Um espetáculo chamado Roma - segundo módulo
Por josé maria couto moreira | 17/11/2015 | HistóriaUm espetáculo chamado Roma
Módulo segundo
As fontes romanas, que nos abastecem de trepidantes alegrias, e os palácios, edificações cuja beleza e harmonia desafiam os novos tempos arquiteturais.
Prossigamos no passeio sentimental pela bela e insuperável Roma. Roma não se deu por acabada, embora possua dois mil e setecentos anos, contados a partir de sua fundação, com o reinado sucessivo daqueles bravos reis etruscos, responsáveis por sua localização geográfica e por sua expansão até o ano 500 a.C.
Em qualquer estágio da história da cidade, constituiria uma imperfeição, ou mesmo um erro, não fossem citados aqueles homens convictos de seus poderes territoriais, e que tanto bradaram, até pelo sangue e pela preservação dos poderes absolutos de que dispunham, que lhes chegaram pelos punhos e pelas armas.
Vamos hoje percorrer algo de gracioso e de gentil naquele espaço, monumentos que há séculos oferecem imenso bem estar ao espírito quando deles nos aproximamos e os tocamos. A exuberância de cada um, não esmaece a beleza de outro, que se encontram íntegros e vigiados pela observação atenta da humanidade. Falemos então das galantes fontes de Roma, e nos encantemos com seus palácios, edificados alguns, há mil anos, por nobres romanos, pelos papas e por sociedades pias e culturais. A consciência de conservação da memória daquela cidade, de há muito, foi decisiva para o espetáculo de beleza e êxtase que Roma exerce sobre nós. Também porque, naquela urbe, nada há que exaura o amor que a ela declaramos. Não há repetição de formas, daí a surpresa que nos aguarda a cada passo. A uma paisagem multicolorida pode suceder uma outra, que nos intriga ou nos enternece.
Para comprovar esta verdade, visitemos suas fontes, ainda que as principais, cada uma concebida por um criador diferente, cada uma com sua mensagem ao visitante, cada uma retendo o observador longamente, quedado diante delas, perquirindo a sua forma, a sua existência, a sua plasticidade, exaltando-se com o privilégio de contemplar pequenos e grandes exemplares, testemunhos vivos, em uma grande maioria, de uma época imperial faustosa. Esses trabalhos arquiteturais cumpriram seu papel de alegrar a cidade e infundir contentamento nos peregrinos e nos estrangeiros. Na verdade, além de equipar a cidade com recantos em que os olhos transmitem ao espírito uma sensação festiva, as administrações que se sucederam aproveitaram a abundância das águas na região, que continuam abastecendo os moradores e sua imensa e sempre presente população flutuante.
É relaxante, mesmo inebriador, o efeito da contemplação da Fontana di Trevi, concebida, primeiramente, pelo Papa Nicolau V, no século XIII, mais com o propósito de aproveitamento do Aqueduto de Água Virgem, ainda hoje abastecendo aquele monumento. Passados mais de duzentos anos, por iniciativa do Papa Urbano VIII, um dos reformadores de Roma, foi pedido a Bernini, arquiteto da época, um novo estudo da fonte, limitando-se o artista a reposicionar sua parte frontal, porém, mortos o papa e Bernini, o projeto também adormeceu, só retomado com Clemente XII Corsini, em 1762, com o auxílio de Nicolas Salvi, desenvolvendo o tema “realeza do oceano”, recebendo a “fontana” o último restauro quando foram retiradas as esculturas antigas, substituídas pela figura de Netuno e seu séquito.
Este delicado monumento barroco prestou-se a cenário para vários filmes, entre eles o premiadíssimo La dolce vita, de Felini.
Às fontes de Roma é impossível atribuir importância a uma em prejuízo de outra. Cada uma teve sua inspiração, seu tema e a própria liberdade física, que permitia ao artista atuar em determinado espaço. Uma pequena fonte, a das Abelhas, por exemplo, concebida pelo sempre iluminado Bernini e realizada em homenagem ao pontificado do papa Urbano VIII Barberini, cujo brasão da família consignava a abelha, nos surpreende pela leveza e graça, localizada no encontro da elegante Via Vittorio Veneto, em seu final, com a Piazza Barberini.
