UM EPÍLOGO IDEOLÓGICO, DILETANTE E DISPERSIVO NOS MAIAS
Por Lilian Silva Salles | 12/11/2012 | LiteraturaA CENA FINAL: IDEOLOGIA, DESCRIÇÃO E CRÍTICA
“Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto;
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...”
(MÁRIO DE SÁ- CARNEIRO)
Contemplar na escritura de Eça de Queirós um painel crítico da aristocracia portuguesa, cujos elementos éticos, morais, estilísticos e políticos rompem numa escrita progressivamente descrente do naturalismo e do positivismo, sobretudo por repensar a personagem não pelo viés de mecanismos determinantes que as tornam explicáveis, monolíticas e integradas, mas sim, pelo aspecto psicológico e pela fragmentação do “eu” ficcional, requer uma observação incontestável dos traços característicos intrínsecos pela perspectiva ideológica e crítica do pensamento da personagem. Engendra-se neste escrito uma pequena reflexão do último capítulo do romance Os Maias de Eça de Queirós.
O ponto nodal configura-se em mostrar o sentido crítico da cena final do romance: trazer à baila a tessitura que erige Carlos Eduardo da Maia e João da Ega não como seres determinados pelo meio social em que vivem, mas como entes narrativos que apresentam uma certa propensão a serem diletantes e dispersivos. Vale dizer, que não existe uma ruptura destas personagens com a referencialidade, mantém-se a mimese com o homem comum da burguesia portuguesa do séc. XIX. Entretanto, internamente, a personagem Carlos Eduardo da Maia revela que os homens de seu tempo não possuem uma realidade monolítica, e sim um olhar ambivalente e virtualmente plural para os fatos que vivenciam:
“- E aqui tens tu a vida, meu Ega! Neste quarto, durante noites, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente, com uma conclusão lógica. Por fim dez anos passaram, e aqui estou outra vez...
Parou diante do alto espelho suspenso entre as duas colunas de carvalho lavrado, deu um jeito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente:
- E mais gordo! “ (Eça de Queirós, 2003, p.292)
Desse modo, com Os Maias o romancista finaliza as experiências de caráter naturalista e adentra a literatura de inquirição psicológica, pós-naturalista – preocupado com o traçado interior das personagens. Ao mesmo tempo, expõe seu conhecimento direto e profundo de certa camada social. Eça mostra-se cético à idéia de que o indivíduo é sempre coerente em relação aos elementos do meio em que vive, pois existe agora uma abertura para o homem da modernidade que é dispersivo e dividido:
“ O que atraía pois, ali aquela mocidade pálida? E o que, sobretudo, o espantava, eram as botas desses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante, com pontas aguçadas e reviradas, como proas de barcos varinos...
- Isto é fantástico, Ega!
- Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era.” (Eça de Queirós, 2003, p.284)
No universo queirosiano d’Os Maias, observa-se que a dispersão existente na personagem Carlos Eduardo da Maia se dá não pela influência do meio, mas pela visão comodista que alimenta, à medida que o leitor percebe o interesse, e com o passar da narrativa, o desinteresse de Carlos pela medicina, pelo desejo de criar uma revista, pelos cavalos e pelo próprio bric-à-brac, entende-se logo, que esta personagem não possui uma atividade dirigida, vive folgadamente em meio à riqueza, pois não encontra um sentido maior para a vida, transparecendo assim uma certa propensão a ser diletante e dispersivo, por isso, de uma forma não-consistente e não-eficiente, Carlos Eduardo consegue fazer aquilo que ele mesmo se propôs fazer: a reforma das mentalidades portuguesas. Veja o fragmento:
“Carlos já falava a sério da sua carreira. Escrevera, com laboriosos requintes de estilística, dois artigos para a Gazeta Médica, e pensava em fazer um livro de idéias gerais que se devia chamar Medicina Antiga e Moderna. De resto ocupava-se sempre dos seus cavalos, do seu luxo, do seu bric-à-brac. E através de tudo isto, em virtude dessa fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de patologia, lhe fazia voltar a cabeça se ouvia falar de uma estátua ou de um poeta, atraía-o singularmente a antiga idéia do Ega, a criação de uma revista, que dirigisse o gosto, pesasse na política, regulasse a sociedade, fosse a força pensante de Lisboa...
