UM DIA DE PESCA NO VERÃO AMAZÔNICO NA PLANÍCIE DE VÁRZEA NA COMUNIDADE DE SÃO JOAQUIM – MUNICÍPIO DE PRAINHA: Expectativas, contratempos, realidade e perigos em um só momento

Por Sydney Pinto dos Santos | 26/10/2023 | Crônicas

UM DIA DE PESCA NO VERÃO AMAZÔNICO NA PLANÍCIE DE VÁRZEA NA COMUNIDADE DE SÃO JOAQUIM – MUNICÍPIO DE PRAINHA: Expectativas, contratempos, realidade e perigos em um só momento

Texto produzido e postado em agosto de 2023 em Santa Maria do Uruará – Prainha Pará

Por: Sydney Pinto dos Santos[1]

 

Introdução

Quando menino, quase todos os homens, gostam de se aventurar nas mais diversas oportunidades e situações que os mais velhos estão desenvolvendo ou envolvidos, ou mesmo, querem um ambiente de aventura para mostrar seus caprichos, habilidades e/ou capacidades ainda em desenvolvimento. Assim, àqueles meninos ou “curumins”, como eram designados pelos pais ou pelos mais velhos, os do sexo masculino entre 7 anos de idade até seus 13 ou 14 anos, os quais habitavam as palafitas existentes nas margens dos rios, igarapés, furos ou mesmo lagos da área de várzea da grande planície amazônica, incluindo neste contexto, os do município de Prainha, no Estado do Pará.

Por ser, a várzea, um espaço bastante amplo, onde se pesca, onde se criam os mais diversos tipos de gados, assim como se planta e se vive, divididos em dois períodos específicos: o grande inverno amazônico, onde as águas começam a crescer e alagar as terras de várzea no mês de fevereiro, ou até mais cedo, dependendo das diferentes alturas da terra, e indo até o mês de julho, quando as primeiras lamas começam a surgir os primeiros vestígios do verão, período este que durará pelo mesmo espaço de tempo, entre 6 a 7 meses de pleno chão enxuto, muita poeira, “terroado” e lama, nas partes mais baixas, inclusive, na região onde concentra lagos, lagos, igarapés e poças.

As palafitas (casas), a maioria localizadas às margens dos rios, construídas de tábua brutas ou beneficiadas, cobertas com telhas de barro, palha ou mesmo de telha Brasilit, estão a uma altura que varia de 2 metros a 2,5 metros do chão, sustentada por esteios dos mais variados diâmetros, com isto evitando que a água da cheia chegue até o assoalho da mesma. Permitindo, que seus moradores estejam protegidos de várias ameaças que rondam seu espaço de moradia, como: sucuris, jacarés, cobras diversas, inclusive venenosas, assim, servindo como proteção para àquelas crianças pequenas que ainda não sabem nada.

Por outro lado, este espaço ou ambiente, que dizer, este período de cheia das águas, servem como uma grande piscina natural para os meninos e meninas mais velhos, que aprendem a nadar muito cedo, e com isto utilizando para satisfazer suas vontades em nadar à vontade, desenvolver diversas brincadeiras, como também remar nas canoas feitas de tronco único de árvores da terra firme. Como também, esta água, tem suas diversas finalidades em relação às atividades familiares, como: utilizada para lavar roupas, lavar louças, tomar banho, fazer comida cozida, no preparo de variadas comidas e, assim por diante.

Neste período de tempo, isto é, no inverno amazônico, os meninos e meninas vão se aprimorando espontaneamente na natação, o que já lhes favorece em quaisquer situações de perigo que exijam deles, estarem na água, e assim usar das habilidades aprendidas inconscientemente. Uma grande vantagem para com outros indivíduos que moram, por exemplo, nas áreas de terra firme ou nos grandes centros urbanos, e que pouquíssimas vezes desfrutam deste ambiente dinâmico, flexível e por vezes atrativo, além de, em contrapartida, oferece perigos diversos, como alagamento de embarcações, temporais repentinos, como exige do indivíduo que se adapte desde pequeno às intempéries da natureza.

Portanto, para viver e conviver nestes espaços, onde as casas (palafitas) são bem distantes uma da outra, tem suas vantagens e desvantagens, além de apresentar um espírito aventureiro permanente ao habitante (seja ribeirinho ou não) e o enfrentamento dos perigos constantes; há ainda o isolamento e a solidão, inclusive no inverno amazônico nas áreas de várzeas da planície amazônica. Sendo que, entre as vantagens, estão um espaço ventilado, sem poluição, e com grandes recursos naturais (peixes, camarões, criações) à disposição e de forma gratuita. Já, em referência as desvantagens, há o distanciamento entre as famílias, assim como pouco se locomover no inverno, no que diz respeito aos membros inferiores, mas em contrapartida, compensado pela natação, assim como a caminhada à longa distâncias no verão.

AS DIVERSAS FORMAS DE PESCARIAS EXECUTADA PELOS GAROTOS

No inverno, é natural que, estes meninos, armados de malhadeiras ou redes de pesca, as quais variam de tantos metros a milhares de “braçadas”, ou ainda de tarrafa ou outro apetrecho, se desloquem sozinhos, podendo ser próximos da casa, ou para longe, acompanhado de uma pessoa mais velha, onde passam até semanas longe de casa e a bordo de barcos, conhecidos como geleiras.

