Um dia inesquecível
Por Ivan Henrique | 09/11/2009 | Contos
Um dia inesquecível maio/2008
“Nosso campo de visão é muito pequeno, nosso tamanho é tal que só vemos uma minúscula fração de uma grande teia, dentro de uma teia muito maior, que alguns só de pensar nela perderam sua sanidade, e outros, só de tentar se cansaram logo, desistiram e foram tomar café. Quando olho para o céu traço uma reta entre minha cabeça e o zênite, e penso se esta reta teria fim ou se tocaria o solo de alguma estrela ou planeta distante. Acho que no máximo rasparia em algum satélite em órbita, ou menos ainda, esbarraria num avião muito alto em sua rota, insuficiente para derrubá-lo, não, Deus me livre de pensar numa maldade desta! Neste momento acho melhor para de pensar em tanta besteira, que não sou pago para isto, e comer minha banana saborosa.”
“Acho que vou jogar a casca lá no chão da rua, ninguém está vendo mesmo”. Tal discutível ato de falta de civilidade, para não dizer de falta de higiene teve lugar nesta rua tranqüila onde uma casa estava em reforma, e na laje do segundo andar Pedrinho Júpiter, auxiliar de pedreiro e astrônomo nas horas vagas, assentava a massa da construção. Esta era uma combinação pouco comum, uma pessoa ser ao mesmo tempo auxiliar de pedreiro e astrônomo, mas Pedrinho Júpiter sempre gostou de olhar o céu, o céu o fascinava. Não que ele fosse astrônomo de verdade, daqueles que estudaram física a sério e fizeram estágio no Monte Palomar ou no Havaí, ele só gostava de ler sobre o assunto e ver programas na televisão que mostravam belas imagens dos planetas e das luas, das estrelas, das galáxias. De tanto olhar o céu, mesmo nos horários de trabalho, é que Pedrinho ganhou o “sobrenome” Júpiter.
A casca de banana foi se instalar na calçada, próxima do meio-fio. Ao mesmo tempo um homem havia dobrado a esquina, e vinha andando próximo dos muros e portões das casas, com bastante pressa, quase correndo. Na casa vizinha à casa em reforma uma pedra solta fez com que desviasse em direção ao meio-fio. O homem desviou da pedra, mas como estava andando muito rápido não teve tempo de desviar da casca de banana e vupt! Pisou em cheio e escorregou feio. Caiu estatelado, de queixo no chão, largando sua pasta que bateu com força também e espalhou seu conteúdo: diversos papéis voaram pela rua vazia, alguns até caíram num bueiro colado ao meio-fio.
O homem desmaiou ao bater com o queixo no chão, mas naquela rua vazia e sem trânsito naquela hora ninguém presenciou esta cena.
Bem, uma pessoa viu a cena. Pedrinho Júpiter viu a conseqüência de seu ato. No momento ficou pasmo e ao mesmo tempo envergonhado quando viu o homem caído no chão. Passados alguns minutos, ao se dar conta de que ninguém aparecia para socorrer o homem, resolveu descer para ajudar pois sabia que também ninguém o havia visto jogar a casca. Chegou próximo ao sujeito que começava a acordar, com o queixo raspado e sangrando de leve. - Olá amigo, que tombo feio hein? Você está bem?
-Sssimm acho que estou... estou só um pouco tonto....onde está minha pasta?
-Aqui está sua pasta.
O homem recobrava sua consciência e sua memória, e quase deu um salto...
-Meu Deus, onde está o papel com a senha??? gritou desesperado, mexendo nos papéis que havia juntado, nem sentia a dor no queixo quase quebrado.-Eu preciso da senha! Olhou no relógio e ficou mais pálido ainda.
-Quanto tempo eu fiquei caído aqui?
-Cerca de cinco minutos, disse-lhe Pedrinho já assustado.
-Ai caramba, não vai dar tempo, vai ser o caos total! total!total!