Era porém inútil lembrar ao Ega este belo plano. Abria um olho vago, respondia:
- Ah, a revista... Sim, está claro, pensar nisso! Havemos de falar, eu aparecerei.”
(Eça de Queirós, 2003, p.174)
Nota-se, que através de ações como esta, o narrador vai tecendo a figura das personagens. Percebe-se, por exemplo, no inicio da obra, que a personagem Pedro da Maia aparece com uma descrição ainda muito compromissada com o realismo por apresentar-se monoliticamente, ou seja, com as características de fragilidade herdada da mãe além dos temores religiosos e etc. No caso de Carlos Eduardo, de Maria Eduarda e dos demais personagens centrais do romance – o narrador apenas esboça as características descritivas desses seres ficcionais com pequenas pinceladas, deixando para o leitor a incumbência de traçar o perfil do ente narrativo, por essa via, a leitura do desenvolvimento da personagem é feita pouco a pouco.
“Ega, já curado, radiante, numa excitação que não se acalmava, alagando-se de café, entalava a cada instante o monóculo para admirar Carlos e sua “imutabilidade”.
- Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra!... Tudo isso é Paris, menino!... Lisboa arrasa. Olha para mim. Olha para isto!
Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do nariz, na face chupada. E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma calva que começava há dois anos, alastrara, já reluzia no alto.”
(Eça de Queirós, 2003, p.274-75)
Com efeito, nos diálogos entre Carlos Eduardo e João da Ega – uma personagem ajuda a definir as características da outra, ou seja, por meio de perguntas, respostas e da interação de ambos, o leitor percebe que os entes narrativos vão autodefinindo-se, apesar de possuírem pontos de contato e diferenças, é a interlocução entre ambos que os define.
Uma das potencialidades da descrição queirosiana é ser bastante narrativa, dessa forma, por meio da descrição Eça de Queirós adianta elementos para o leitor compor o espaço, o ambiente e o comportamento das personagens, oferecendo índices que apontam para o desenrolar da história:
“O quarto escurecia no crepúsculo frio e melancólico de inverno. Carlos pôs também o chapéu; e desceram pelas escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panóplia de velhas armas. Depois, na rua, Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que naquela primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de resistência eclesiástica, cãs as suas paredes severas, a sua fila de janelinhas fechadas, as grades dos postigos térreo cheias de treva, mudo, para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.”
(Eça de Queirós, 2003, p. 293)
De fato, é através da descrição e dos diálogos, que Eça arquiteta na cena final da obra um epílogo ideológico e critico, onde as personagens Carlos Eduardo e João da Ega dizem assumir certa atitude de “não pensar em nada” – atitude esta, que corresponde ao pensamento epicurista, no sentido de que nada vale a pena, elucidando a percepção para se vivenciar a vida sem grandes exageros, não se preocupando muito com as coisas, por essa via, o pensamento ideológico surge através da reflexão critica que estas personagens confeccionam sobre si mesmas e sobre o mundo. Observe essa passagem da narrativa:
“ Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:
- Falhamos a vida, menino!
- Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos falha. Isto é, a falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: “vou ser assim, porque a beleza está em ser assim”. E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquês. Às vezes melhor, mas sempre diferente.
- Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.”
(Eça de Queirós, 2003, p. 293)
A guisa de maior entendimento faz-se necessário a leitura do trecho:
“E que somos nós? – exclamou Ega. – Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos, isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...
Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigem só pela razão, não se desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível, secos, hirtos, lógicos, sem emoção até o fim...
- Creio que não – disse o Ega. – Por fora, à vista, são desconsoladores. E por dentro, para eles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de ser insensato ou sensabor...
- Resumo: não vale a pena viver...
- Depende inteiramente do estômago! – atalhou Ega.
