Um Evento Feliz (RESENHA)

Por Vanessa Ruffatto Gregoviski | 06/03/2017 | Resumos

Um Evento Feliz

Vanessa Ruffatto Gregoviski[1]

 

O filme mostra a história de Bárbara e Nico desde o momento em que se conheceram até o momento em que não estavam mais tão felizes partilhando suas vidas. 

Nico trabalhava em uma locadora e podem ser percebidos os flertes iniciais de um casal que eles tinham através das caixas de filmes, o olhar apaixonado que ambos trocavam, os sorrisos encantados e aí por diante. Foi aí o começo da eleição de um companheiro e uma construção junto com ele (como na montagem do apartamento), porém, com o decorrer do filme pudemos perceber que muitas atitudes foram imaturas, possivelmente pelo processo de individualização que deveria ter acontecido antes não ter sido completamente satisfatório e eles não terem resolvidos todos os conflitos infantis pendentes.

Por que eles quiseram um ao outro? É inerente a nós o fato de tentarmos encontrar alguém para estar conosco, dividir nossas vidas. Os dois aparentam ter tido uma escolha de casal chamada narcísica, o outro parecia ser muito mais um meio de se completar do que um indivíduo diferente, o que veríamos acontecer novamente com a bebê.

Um exemplo de decisões imaturas foi como resolveram ter um filho. Como tinham uma forte ligação afetiva e um relacionamento harmonioso, impulsivamente Nico propôs isso, e assim nasceu Leia.

O primeiro obstáculo que surgiu com a gravidez, principalmente para Babi, foi a dificuldade de trabalhar ao mesmo tempo em que se preocupava com o bebê que estava por vir. É interessante observar o quanto eles, até mesmo financeiramente, estavam despreparados, tinham um apartamento pequeno e Nico tinha um emprego no qual não ganhava muito dinheiro e Babi sequer trabalhava, dedicava sua vida a sua educação. É comum em um casal planejar o futuro para que quando esse momento chegue estejam preparados.

Babi não tinha um bom relacionamento com sua mãe. Tinha criado duas filhas, ela e a irmã, sozinha, pois o marido tinha a abandonado e isso nunca foi elaborado em Babi. O relacionamento das duas se baseava em brigas e insultos, mesmo que sempre houvesse apoio. Quando o casal decide contar a ela sobre a gravidez acaba sendo mais difícil do que deveria. A usual felicidade que vem depois dessa notícia não aconteceu, muito pelo contrário, Babi inclusive tentou disfarçar dizendo que não estava grávida. O que pudemos perceber desse aspecto do relacionamento de ambas é que mais tarde ela reviveu o abandono do pai com o marido, o excluindo da relação com Leia, ela não sabia como era ter um pai e também não soube como ter uma marido, como diria Freud, repetiu para tentar significar. No final do filme percebemos isso claramente, como ela vive como a mãe viveu, sozinha com as crianças e depois sai, reeditando a experiência infantil na própria casa da infância.

O cotidiano da gravidez também é algo que o filme ressalta, como os enjoos, as mudanças de humor, as brigas por saber ou não o sexo do bebê (o que é curioso, já que, saber o sexo do bebê traz um ar de realidade maior a essa experiência e a mãe não queria saber de forma alguma), a curiosidade mesclada com medo e a preparação com o enxoval, o cuidado que é dado aos detalhes, como na compra de um carrinho de bebê.

Nessa fase Nico tinha medo de ter relações sexuais com ela, e ela dizia que não era apenas um útero, mas também uma mulher com necessidades. Essa objetificação em que a personagem se põe aparece durante todo o filme, muitas vezes diz que se sente rasgada pela gravidez (fala que ilustra bem uma espécie de cisão psicótica) ou, em outras situações, vários médicos a observam como apenas um corpo. Complementar a isso veio a exclusão que viveu, se afastando dos amigos e do marido em determinados momentos por não poder mais ter antigos hábitos do grupo, como fumar, aproveitava alguns momentos para ficar sozinha.

Antes do parto a mãe teve um sonho extremamente simbólico. Sonhou que estava cercada por água (útero), se afogando, se sentido como se estivesse sozinha e presa no quarto. Creio que essa imagem ilustra muito como estava a mente de Babi.

Na hora do parto o marido estava ao seu lado para os momentos de dor, apesar de não ser muito forte, passaram por essa fase. Quando nasce Leia vemos muito de como se dá a díade mãe e bebê, a primeira mamada, o primeiro colo e carinho, o choro e quanto a mãe já começa a se preocupar. Antes de sair da maternidade se questiona sobre se ela irá ou não gostar do bebê, em prantos, essa parte evidencia um pouco melhor o quadro de depressão que ela viveu durante a gravidez e que continuaria a viver.

