UM ESTUDO SOBRE A LUTA DO HUMANO CONTRA O DIVINO A PARTIR DA PERSPECTIVA DOS PERSONAGENS AHAB E A BALEIA BRANCA EM MOBY DICK.

Por Francisco Mardônio de Sousa | 04/08/2014 | Literatura

1 INTRODUÇÃO O livro “Moby Dick”, obra-prima do romancista Norte-americano Herman Melville (1819-1891) e um clássico da literatura mundial há mais de cem anos, contém uma série de reflexões sobre a condição humana e o quanto podemos nos cegar na busca de um objetivo a ponto de se tornar uma obsessão. O presente estudo se debruçará sobre as razões ocultas da luta do humano contra o divino, representados respectivamente por Ahab, o capitão obsessivo do navio Pequod, cujo orgulho enfatuado ou hubrys leva o barco e seus homens a destruição e Moby Dick, a inescrutável e enigmática Baleia Branca, que tem sido interpretada por muitos críticos como uma representação alegórica de Deus, sendo esta, portanto considerada inatingível e potencialmente punitiva. A partir das considerações supracitadas, o presente artigo tem por objetivo analisar as diversidades religiosas e simbologias bíblicas presentes em “Moby Dick”, cujo texto apresenta muitas metáforas e alegorias sobre a natureza humana e a natureza divina, além de personagens complexos e impregnados de significados míticos como o capitão Ahab, símbolo da vontade do homem que ousa se opor às forças externas do macrocosmo Natureza. O foco da pesquisa recairá também sobre Moby Dick, a Baleia que representa para Ahab, o mal infinito por ter mutilado uma de suas pernas, Um inimigo silencioso e sagaz como o diabo que deve ser derrotado a qualquer preço, por essa razão a persegue monomaniacamente na vastidão do mar sagrado com todos os seus mistérios e criaturas milenares, feitos à mão divina, neste sentido, a natureza por mais bela e sublime que seja não tolera desafios pelo mais fraco, logo sua ferocidade é concretizada por meio da Baleia Branca, a coisa que se revolta contra o ser humano. Em “Moby Dick”, Melville fala bastante sobre o mar, a porção líquida do mundo, mais uma grande obra da criação divina, o lugar do desconhecido e desconhecível, da perplexidade. Segundo os estudiosos da obra de Melville a intenção do autor foi evidenciar o eterno conflito entre o homem e seu destino, sendo até mesmo este determinado e governado por Deus, daí, nos inquieta entender porque o homem insiste tanto em desafiar o sobrenatural. Enfim, o presente estudo será relevante para estudantes e pesquisadores das linhas do autor a também entender o que realmente motiva o homem a se rebelar contra Deus, o seu criador. Será um estudo a cerca deste embate universal e dessa luta entre feras, da pura fera e o orgulho humano, a qual permanece viva no nosso imaginário até os dias atuais motivando críticos e estudiosos a pesquisarem mais a fundo o assunto. 2 ELEMENTOS RELIGIOSOS EM MOBY DICK. Carlos Caldas (2004), em seu artigo Elementos religiosos em Moby Dick de Melville, afirma que, já há alguns anos a comunidade acadêmica que estuda cientificamente a Religião tem aderido a abordagens provenientes do estudo das artes em geral e, mais particularmente, da literatura, surgindo assim um novo modelo de pesquisa baseado na interface arte/literatura e religião/teologia. “Já se tem observado que, em tempos chamados de pós-modernos, a teoria da literatura tem ocupado o lugar de destaque que em outras épocas pertenceu à teologia” (SIRE, 2001, p.226-227). Assim “Moby Dick”, uma das narrativas mais complexas e filosoficamente complicadas de Melville, dá margem a várias interpretações, mas a mais marcante é a interpretação religiosa e as simbologias bíblicas como na escolha de vários personagens com nomes bíblicos (Ishmael, Ahab, Elias, o navio Rachel, etc). Assim, ousamos dizer que a escrita da obra pode ser usada para transmitir mensagens e ensinamentos sagrados, conforme postula Gross (2002, p.8) em sua citação, ainda a cerca da interface religião e literatura: “Não é difícil seguir na história a relação entre religião e literatura. Bem cedo a escrita foi utilizada para