Fonte em que nos detemos por mais tempo, porque obrigados a gozar daquela magia de curvas e intensos movimentos aquáticos, é a das Naiades, próxima à estação ferroviária. Esta é obra do século vinte, em que atuou exclusivamente Mario Rutelli. Avançando aos lentos passos do barroco, Rutelli provocou enorme escândalo na cidade, porque ali assentou ninfas artisticamente reclinadas sobre animais da água. Impôs ainda o arquiteto, no centro da fonte, a presença do deus marítimo Glauco, e, junto a ele, um vigoroso jato dágua, ali representando os obeliscos e colunas da cidade. Esta exuberante mostra da arte romana constitui a primeira surpresa que o viajante recebe ao desembarcar em Roma por via férrea.
A Piazza Navona, apreciável conjunto urbano que jamais esgota o prazer contemplativo e de participação na festa ininterrupta que ali já consagraram os séculos, espaço em que desponta, como rico exemplar palaciano, a Embaixada do Brasil, estarrecem nossa admiração as três fontes irmãs, ali instaladas por Gregorio XIII e reformadas por Inocêncio X Pamphili . A Fonte dos Rios exprime homenagem aos rios Ganges, da Prata, Nilo e Danúbio, e correspondem aos quatro continentes até então conhecidos. Todas versam temas marítimos, o que era um requinte dos projetos romanos da época, porque Roma, cristianizada há milênios, não mais se assustava com teses mitológicas, e as utilizavam para expor e exprimir tão somente a arte pela arte. A Fonte de Netuno se completa com a figura de Netuno em companhia de ninfas. A Fonte do Mouro, que completa a tríade, representa um mouro em luta com um animal marinho, encontrando-se esta em frente ao Pallazo Pamphili. A contemplação de tão agradável vista produz sensação de apossamento de grande riqueza espiritual. A aplicada e paciente artesania daqueles romanos, que convertiam blocos de pedras em figuras admiráveis, é tão intrigante quanto a tecnologia atual, em que tempo e espaço transmudaram-se para puras referências metafísicas. Como eram felizes aqueles homens e mulheres na certeza de que o tempo de ontem pertencia a eles, e não é mais como o tempo de hoje, em que o frenesi de viver está reorientado para o consumo e demais atividades que esgotam nosso dia sem que nos apercebamos. Em síntese, não somos mais contemplativos como dantes, ou tanto quanto deveríamos ser.
O gosto de apreciar Roma, mirando suas fontes, seus palácios, suas igrejas, suas praças e suas ruinas, enfim, sua cenografia urbana, requer disposição contemplativa, porque Roma possui mistério e beleza, atributos que exigem tempo que se entregue a eles para a admiração de cada qual.
Outra fonte que desperta o interesse de todos é a Fonte da Água Feliz, também chamada de Moisés. Concretizada por Sisto V, em 1588, concebida por Domenico Fontana, representa o início do aplauso dos romanos pelas grandes fontes. Seu construtor amargurou-se mortalmente pela crítica da população que acusou possível desproporcionalidade entre a figura de Moisés em face da dimensão do monumento.
Inclui-se, também, como atração para romanos e visitantes, a Fonte de Castor e Polux, uma tentativa de retomada de linhas arquitetônicas da época imperial. Com estátuas colossais dos gêmeos mitológicos patronos da equitação, decora fantasticamente a Piazza del Quirinal, onde se encontra o Palácio do Quirinal, imóvel onde se instalou a residência do presidente da República Italiana. A característica peculiar deste monumento é que ele é todo composto de peças retiradas de ruinas da cidade. Era prática que se estendia também aos particulares, até a unificação da Itália, o aproveitamento de materiais distribuídos em construções públicas pela cidade.
As fontes romanas são como os romanos: sonoras e ruidosas, alvoroçadas, vibrantes, animadas e agitadas. São estas qualidades que melhor expressam o hábito do romano de viver e conviver. O romano tem seus chistes, seus gracejos, e as fontes suas exclamações e seus jorros, que respingam nos passantes que mais delas se aproximam. E comprovam a abastança com que vivem aquelas gentes. As fontes possuem o que mais as justificam: a abundância de suas águas, que jorram e se movimentam, sugerindo sua perenidade. Não se sabe mesmo, diante da festa aquátil que exibem, quem primeiro ali chegou, se as fontes ou os romanos.