Riram ambos.” (Eça de Queirós, 2003, p.293-94)
Destarte, Carlos Eduardo rotula suas experiências vividas como uma espécie de fatalismo, ou seja, existe algo inexorável que o desestimula para as grandes lutas ideológicas e sentimentais, como por exemplo, a idéia de reformular o caprichoso Portugal e as mentalidades portuguesas. É interessante observar, que essas idéias sofrem um constante desgaste no decorrer da narrativa, e as personagens culminam no desanimo e no deixar-se viver:
“Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da experiência e que, agora, o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança- nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranqüilidade com que se acolhem as naturais mudanças de dias suaves. E, nesta placidez, deixar esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra, porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.”
(Eça de Queirós, 2003, p. 294)
Por outro lado, no final da cena, as personagens se contradizem, negando a idéia ipicurista e correndo atrás do bonde:
“ Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:
- Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje, para o jantar, um grande prato de paio com ervilhas. (...)
- Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma...
Ega ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder...
A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.”
(Eça de Queirós, 2003, p.294-95)
É lícito dizer, que esta reflexão terminal, empresta ao desfecho do romance um caráter de epílogo ideológico, no qual se observa o que pensa e reflete cada uma das personagens. Eça faz aqui um jogo crítico, pois em vez de dizer sobre as grandes contradições que as personagens vivem, ele materializa essa contradição com a própria ação das personagens.
Nuança importante de ressaltar, é a ilusão amorosa assentada no idealismo da grande, eterna e duradoura paixão, deixando Carlos Eduardo entregue a sonhos e fantasias, distante da realidade, porém, logo Carlos e Maria Eduarda são chamados à razão, pois esta situação é utilizada criticamente pelo autor, para elucidar as profundas mazelas das famílias burguesas portuguesas.
Na montagem do enredo, construído em um clima de crescente tensão, Eça de Queirós procura analisar a situação da aristocracia portuguesa, que vive sem grandes aspirações a não ser viagens, reuniões “familiares” e conversas entre amigos. Esse pequeno e frágil mundo pode ruir, pois as malhas que o sustentam se rompem a qualquer momento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A PENA OU A NAVALHA EM EÇA DE QUEIRÓS?
“O que importa é perceber que a existência
mesma dessas obras, a sua proliferação,
a sua implantação na vida social colocam
em crise os conceitos tradicionais e
anteriores sobre o fenômeno artístico,
exigindo formulações mais adequadas à
nova sensibilidade que agora emerge”.
(ARIANO MACHADO, pesquisado brasileiro)
De tudo exposto, fica evidente que Eça de Queirós com Os Maias vai chegando à forma mais lapidada de seu estilo, pois este romance funciona como um “divisor de águas” entre a escrita cortante da navalha naturalista de O Primo Basílio, e a pena perspicaz e reflexiva do pós-naturalismo em Os Maias.
Dessa forma, o idealismo, a crítica e a dispersão que perfilam por toda a narrativa, aparecem em grau acentuado nas personagens Carlos Eduardo e João da Ega, promovendo o cenário crítico, questionador e conformista do último capítulo.
Sem dúvida, Eça de Queirós insufla vida nova à prosa de ficção portuguesa, com seu sopro de modernismo, de dinamismo e, sobretudo, de sagacidade crítica. Se existem obras que o leitor esquece assim que fecha a última página, existem aquelas que servem para dar lições de magnitude estética. No rol das últimas, o leitor atento certamente colocará no podium das grandes obras literárias Os Maias.
BIBLIOGRAFIA
QUEIRÓS, Eça de. Os Maias- vol. I. São Paulo: Ática. 2003.
_______________. Os Maias- vol. II. São Paulo: Ática. 2003.
PASSONI. Célia A. N. Fuvest 98: literatura, estudos das obras, resumo e
análise de textos, exercícios. São Paulo: Núcleo. 1997.
VÁRIOS AUTORES. 150 anos com Eça de Queirós: III Encontro Internacional
de Queirosianos – 1995. Organização Elza Miné e Benilde Justo Caniato.
São Paulo: Bartira. 1997.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix. 2003.
_______________. A Literatura Portuguesa Através dos Textos. São Paulo:
Cultrix. 2004.