transmitir adiante mensagens sagradas.” O episódio de Jonas e a Baleia seria uma delas. Moby Dick por pertencer ao gênero literatura de viagem, pode ser visto como um romance puramente de aventuras ou outras classificações, fato é que não se limita a nenhuma, mas combina vários elementos, dada a sua densidade dramática e psicológica. A história narrada com realismo e propriedade por Melville, ganha ainda mais sentido com o jogo de ideias de cada leitor, conforme afirma Leon Howard, estudioso do escritor Herman Melville. Devido à sua complexidade não convencional, é um livro perturbador [...] À semelhança de todos os outros grandes livros, Moby Dick tem a potencialidade de enriquecer-se com o sentido das emoções e ideias de cada novo leitor, e tem se tornado maior em implicações com a passagem do tempo (HOWARD, 1950, p.X,XII). A obra Moby Dick é fortemente influenciada pela religião. Uma das evidências mais presentes é o fato de Melville falar frequentemente das crenças e práticas religiosas dos membros da tripulação do Pequod. Tomemos como exemplo, a metáfora do barco, cuja tripulação era multiétnica e multicultural, constituída de americanos, europeus, índios, negros e orientais, simbolizando a humanidade como um todo, a qual é transportada pelo Pequod, um microcosmo a singrar as águas da existência, cujo capitão é o próprio Deus, o autor da vida. Ishmael ao se referir às variedades de crenças e práticas religiosas diz enfaticamente: For I cherish the greatest respect towards everybody’s religious obligations, never mind how comical,[…]I say, we good Presbyterian Christians should be charitable in these things, and not fancy ourselves so vastly superior to other mortals, pagans and what not, because of their half-crazy conceits on these subjects.(MELVILLE,1851,c.17,p.166). 3. AHAB, SÍMBOLO DA LUTA HUMANA CONTRA AS FORÇAS EXTERNAS DO UNIVERSO (DEUS). Na vertente religiosa, para o cristianismo, o orgulho, conhecido como soberba, é um dos sete pecados capitais, tomado no seu sentido negativo. Um dos piores sentimentos humanos, que leva o homem a um nível extremo de arrogância a ponto de conduzi-lo à ruína. É este o sentimento vivido pelo capitão Ahab desde que Moby Dick, a leviatânica Baleia Branca levou-lhe a perna e a paz, deixando-lhe um eterno vazio não só no corpo, mas na alma. O capitão Ahab teve por assim dizer o seu orgulho ferido, por isso trava uma vingança infindável e uma perseguição monomaníaca a Baleia Branca, passa a encará-la como inimigo, e derrotá-lo passa a ser seu principal objetivo, uma tentativa de resgatar sua honra, seu brio. Na longa viagem do Pequod a tripulação deseja apenas fazer o seu trabalho e enriquecer rapidamente, enquanto Ahab informa a todos o verdadeiro propósito daquela viagem baleeira. And I’ll chase him round good hope, and round the Horn, and round the Norway Maelstrom, and round perdition’s flames before I give him up. And this is what ye have shipped for, men! To chase that white whale on both sides of land, and over all sides of earth, till he spouts black blood and rolls fin out (MELVILLE, 1851, c.36, p. 310-11). A partir de então o insano capitão afirma que o confronto entre ele e Moby Dick está imutavelmente decretado (p.1023). Mergulhando um pouco mais neste confronto percebemos outro embate, o do homem e o destino; Ahab revolta-se não somente contra a Baleia, mas também contra o seu destino. Nesse ponto sua vingança deixa de ser uma reivindicação individual e se afigura na luta do homem contra os desígnios divinos, por extensão contra Deus, representado em Moby Dick, uma força impessoal, a qual representa a existência cósmica e impenetrável que domina o romance e obceca Ahab. Tal conflito revela antes de tudo, o embate universal do homem contra o irracional ou contra a natureza, deparando-se com suas próprias limitações e fraquezas, investindo numa perseguição ímpia e mal sucedida a Deus, pois como ele mesmo considera a oposição simbólica que ele constrói entre si e Moby Dick o conduzirá a um destino final, portanto