Um dia em São Paulo

Por Bernard Gontier | 08/04/2009 | História

Muita gente, sem conhecer, dá asas à imaginação e se permite às mais inebriantes quimeras sobre esta cidade. Feito uma embarcação apressada para chegar ao seu destino, quando não está realizando obras, a cidade rumina sobre as futuras obras.

Já se cogita a construção do novo Viaduto do Chá. Falando em asas, hoje em plena avenida Paulista, no centro ou nas cercanias do próprio Campo de Marte, pessoas extasiaram-se em terra admirando o capitão aviador Orton Hoover efetuar uma série de acrobacias aéreas. E quando  o céu metropolitano não vê sua extensão invadida pela intrepidez do piloto, cerca de 2.000 fábricas competem para macular seus domínios.

Cinqüenta mil operários integram a indústria têxtil, ao passo que a construção civil emprega 8.000 trabalhadores. Treze mil e quinhentos veículos circulam pela cidade, sendo que 9.500,  movidos por tração animal. Contabilizam-se em São Paulo quase 500 advogados, contra 176 engenheiros e arquitetos. A taxa de crescimento populacional demonstrou a incrível cifra de 88,3% ao ano, na média dos últimos  30 anos.

Apesar do idioma de Dante dar a impressão de prevalecer sobre o de Camões, as cores francesas, russas, polonesas, inglesas, alemãs,  escandinavas e americanas contribuem para conferir à cidade uma especial tonalidade. Sem contar os 5.000 sírios, que sozinhos detém o privilégio de 3 jornais impressos em caracteres arábicos. O censo  registra a marca de 657 mil habitantes.

Por 2.000 réis pode-se comer à vontade em bons restaurantes desprovidos de maior luxo, valendo neste mês a indicação para a monumental omelete de queijo com tomate do Conchetta. E nos fins de semana o Cidade Munchen satisfaz as expectativas em virtude de sua sofisticação. O Parque do Reservatório da Cantareira é também uma boa opção como área de lazer para a população. Lazer esse também traduzido na proliferação de restaurantes, cantinas, teatros, cinemas, reuniões nas calçadas, footing nas avenidas, belvederes e nas sorveterias, além de intensa vida noturna evidenciando reduto de intelectuais e demais artistas.  

A população bem merece, visto os primeiros esboços do conde Carton de Wiart, intitulado “Mes vacances au Brésil”, onde ele acentua que a capital paulista é a cidade onde se constrói uma casa por hora.

Na rua Jaceguai,  o “Moringuinho” aloja bicas e serve de ponto de encontro de muitos meninos que já ajudam no sustento do lar. No Morro dos Ingleses, funcionários da São Paulo Railway jogam golfe e sempre é possível ganhar um dinheirinho apanhando bolas perdidas nos matagais. Comenta-se que um desses garotos é um prodigioso jogador de futebol, tendo o singular apelido de Feitiço.

No Campo de Marte uma multidão de jovens aguarda a chance de um passeio aéreo pela cidade, nas asas do avião Orioli, do herói da Primeira Guerra Mundial, que vem oferecendo esse sensacional serviço às elites.

Diz-se da arquitetura como a mais pública das artes. Talvez não seja incorreto assinalar sob o mesmo parâmetro a arte da gastronomia.
Perto do “Moringuinho” pode-se ouvir um violeiro cantando: “Italiano grita/brasileiro fala/ Viva o Brasil e a bandeira da Itália”. Tal modinha é, no mínimo, sugestiva quanto a relação entre ambos os povos.

Nessas bandas da cidade, ainda que em maioria numérica, o que levou os italianos a perpetuarem seus hábitos de forma tão arraigada foi sua condição de imigrado, um traço inequívoco que alimenta a necessidade de realçar suas origens, sua essência, por assim dizer. Sua destreza em vários ofícios soube não só trazer, mas, sobretudo disseminar bons exemplos. Aprendizes nativos de todas as estirpes aprendem com eles a maneira mais apropriada de se lidar com o tecido, a massa do pão ou o confeito, o forro de um chapéu ou o motor de um automóvel.

No mais, o que realmente tem socializado esse povo entre os paulistanos são  suas inclinações gastronômicas e arquitetônicas. Ramos de Azevedo contou com a colaboração de Domiciano e Cláudio Rossi para edificar o Teatro Municipal.
Os “cappomastri” riscam na terra, com a ponta do guarda chuva, a planta da casa. Barões do café e outros milionários fizeram bom uso do know-how desses mestres, que empenharam todo o seu talento e criatividade nas mansões da Paulista, Campos Elíseos, Higienópolis, etc.  


Noutras partes da cidade, periféricas em relação ao  centro, cenas semelhantes se repetem - uma casinha aqui, outra ali. Com um pouco de parcimônia, vai se instalando um pequeno comércio de armarinhos, secos e molhados, artigos de todo o tipo. Vendedores ambulantes se queixam aos fregueses da alta da batata ou da escassez da cebola. Os “cappomastri” vão afiando a ponta de seus guarda chuvas. No armazém do senhor Joaquim o queijo Palmeira e a goiabada Pesqueira  fazem a felicidade daqueles que tem emprego fixo. E se o cliente por ventura é biscateiro, fazendo bicos de engraxate ou entregando jornais, e a instabilidade de seu bolso nem sempre é compatível à inclinação de pequenos prazeres, pode mesmo assim adquirir um maço de Ben-te-vi sem maiores sustos, pois num estabelecimento que vende de tudo, tudo também é marcado na caderneta, ainda que o senhor Joaquim, no fim do mês, tenha lá uma ou outra decepção.

Graças aos esforços do governo em parceria com a  Light, o aspecto tristonho da cidade passou a ceder – 1.186 focos elétricos contra 8.000 combustores a gás.

O Cine-Teatro Espéria inaugurou em março do ano passado, e a adolescente Marieta Guro participa tanto no teatro, como no quinzenário Literário Social “A Brisa”. A sociedade de danças Gabrielle Danunzio já há alguns anos vem contribuído à sofisticação de damas e cavalheiros. De violão em punho, voz afinada e um desejo irresistível de sair pelas ruas abrindo janelas e falando ao coração dos notívagos, os seresteiros tornam-se uma instituição que atua em vários bairros.

O aviador completou ontem 102 vôos sobre a nossa capital.
Hoover não tem escolhido tempo para voar. Voa de dia ou de noite, com ou sem vento, com chuva ou nevoeiro.



São Paulo, 12 de julho de 1923.