Os primeiros dias são de descoberta, nem todas boas, já que os pais mal conseguem dormir direito, sendo que grande parte da responsabilidade caia sobre a mãe.

A mulher vai se desinvestindo cada vez mais para investir na criança, bebê majestade, que tem todas as suas necessidades atendidas prontamente (coisa que posteriormente foi questionada por um conhecido, “ela pode ficar chorando um pouco”). Começamos a ver a grande dificuldade que a mãe sente em frustrar a criança, o quanto deixa de fazer coisas que são importantes para ela – como o trabalho acadêmico – e pensamos no quanto a mãe protege a menina e de certa forma nem deixa o pai se aproximar para de fato exercer a função paterna, mesmo que ele próprio consinta com isso silenciosamente.

O casal conjugal passa a ser quase inexistente com o passar do tempo, são apenas pais. O romance acabou. O sexo acabou. O momento marido e mulher, mesmo que só para conversar, não acontece e eles passam o tempo brincando com a criança e filmando seus primeiros momentos. Mesmo que isso seja o esperado para os pais nos primeiros meses de vida de um filho é importante ver como no filme isso passou a ser o mundo dos dois, como se agora Nico e Babi fossem apenas isso, pai e mãe de Leia.

A mãe tenta trazer o bebê para a cama do casal tentando acalmá-la. Mas isso se repete. O pai tenta por os limites, ser o terceiro que entra na relação, mas pouco é ouvido. Até que resolve sair da cama, afinal, como ele poderia dormir aí se o bebê está ocupando seu lugar, simbólica e fisicamente?

Outros terceiros tentam se intrometer nesse espaço, como a sogra, mas essa mais atrapalhou do que ajudou. Aqui notamos bem como é a relação com ela e Nico, que é tratado como uma criança mimada. A sogra assume que Babi não sabe como lidar com o bebê e tenta fazer tudo diferente, sem nem pedir permissão, uma intromissão agressiva. E o marido fica do lado da mãe.

A solução para socializar e descontrair um pouco que Babi acha é o grupo de mulheres com filhos pequenos, que na verdade, influenciada por ideias de tal grupo, faz com que ela se torne ainda mais simbiótica com a criança e parecia que estava embriagada com a maternidade. Nesse grupo também parece ter tido a possibilidade de contrariar a própria mãe, já que as opiniões dessas mulheres eram completamente diferentes das da mãe.

Quando a situação parece se amenizar e o marido toma as rédeas, mandando a sogra embora e a criança para o quarto, os dois tentam ter um momento a sós novamente. Babi não consegue fazer sexo com ele, diz que se sente desconfortável, como se machucasse, procura um médico e tempos depois quando ele diz a ela que está tudo bem se põe a chorar.

Nesse momento do filme aparece uma frase que me chamou muito atenção: “só Leia me interessava”. A criança com já quase um ano mostrava sintomas da relação familiar em que se encontrava, chorando bastante. E essa frase nos faz pensar em como a mãe tinha a criança para si como a única coisa importante em sua vida e o como não conseguia se desgrudar dela, nem chamar babás para ajudar ou coloca-la numa creche.

Existem agora algumas tentativas de salvar a relação, como Babi saindo para beber e o casal saindo de férias, mas ambas as tentativas se mostraram frustrantes e não deram certo. Durante o sexo nas férias, Babi chega a alucinar que ouviu a criança chorar. A separação começa a se mostrar como algo possível.

Depois de inúmeras brigas e clara infelicidade conjugal, Babi sai de casa por uns tempos, volta para o ninho, mostrando o quanto ainda haviam coisas para serem resolvidas antes que ela pudesse voltar a viver a sua vida adulta. Conversa com a mãe sobre diversas coisas, inclusive o abandono do pai, e parece elaborar melhor e significar o que tinha acontecido quando ela era pequena. Nesse tempo sozinha, ela escreve um novo artigo para seu mestrado, contando sobre o início de sua gravidez. Tenta sair, passar algum tempo de qualidade com a irmã e as amigas.

Pai e bebê tem seu primeiro momento juntos e sozinhos e surpreende muito o quanto Nico se desdobra para dar conta e consegue, levando a criança no trabalho, cuidando da casa, etc.

Eles se reencontram, Nico conta que conseguiu colocar Leia na creche e Babi conta que está grávida de novo.

O filme “um evento feliz” foi uma imensa fonte de aprendizado, pudemos ver em primeira mão coisas que estudamos em sala de aula acontecendo com um casal de verdade, mesmo que no mundo do cinema, e o quanto pode ser difícil sobreviver a tantas mudanças e novas fases que surgem, o quanto é preciso estar maduro e ter um diálogo sempre aberto para ouvir e aceitar o que o outro propõe, mesmo que estejam em momentos diferentes o importante na família é “ser três”, existir um nós, para que todos possam ser felizes.

 

[1] Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade de Passo Fundo.