso idoso antes de me retirar sem saber que seria a última vez que o veria com vida. Vida? Sua existência estava se esgarçando como um leve fio de seda em sua máxima tensão antes de se partir. Tenho quase certeza agora que seus parentes já estavam ao nosso lado, preparando a acolhida. Só não poderia vê-los pois não tenho esta habilidade.
Ivan Henrique Roberto
Maio/junho de 2017