A cerca de dois minutos dali existia uma estação de energia, que servia como uma chave de segurança para o sistema de distribuição para toda a cidade e as cidades menores ao redor, o homem acidentado estava se dirigindo para ela, ele era o operador mestre do sistema e carregava consigo a pasta com as senhas de segurança, pois havia recebido um aviso em seu laptop que uma falha muito incomum havia ocorrido e ele precisava chegar a tempo para tentar corrigir. O pneu de seu carro havia estourado duas ruas antes desta, ao passar sobre um parafuso que caíra de um caminhão. A esta altura já bastante nervoso largou o carro onde estava e saiu quase correndo pela rua.
A estação era quase automática, poucos funcionários trabalhavam no local e só Edgar (este era o nome do homem) no momento tinha acesso irrestrito ao sistema e às senhas. Outro colega seu, com o outro código de acesso estava de férias.
Pedrinho começou a ficar realmente preocupado, apesar de ser auxiliar de pedreiro ele sabia bem o significado da palavra caos, e sabia também que o tal do caos tinha alguma coisa haver com ele, pois sem aquela casca de banana Edgar teria chegado na tal estação. Teria chegado mesmo?
-Senhor, a que caos o senhor está querendo dizer?
-Estou dizendo que agora é tarde e eu não vou conseguir acessar o sistema e conseguir impedir a explosão..
“Explosão”.. agora Pedrinho gelou por dentro, a mal conseguiu balbuciar...
-Ex...Ex...plosão, tipo explosão com muito barulho, destruição, fogo?
-Sim, mas não que vá atingir as casas próximas, só que a energia vai ser cortada e eu não sei por quanto tempo vamos ficar sem energia, nós eu quero dizer todo mundo, toda esta cidade, com seus milhões de habitantes, elevadores, hospitais, semáforos, geladeiras, computadores, lojas, indústrias, ........
-Mas, e os geradores?
-Os geradores só garantem por algum tempo, e eu estou falando de muito tempo sem energia, entende?
Pedrinho se aprumou um pouco e falou:- Venha, que eu o ajudo a chegar lá, talvez dê tempo?
- Mas sem o papel com a senha principal não adianta!
Pedrinho olhou para dentro do bueiro nesta hora e viu um papel pardo, só que todo molhado e sujo.
-
O Executivo municipal meio tardiamente começou a se mover, mas a situação já se mostrava fora de controle. A articulação requerida para fazer frente à esta demanda gigantesca estava prejudicada pela demora, pela dificuldade de comunicação e pela dificuldade de locomoção. Centenas de ligações por celular já estavam sendo feitas, e dezenas de celulares dos mais altos escalões da prefeitura já estavam descarregados, sem bateria e sem possibilidade de serem recarregados. Muitas pessoas a esta altura até ficariam felizes de tomar um pequeno choque elétrico se encostassem numa tomada exposta, mas nada de energia. Quem por precaução mantinha um estoque de velas em casa muito que bem, estava garantido, porque com a maioria dos supermercados, mercados de bairro e padarias fechados se a situação se prolongasse pela noite adentro teríamos uma pequeníssima amostra da Idade das Trevas em plena Era da Informação, nossa era atual com todo o aparato tecnológico que enchia de orgulho toda uma geração de pessoas nascida na bonança mantida por controle remoto.
Dentro dos prédios com seus elevadores parados, as pessoas foram arrombando as portas automáticas e abrindo à força as portas dos andares e as saídas de emergência para libertar o número incalculável de pessoas presas, muitas desmaiadas, muitas em estado de choque, descompostas, descabeladas, suadas, muitas brigas acontecidas pelo contato muito próximo entre os cidadãos polidos, educados e contidos até que a contrariedade vencesse a polidez e a educação, forçados é claro pela situação extrema a que foram levados. Um dia inesquecível, um dia para ficar na história.