Das fontes, como manifestações generosas do espírito romano, traduzidas naquele espetáculo abundante de águas dançantes, apreciemos agora as construções igualmente elegantes, amplas, espaçosas e provocativas do traço romano que orientaram seus palácios. Estes, quase avançam na linha de frente, arrojando seus frontões e seus ornatos à observação dos passantes, que os vê, os observam e os compreendem em seus diálogos arquiteturais com aqueles transeuntes. São provas concretas de que os romanos não abandonaram as concepções imperiais, e nem representam estas belíssimas edificações um esforço para redecorar também a belíssima Roma. Tudo é resultante da plasticidade a que o romano sempre foi afeito, é harmonia que conheceram com a civilização grega, nela introduzindo o fausto e a impressão da abastança e da harmonia que rodeia o espírito romano.
Com as nossas homenagens à valorosa república romana, que adquiriu este caráter constitucional por meio de lutas por vezes fratricidas travadas pelo povo itálico, apreciemos o Palácio Quirinal, que, desde 1946, destina-se à residência oficial do presidente. Esta bela edificação ergueu-se a partir de 1574, arrastando-se os trabalhos até 1728, quando passou a hospedar os pontífices como moradia de verão até 1870, então a seguir ocupada como residência real em face da unificação do país. Seu primeiro morador foi Vitor Emanuel II, da Casa de Savóia. O rei alcançou o cetro como filho de Carlos Alberto de Savóia, que renunciou em favor do filho, bravo combatente pela unificação.
Pela majestade da construção, e como orgulhosa presença brasileira na Cidade Eterna, aproximêmo-nos, novamente, da encantadora e igualmente sedutora Piazza Navona e nos curvemos de agradecidos e maravilhados diante do Palazzo Pamphili, sede de nossa representação diplomática na Itália desde 1961, construção das mais significativas pela beleza, pelo requinte, pelo volume e pela sua história.
O projeto é do respeitável Gerolamo Rainaldi, arquiteto também responsável por outras grandes obras na cidade como aqueles dois belíssimos exemplares eclesiais que repousam edificados na Piazza del Popolo, como a abençoar a entrada dos visitantes que antigamente atingiam Roma pelo Porta del Popolo. A execução dos trabalhos foi rápida, durando de 1644 a 1650, a mando de Inocêncio X Pamphili. O local, anteriormente, era ocupado por imóveis da poderosa família Pamphili, cuja crescente influência exigia a construção de um novo palácio. Uma coleção valiosíssima de obras de arte decoram as dependências do palácio, onde a grande galeria foi entregue à inspiração de Pietro da Corttona. Um detalhe burlesco e caricato da vida deste imóvel não pode ser sonegado. A cunhada de Inocêncio Pamphili, Olimpia Maidalchini, já viúva, tida por confidente e conselheira permanente do pontífice, foi alcunhada pelo povo como “a pimpaccia de Piazza Navona” ou, entre nós, a sirigaita da Praça Navona, presumidamente pelas intervenções nos destinos da política vaticana tanto quanto nas diretrizes urbanas de Roma.
Só em 1964 é que a propriedade foi adquirida pelo governo brasileiro, processo implementado pelo então embaixador Hugo Gouthier.
Após esta visita fantástica, e que nossa retina guardará para sempre, cruzemos a Piazza Navona em direção ao Palazzo Madama, situado no Corso del Renascimento, imóvel de destaque na cidade pela sua Importância institucional, pois é lá que se reúne o Senado Romano desde 1871. O projeto é do célebre Rafael, e a construção correu às expensas da família Medici. Ali habitaram o Cardeal Medici, futuro Leão X e seu primo Clemente VII. Este precioso e monumental palácio foi um importante centro irradiador da cultura humanista. Após a derrocada da família Medici, o palácio foi propriedade de Benedito XIV, que transferiu para lá a sede pontifícia. O nome é emprestado pela respeitável senhora romana, Madama Margeritha de Parma, filha ilegítima de Carlos V, casada em primeiras núpcias com um membro da família Medici e, em segundas núpcias com Otavio Farnese, o que causou a divisão do riquíssimo acervo artístico dos Medici.
Exemplar arquitetural imponente e majestoso é o Palazzo Margherita, erguido pelos Ludovisi entre 1886 e 1990, para a residência da família. Localizado em ponto nobilíssimo da cidade, na sempre atraente Via Veneto, hoje abriga os serviços diplomáticos dos Estados Unidos da América. Os custos elevados da construção, obrigaram a família a transferir a propriedade para a família Savóia, e nela residiu a rainha mãe Margherita após o assassinato de seu marido Humberto I, e lá permaneceu ela até sua morte, em 1926. Durante a primeira guerra mundial, o imóvel, em gesto de fraternidade e simpatia, foi cedido pela rainha para receber os combatentes feridos.