trágico. Ainda assim Ahab não se rende, a sua condição inferior, de ser corruptível fala mais alto, certamente por habitar o mundo sublunar e não poder atingir a perfeição. Talvez seja esse um dos motivos que atormenta o homem baixo, o não poder alcançar o nível do homem alto, o ser perfeito (Deus), e o que o homem não consegue alcançar o desafia, eis uma possível razão de Ahab desafiar o senso comum e acreditar que pode alterar a ordem natural das coisas, e triunfar, a ponto de declarar sua própria imortalidade: “I have here two pledges that I shall yet slay Moby Dick and survive it [...] I am immortal then, on land and on sea; cried Ahab, with a laugh derision (MELVILLE,1851,c117,p.911-12)”. Caldas (2004, p.168) afirma que: “Em uma perspectiva transdisciplinar, que combina história das religiões com análise literária, Ahab, que vai em seu navio até o ‘fim do mundo’ perseguindo Moby Dick, é um herói às avessas, pois é o monstro marinho que vem à superfície e não Ahab que mergulha em sua captura”. E conclui questionando se Ahab não seria um anti-herói e a posição de herói caberia à misteriosa e toda poderosa Baleia Branca. 4 BALEIA BRANCA, SÍMBOLO DO DIVINO E DA EXISTÊNCIA CÓSMICA. A crítica tem se dedicado incansavelmente a entender o significado da Baleia Moby Dick na obra de Melville, e a primeira descrição que temos é de que a Baleia Branca é uma força impessoal que contraria a vontade livre e não pode ser derrotada, sugerindo-se hipoteticamente que possa ser interpretada como uma representação alegórica de Deus. Contudo, o que mais a aponta como um ser com divindade é o fato de reinar e imperar nas águas do mar sagrado desde os primórdios da humanidade conforme evidencia Melville no capítulo 14 intitulado Nantucket: [...] The mightiest animated mass that has survived the flood; most monstrous and most mountainous! That Himalayan, Salt-sea Mastodon, clothed with such portentousness of unconscious power, that his very panics are more to be dreaded than his most fearless and malicious assaults! (MELVILLE, 1851, c.14, p.132-33). Em trechos posteriores que Melville descreve um ser silencioso, inescrutável e todo poderoso, que a humanidade não consegue compreendê-lo nem derrota-lo nos alude ao que mais tarde Otto (1985) atesta em um estudo clássico das religiões sobre o divino, realidade terrível, que espanta, amedronta e assusta, mas ao mesmo tempo atrai e chama a atenção. Considerando a ideia correta que entende Moby Dick como uma metáfora da divindade, talvez possamos fazer ponderações à luz de Thompson (1952, passim), Sullivan e Hall (2000, p.366), que têm compreendido que Moby Dick é a expressão máxima da luta de Melville com Deus. Vendo a baleia por outro prisma, como obra da criação divina, ser vivo da natureza, o conceito que temos é de um animal irracional, porém pacífico, que apenas manifesta seu lado agressivo, quando desafiado. Chevallier; Gheerbrant (1999, p.17) vê o eterno ser marinho como um monstro que habita o desconhecido mundo das águas: E visto que a terra repousa sobre o anjo, o anjo sobre o rochedo, o rochedo em cima do touro, o touro em cima da baleia, a baleia em cima d’água, a água sobre o ar e o ar sobre as trevas, e que toda essa estrutura depende dos movimentos da baleia, Iblis, induziu esta última a cair na tentação segundo contam, de livrar-se de sua carga. Os terremotos são devidos os sobressaltos da baleia Outro simbolismo na obra de Melville seria a brancura do cachalote, símbolo da paz, da pureza e da luz, mas vale ressaltar aqui que certa vez um anjo da confiança de Deus, luzbel ou ser de luz foi precipitado nos infernos, mais ou menos assim inicia-se a saga do Demônio Cristão, denominado lúcifer, logo, o branco que representa a pureza vai além do seu conceito primeiro, significando a passagem da vida para a morte, da luz para as trevas, melhor explicado nas palavras de Chevallier; Gheerbrant (1999, p.141-42): O simbolismo da cor branca, e de seus usos rituais, decorre dessa observação da natureza, a partir da qual todas as