De volta ao marco zero, no estopim da confusão, Edgar tão desconcertado, que já nem se importava mais com nada, vendo o redemoinho ao seu redor. Depois de muito esforço, muito empurra-empurra, muita sirene os carros de bombeiros conseguiram chegar no local da explosão e do incêndio. Com este reforço muito bem vindo o ataque às chamas agora começava a surtir efeito, e a situação finalmente começava a mudar. Um ânimo renovado dominava o ar. Até Edgar foi contagiado pelo entusiasmo que pairava agora ao redor. De repente ele lembrou de alguém que poderia reverter aquela situação: O Dr. Christallos Peidonides, seu professor na extensão universitária, um engenheiro-físico-enxadrista, entre outros atributos, grego de nascimento e viajante internacional, cujo conhecimento certamente traria uma solução rápida para interromper aquele efeito dominó de desligamento da energia. Edgar verificou seu celular que ainda tinha carga suficiente e ligou para o Dr. Peidonides.
- Alô Dr. Peidonides?
- Prronto, quem serrr?
- É o Edgar da Cia. de eletricidade, lembra de mim? É uma urgência!!!
-Sim, sim, lembrrei, o que está a acontecerr?
-Em resumo, houve uma explosão na central de distribuição de energia, toda a rede foi afetada, e que me lembre o senhor têm soluções rápidas para situações de crise como esta.
- Nom me digas! Sim,sim, por Téos, porrisso esta confusón que se escuta da janela?
-Sim, preciso de sua ajuda..
-Cerrto, diga-me, a estaçón foi parra burraco?
-Sim, está ardendo em chamas.
-Entón eu vou parra estaçón mais perrto de mim, e alterro programa e deixo estaçón como neo centralis de enérgon. Você poderria ir junto?
- Não creio que consiga chegar, porque o trânsito está uma calamidade.
- Nom serrr prroblemum, posso fazerrr sozinho, só avise segurrança que estoi a camino,si?
-É um papel pardo?
-Sim, ele está aí ?
-É, mas...acho que já era...
Edgar já de pé olhou para dentro do bueiro e constatou o óbvio :
-Fudeu!!!!!
Uma linha traçada desde o zênite até esta cabeça de homem em pé no meio-fio não serviria para nada, a não ser para, de alguma forma, traduzir o estado de desalento e impotência deste homem e levá-la de volta para lugar nenhum, pois mesmo que houvesse alguém ou algo para receber esta mensagem, de nada adiantaria pois nada nem ninguém poderia acudi-lo quando o estrondo da explosão foi ouvido pelos dois homens, assim como por milhares de pessoas que moravam num raio de 3 quilômetros.
Um grande estrondo ressoava pelo ar, logo centenas de pássaros revoavam atordoados, os cachorros ganiam desesperados e se encolhiam procurando abrigo. O som da explosão foi sumindo e em seguida e por um breve instante pareceu ter havido um silêncio inédito naquela cidade que não silenciava nem durante a noite. Um momento em suspensão como um lapso de tempo. Mas logo voltou aquele ruído de fundo que nunca pára, aquele emaranhado de sons, alguns próximos, outros mais distantes. Os moradores das casas vizinhas começaram a aparecer, querendo entender o que havia acontecido, já aos celulares para saber dos vizinhos e moradores próximos o que estava acontecendo. Hipóteses começaram a brotar; uns dizendo que era um ataque terrorista, outro dizia que tinha ouvido um avião voando baixo, um terceiro achou que era um meteoro vindo do espaço sideral, uma senhora já rezava fervorosamente dizendo no intervalo das frases da oração que era castigo divino pelos pecados inumeráveis daquela vizinhança, não obstante serem pessoas comuns vivendo dentro das normas sociais aceitas. Um bêbado trôpego enrolando a língua dizia que havia passado da conta porque aquele último trago tinha dado um estrondo no seu ouvido.
Com as mãos na cabeça e olhar perdido Edgar pensava nas conseqüências daquele evento, e no que teria de dizer para explicar porque não havia impedido que uma estação tão moderna e segura tivesse dado aquela pane. Pedrinho ao seu lado já um pouco mais refeito se prontificou a acompanhá-lo até a estação, num impulso para minorar uma situação que ele sabia ter implicação direta, e sem nem se dar conta que poderiam se deparar com um inferno de chamas.
- Vamos senhor, vamos ver o que está acontecendo.
- Sim, vamos. Ligarei para a brigada de incêndio, ligarei para os bombeiros, ligarei para o meu diretor, preciso fazer alguma coisa!