Outra edificação que requer nomeada, pelo valor histórico, arquitetural e institucional, pois lá encontra-se instalada desde 1870 a Câmara dos Deputados, é outra realização de Inocêncio X Pamphili, que retomou a obra após o falecimento do Cardeal Ludovisi, que a iniciou, e que durou de 1650 a 1694, em cujo término o pontífice destinou-a como sede da Cúria Apostólica, órgão equivalente ao tribunal de justiça papal. No período fascista foi ocupado como governadoria de Roma e, mais tarde, como quartel-general da polícia. Detalhe pitoresco da história deste imóvel é que lá, de uma de suas sacadas, o sempre delirante aventureiro Giacomo Casanova procedeu à extração de sua primeira loteria, acompanhado do iluminista e sábio Voltaire.
Outra construção destacável da cidade, localizado na movimentada e colorida Piazza Venezia é o palácio de igual nome, iniciada em 1482 pelo Cardeal Pietro Barbo, depois papa Paulo II e terminado por seu sobrinho cardeal Marco. Muito do material que lhe serviu foi retirado do Coliseu e do Forum Romano, que lhe são próximos, o que, à época, era prática comum. A propriedade serviu como residência papal e embaixada de Veneza, mais tarde transferida ao governo, quando então anexaram-lhe o balcão central, de onde Mussolini arengava para o povo. Hoje, como museu, abriga artesanato de cerâmica e prata, armas e tapeçaria. Os apartamentos pontifícios e a sala do mapamundi, então utilizadas pelo ditador como escritório foram restaurados no original.
Igualmente de expressiva significação histórica e arquitetural é o Palazzo Senatorio, instalado na Piazza del Campidoglio, no cume da colina do mesmo nome, compondo com mais dois edifícios instalados no mesmo plano o que se denomina de museus capitolinos. Atualmente é ocupado pela prefeitura da cidade, abrigando uma coleção riquíssima de mármores antigos e esculturas de guerreiros gregos e romanos. Por setecentos anos serviu como sede do senado romano. O imponente Palácio da Câmara, de Ouro Preto, inspirou-se neste edifício de Roma, aplicando à sua fachada os mesmos elementos.
Uma edificação que merece registro, menos pela arquitetura e mais pela história dramática que encerra é o Palazzo Cenci Bolognettti, construído no início do séc. XVI, localizado no Vicolo dei Cenci, quase junto ao Tibre. Neste imóvel morou a influente e poderosa família Cenci, cujo chefe, Francesco, era temido em toda a Roma por sua crueldade e completa falta de escrúpulo. Na amarga e sombria narrativa desta casa, figura sua filha, a jovem e bela Beatriz Cenci. Esta moça, com a idade então de 16 anos, após um tumultuado e escabroso julgamento, foi condenada pelo papa Clementi VIII Aldobrandini ao cadafalso pelo assassinato de seu pai, em derradeiro protesto pelas desumanidades por ele praticadas contra a família, acumpliciada com o irmão Giacomo e sua madrasta Lucrezia Petroni, igualmente decapitados em 12 de setembro de 1599, na Ponte de Santo Angelo. O rumoroso acontecimento rendeu textos teatrais e poéticos a escritores de nomeada, como Stendhal, Prosper Merimée e Shelley, e até ao brasileiro Gonçalves Dias, que, no início de sua vida literária, publicou, em Coimbra, peça de teatro com o nome da infortunada Beatriz.
Para fechar esta tão agradável visitação às fontes e aos palácios da velha Roma, estivéssemos nós em Roma, seria hora de merecido recreio espiritual e físico numa daquelas casas da noite que acolhem o viajante com prazer e alegria, que nos atraem em toda a cidade, especialmente no Trastevere, naquele bairro romântico e que tanto nos inspira por tudo que contém, de pedras milenares e de gentes que construíram aquele território, hoje um bairro de sonhos do que foi a riqueza e alegria do império. Porque ali, pela sua geografia urbana, pela contemplação das edificações quinhentistas e admiráveis que se sucedem, nos sentimos fora do alcance da canseira, da perplexidade e das surpresas, que se transmudam no contentamento de poucos mundanos, ainda muito poucos, daquele território que a todo instante nos instiga pelo mistério, pela história e pelo indescritível prazer que é desfrutar de uma noite em Roma.
O momento de mais um convívio com os romanos e com seus hóspedes de todo o mundo, é dádiva que se concede no espetáculo que se chama Roma.