criaturas humanas edificaram seus sistemas filosóficos e religiosos. (...); Em todo pensamento simbólico, a morte precede a vida, pois todo o nascimento é um renascimento. Por isso o branco é principalmente a cor da morte e do luto. 5 AHAB E MOBY DICK NA PERSPECTIVA DO DUALISMO BEM/MAL. De acordo com o crítico M.H Abram, Ahab como um herói trágico nos conduz à piedade, uma vez que sua perturbação espiritual não é de nascença o seu infortúnio é maior do que ele merece, mas também nos conduz ao medo, pois nos identificamos com ele pela nossa condição humana sujeita à falhas, pois o capitão antes de mais nada é um ser humano, fruto da obra divina, que é a origem e plenitude do bem, portanto imagem e semelhança de Deus, que lhe foi dada a incumbência de representá-lo na terra, carrega consigo a marca da realeza. Esta concepção do Gênesis é posta pela astrologia na própria base de sua doutrina: alicerça as relações entre microcosmo (o homem) e o macrocosmo (não só o universo, mas o pensamento englobante de Deus: ideia e força do universo) Para todo homem seu nascimento é como uma criação do mundo: para ele é a mesma coisa que ele nasça no mundo. Assim, a sua morte é como o fim do mundo [...] Esse conjunto Deus-universo-homem é expresso por uma esfera, a imagem tradicional do mundo, de que cada homem ocupa o centro. Ele não se define no mundo, e o mundo não se define por ele, senão por suas relações recíprocas. O homem simboliza um nó de relações cósmicas (CHEVALLIER; GHEERBRANT, 1999, p.495-96). Dessa forma, o homem jamais chegará ao nível da perfeição divina, por mais que busque a excelência, como a perna de marfim de ahab retirado do osso de uma baleia, uma criação humana que jamais substituirá o membro original do corpo moldado por Deus. Destacados os símbolos da obra em estudo chegamos à conclusão de que as evidências do Bem e do Mal são retratadas em Ahab e Moby Dick. O homem representado pela multiplicidade do mal é induzido ao erro e obriga sua tripulação a compartilhar consigo deste erro, conduzindo-a ao sofrimento e a morte. Isto poderia significar o triunfo do Mal sobre o Bem, mas na narrativa de Melville há muitas citações da Bíblia sagrada que pregam o sofrimento como o caminho para a compreensão do homem de sua pequenez diante das determinações divinas. CONCLUSÃO Concluímos então que o sofrimento se faz necessário para que o homem evolua, lute por sua dignidade e encontre a luz. Nessa perspectiva a provação pode levar o ser humano ao conhecimento de si mesmo, de suas próprias fraquezas e ao reconhecimento de que Deus é absoluto e o único a ter as chaves do conhecimento do bem e do mal, de toda verdade, o único que criou o universo e deu vida a humanidade, por essa razão apenas Ele (Deus) pode tomá-la de volta para si no tempo determinado, Para tanto, a morte é o real trinfo, pois por meio dela, a alma liberta-se da matéria perecível e regressa ao seu criador. Assim sendo, a luta do humano contra o divino não seria por poder e sim por liberdade do invólucro carnal para retornar à sua essência. Quanto ao fato de apenas Ismael ter escapado ao confronto final com Moby Dick, podemos interpretá-lo como um enviado de Deus para levar a mensagem de que o humano não pode lutar contra o divino. E assim no decorrer da história da humanidade há inúmeros exemplos da manifestação divina sobre o homem que desafia as forças que lhes são superiores. REFERÊNCIAS MELVILLE, Herman. Moby Dick or the whale. Nova York (EUA): Editorial Harper & Brothers, 1851. CALDAS, Carlos. Elementos Religiosos em Moby Dick, de Herman Melville: da (re) descoberta da importância da literatura para estudo da religião. (elementos religiosos de Moby Dick de Melville (artigo). Ciências da Religião: História e Sociedade. São Paulo, Ano 2.|N.2.2004.p.161-176 Universidade Presbiteriana Mackenzie. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Ensaios sobre o simbolismo mágico- religioso. São Paulo: Martins Fontes, 1966. GOUVEA, Ricardo Quadros. 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