Três quadras adiante já se podia ver os rolos de fumaça escura subindo para as nuvens, assim como já se ouviam as sirenes dos primeiros carros de bombeiro que chegavam. Com bastante rapidez já começaram a isolar a área e agir para contornar o problema. Muitos curiosos já se aglomeravam no local e helicópteros sobrevoavam para dar notícias em primeira mão para as rádios locais. Logo os primeiros semáforos começavam a apagar e piscar intermitentes, e a primeira colisão aconteceu. Num efeito dominó tão preciso quanto terrível os semáforos foram se apagando, e os motoristas, que muito se assemelham a um rebanho descontrolado que precisam de um pastor que o conduza, logo perceberam a confusão que se instalava. Buzinas dos mais diversos sons e formatos já eram ouvidas próximas e à distância e mais e mais colisões aconteciam.
A estação acidentada servia de central de comando para as demais sub-estações da rede, era considerada como sendo muito avançada tecnologicamente, tão avançada que quase prescindia da presença de seres humanos para operá-la, era motivo de orgulho da empresa de energia e até motivo de visitação turística para o bairro antes tão tranqüilo. Mas nem tudo pode ser previsto pelos engenheiros e analistas e a mensagem truncada que havia chegado ao laptop de Edgar era o resultado dessa imprevisibilidade. Agora ela ardia em chamas e os primeiros carros de bombeiros que chegaram não conseguiam dar conta de tamanha tarefa. A brigada de incêndio foi localizada, o quartel dos bombeiros foi avisado. Porém a reação em cadeia havia começado, o trânsito em questão de minutos já saíra de controle e as novas viaturas dos bombeiros já tinham muita dificuldade para avançar. A energia ia sendo desligada à medida que as sub-estações iam sendo bloqueadas após o acidente com a central. Menos de 15 minutos se passaram após a explosão e já metade da cidade estava com os semáforos desligados. Eram 12:30Hs quando a explosão aconteceu, a esta altura centenas de elevadores já estavam parados nos edifícios com milhares de pessoas em seu interior.
A sociedade humana moderna é um espanto de avanços tecnológicos, artifícios engenhosos que deixam muitos de queixo caído e enchem de orgulho os otimistas que crêem cegamente no progresso material da humanidade, e muitas vezes parece que ao subirem demais largaram a escada para trás. Tantas pessoas presas nos elevadores modernos a esta altura devem estar pensando: O que foi que aconteceu? porque está demorando tanto? Eu tenho compromissos inadiáveis e não posso faltar, eu tenho uma entrevista em meia-hora, eu tenho que ir ao dentista, eu tenho medo de ficar apertado, eu tenho medo de ficar junta com todas estas pessoas, porque está demorando tanto?
As linhas telefônicas de atendimento de emergência da distribuidora de energia já estavam congestionadas, mas ainda não se sabia ao certo o que havia acontecido. Os escritórios movidos a computadores começavam a parar, os supermercados conectados em rede começavam a parar, ainda era dia muito claro mas a informação nos caminhos virtuais começava a escassear sem a energia para carregá-la nas costas e chegar aos seus destinatários, todos ávidos e dependentes da informação e da tecnologia mais avançada para disciplinar suas vidas. Muitos braços começavam a ser cruzados, sem ter o que fazer, e com isso crescia a ansiedade. Muitos rostos já estavam debruçados nas janelas olhando a balbúrdia dos carros.
Nas ruas reinava uma confusão total, nenhum semáforo estava funcionando, atravessar um cruzamento era questão de sorte ou de fazer valer a lei do mais forte. Os pedestres, coitados, dificilmente conseguiam chegar na outra calçada, o caos em comunhão com a discórdia fatalmente lega a gentileza e a civilidade a um segundo plano, salve-se quem puder é a norma de comportamento, num ponto onde séculos de cultura, a busca do refinamento e da educação e as regras de boa convivência são apagadas em pouquíssimo tempo.
De volta ao local da explosão, Edgar tentava um contato com o Diretor, que a esta altura já havia saído para almoçar. Seu celular estava fora de área, suas tentativas foram em vão, ninguém estava disponível para auxiliá-lo nesta confusão. “Maldita casca de banana” pensou, “teria chegado a tempo; quem foi o desgraçado que a jogou na rua? Agora tô eu aqui na pior, e o que eu vou dizer? Daqui a pouco a imprensa chega e logo vai querer saber a causa da explosão, e todos sabem que no final sobra no lado mais fraco da corda”. Todavia a imprensa não conseguia chegar preto, ninguém conseguia chegar perto, só os helicópteros no alto davam notas esparsas a partir de seu ponto de vista. Como as coisas costumam acontecer em cadeia, os hidrantes próximos apresentavam defeitos, com pouca vazão de água, canos furados por falta de manutenção decente, desvios de água, entre os principais problemas, sem contar que até uma Kombi velha já havia sido achado na tubulação de água, quem dirá a quantidade de coisas menores que ficam entulhadas nos canos? Os bombeiros que já estavam no local logo perceberam que a batalha era inglória e as outras equipes não chegavam.
Duas horas já haviam escorrido pelo ralo daquela dia que já estava infernal. As escolas começavam a interromper as aulas, as lojas prudentemente desciam e fechavam suas portas, os ônibus nem conseguiam trafegar mas já estavam lotados, e nem era hora do rush ainda. Muitos motoristas largavam seus carros e saíam andando, até uma Maseratti de 500 CV, tão potente e tão veloz, parada num cruzamento, estática, mostrando suas belas formas de design italiano poderia ser ultrapassada por um ciclista em sua modesta companheira de 2 rodas movida a tração humana. Ambulâncias com sirenes no máximo de volume e com muito custo conseguiam abrir caminho. Poucas delas conseguiram chegar aos hospitais e clínicas, os obituários dos jornais no dia seguinte tiveram suas colunas aumentadas.
Os rumores circulavam, se espalhavam, criando vida própria de acordo com o interlocutor: dizia-se que era um ataque terrorista, ou que um bando armado havia tomado de assalto um shopping de luxo, mantendo dezenas de reféns, ou mesmo que um vazamento radioativo havia se espalhado após o tombamento de um enorme caminhão-tanque, já com muitas vítimas fatais num raio de 2 Km do acidente. A tensão subia em espiral, o medo já se espalhava e contagiava os cidadãos já tão sobrecarregados com os problemas cotidianos. Muitos que tinham ouvido a explosão reforçavam a idéia de um ataque terrorista, mesmo que nunca tenha havido nenhum registro deste tipo na história recente desta cidade, nem na história mais recuada.
A unidade de gerenciamento de crise da prefeitura havia sido avisada do que de fato havia acontecido, e procurava divulgar mensagens na tentativa de orientar, articular uma saída, estabelecer um pouco de ordem no que parecia ser, a esta altura, um quadro de calamidade pública, só que mais da metade da cidade já estava sem energia e os comunicados por televisão não poderiam ser divulgados, por rádio somente nos automóveis, caminhões, vans, táxis, etc, é que poderiam ter um alcance maior, porém ninguém conseguia se locomover. A articulação estava bastante dificultada, só os celulares ainda tinham algum poder de comunicação rápida.
Quatro horas da tarde o fornecimento de água já estava ficando comprometido, pois as bombas, na grande maioria elétricas estavam impavidamente paradas, as que funcionavam a diesel gastavam rapidamente seu combustível. Nesta altura do dia começaram os primeiros saques, muitas lojas que teimavam em ficar abertas ficaram desguarnecidas e o policiamento lutava desesperadamente para conseguir controlar o incontrolável, então vários bandos se aproveitavam da situação, como cães selvagens que cercam a presa aturdida pela espiral frenética de confusão e desordem. Daí para o confronto foi um pulo, pois várias brigadas das forças de segurança já haviam conseguido se deslocar. Na zona de comércio mais popular por volta das 16:30 hs. o som de garrafas quebradas, vidros quebrados, gritos, correria, já era a tônica. Carros saqueados, lojas saqueadas, ambulantes atacados, pessoas roubadas; a pilhagem já começava a correr solta, o tênue equilíbrio da vida em sociedade estava por um fio, com uma facilidade muito além do aceitável este equilíbrio muitas vezes é rompido. Balas de borracha, gás de pimenta, gás lacrimogênio entupiam o ar e uma praça de guerra se apossou de uma praça onde artigos para consumo, presentes, mimos, brinquedos, eram vendidos e compradas pacificamente , levando alegria e satisfação para tantas pessoas.
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-Sim, é claro professor, muito obrigado pela sua ajuda.
O prof. Peidonides largou seu bouzouki, onde aprendia uma velha melodia grega e foi imediatamente para uma das estações secundárias, que funcionava em rede. Dirigiu-se para a sala de controle, acessou o servidor, introduziu seu programa de contenção e gerenciamento para situações de crise e em poucos minutos a estação era religada. Num efeito dominó reverso as outras estações foram sendo religadas e a energia aos poucos ressucitou naquela cidade imersa num colapso. O relógio marcava 18:18 h. À medida que a energia voltava e as lâmpadas acendiam ouviam-se gritos, assovios, palmas, uma sensação de alívio, pessoas choravam, outras se abraçavam, estava afastada a entrada naquela zona de trevas que trás no íntimo de cada um o medo ancestral do escuro com toda a insegurança e espectros imaginários embutidos nas células dos seres humanos. Apenas o perímetro em torno da estação acidentada continuou sem eletricidade. A cidade começou a voltar à sua normalidade, de milhões de pessoas apressadas, de milhões de veículos lutando por espaço no asfalto, de milhões em negócios feitos e desfeitos, de um sem número de encontros e desencontros de pessoas a procura de algo ou alguém, a rotina tão conhecida e tão confortadora.
Edgar respirava compassadamente traçando um roteiro do que deveria ser dito para explicar o que havia acontecido e de seus infortúnios, e das sugestões que faria para evitar que algo semelhante acontecesse novamente, de como era estúpido e perigoso deixar tanta responsabilidade nas mãos de somente duas pessoas. Perto dali um ajudante de pedreiro sonhador e assustado decidiu calar para sempre sobre seu ato impensado e algo mecânico de testar a pontaria com cascas de frutas. Apesar de ser ajudante de pedreiro ele era esperto e inteligente o suficiente para perceber a seqüência de fatos e a conseqüência destes fatos, e viu que poderia ser acusado de ter sido o causador daquela confusão monumental e dos prejuízos incalculáveis decorrentes daquela dia infernal. Ficou tão agastado que, num reflexo sutil e não percebido de pronto, jamais comeu outra banana em sua vida, assim como ficou bastante tempo sem olhar para o céu em contemplação.
A noite chegara límpida, estrelada, inspirando calma; sem saber o que havia acontecido durante o dia, toda a balbúrdia, toda a conseqüência de uma rotina quando sai dos trilhos, a noite não precisa saber destas coisas. Uma cidade exausta foi dormir para acordar no dia seguinte e contabilizar seus prejuízos materiais e morais. Edgar chegou cedo a seu departamento pronto para assimilar todos os golpes que sabia que iria receber. Já um batalhão de repórteres se apossava do hall de entrada e da sala de imprensa e um diretor com cara de pouquíssimos amigos fuzilara-o com o olhar, o mesmo diretor que não fora localizado no dia anterior, pois saíra para almoçar com uma atraente lobbista de uma empresa alemã de equipamentos elétricos e desligara seus celulares para não ser incomodado.
O Dr. Cristallos Peidonides candidamente havia enviado para a Secretaria de Fazenda, com cópia para o gabinete do Prefeito, uma correspondência relatando como havia conseguido estancar o problema, usando de seus vastos conhecimentos e de sua presteza em atender ao pedido de seu atento aluno, e a título de gratificação pelo serviço prestado cobrava a módica quantia de Um milhão de euros, uma ninharia perto dos prejuízos ocorridos, finalizava ele em sua correspondência com alguns erros de português, fato este bastante desculpável pelo fato de sua origem, sua poliglossia e por ser o Português uma língua difícil.
Ivan Henrique Roberto maio/2008