Quando a pescaria se dar próximo da residência, no inverno, se destina os pescados, especialmente para a sobrevivência da família ou subsistência desta; porém, constituída a captura, de diversas espécies de peixes, quando os mais notados e preferidos são: o curimatá, o pacu, o acari, o aracu, o surubim, a aruanã, o tamuatá, tambaqui, pirapitinga, o acaraçu, entre outros menos expressivos, mas que são bem-vindos quanto as suas mais diversas formas de preparar no que tange à culinária amazônica – ribeirinha – cabocla.

Porém, quando se trata, de pescaria mais longe de casa, a bordo ou reboque de uma geleira, que são os barcos que contem urnas de madeira e isopor, com carregamento de gelo no seu interior, utilizado aos poucos e de acordo com o quantitativo de pescado a ser gelado no período de estado da embarcação e claro, dos pescadores, na área de pescaria. E, que dependendo da “bamburrada”, como se chama os acertos em cheio nos cardumes de peixes, possibilitam à volta dos pescadores, mais cedo para sua residência na região ribeirinha.

Atualmente, com o advento de novas tecnologias, os modelos de pescarias e até tempo de abastecimento dos barcos geleiros, ficaram mais dinâmicos e flexíveis, levando menos tempo para abastecer os barcos, identificar os cardumes e, também, soltar e recolher as redes de pesca. Sendo um deste equipamentos, que possibilitou um novo avanço, foi o surgimento do motor rabeta, o qual é acoplado na polpa da canoa, substituindo aos antigos e tradicionais remos de madeira.

Não que estes equipamentos e instrumentos tradicionais, deixaram de existir ou não serem mais utilizados na pescaria, mas ficaram legados ao segundo plano na atividade. Porém, o conjunto de instrumentos não parou no motor rabeta, houve ainda a aquisição de um bote ou canoa de tamanho maior, a implementação de malhadeiras de poliamida ou nylon com altura e comprimento maior, assim, como até uso de sonares aquáticos para identificação de concentração dos cardumes de peixes.

Portanto, desconstruindo a forma tradicional e cultural da pesca utilizando arpão, arco e flecha, anzóis, caniço e outros ficaram no passado, ou ainda muito menos expressivo naquelas comunidades bem tradicionais, que ainda por uma questão de manter os costumes tradicionais, ainda utilizam estes apetrechos.

UM DIA DE VERÃO DE PESCA EM LAGOS DA ÁREA DE VÁRZEA NO PURU (COMUNIDADE SÃO JOAQUIM)

São cinco horas da manhã, ainda está bastante escuro, mas os meninos que vão acompanhar os mais velhos ou que vão sozinhos, quando se trata de adolescentes que tem uma idade mais avançada, já estão de pé e prontos para a jornada ao lago, os quais ficam localizados a uma boa distância da casa. Assim, ao redor da lamparina, esperam que o café seja preparado no fogão à lenha ou ainda no fogão a gás, o qual será colocado nos copos “americanos”, em canecos esmaltados ou ainda latas de algum produto que é reutilizado para tal fim.

Depois de coado, o café, é tomado com farinha de mandioca, misturado com leite de gado bovino (vacas), ou ainda degustado com um beiju de farinha fritado na banha de leite ou ainda na banha do porco, obtidas pelos criadores de gado bovino das comunidades da área de várzea do Puru, no município de Prainha – Pará.

Assim, vestidos com shorts grossos ou calções, sem sandália, uma camisa de pano grosso, e chapéu de palha ou ainda um boné, para àqueles que tem “condições” financeiras, e com pés no chão, lá iam eles, ao raiar do dia, no canto do carão, da piaçoca, ou mesmo das revoadas de garças e mergulhões que passavam rumos aos logos e poços em busca do seu alimento diário.

Caminhando em direção ao lago, levando em suas costas, as sacas com malhadeiras, portando terçados, remos, cuias e algum cacete confeccionado de madeira ou ainda feitos de galhos de arbustos, com pés na poeira (poaca) fria ainda da madrugada, nos caminhos feitos pelos rebanhos dos gados que pastavam nestas áreas. Um espinho de juquiri aqui, um torrão de terra solta ali, e outros empecilhos encontrados pelo trajeto iam até chegarem à margem do local escolhido, onde possivelmente tinha um casco.

Lembrando, que neste alvorecer, ainda tinham eles a possibilidade de encontrar algum tipo de cobra pelos caminhos em direção a área lacustre, fosse alguma jararaca ou comboia, altamente venenosas, mas que pelo costume, já iam precavidos com uma vara ou outro tipo de “arma” que pudessem espanta-las ou mesmo mata-las, caso fosse necessário.

Chegando à beira do lago, ou como os antigos diziam, dos poços de peixe, eles desalagavam os cascos ou botes, que lá já haviam sidos deixados anteriormente, se desfaziam dos apetrechos dentro da embarcação e se preparavam para lançar a malhadeira no espaço mais adequado ou onde “cismavam” que os peixes estava, mais unidos em cardumes, já que a noite tinha possibilitado a saída dos mesmos dos barrancos ou capins à margem deste lago.

Água fria ainda, era hora de meter o bucho na água, quando um dos meninos era responsável de levar a ponta da malhadeira, puxando para a parte mais funda do lago, no sentido de ir fazendo um semicírculo com a malhadeira, onde na sua frente ia uma vara que servia como apoio ou mesmo para cutucar o fundo do lago, evitando assim botar os pés nas costas de uma arraia que por lá deveria ainda está dormindo.

Feito isto, e finalizado o quantitativo da metragem da malhadeira, uns 100 metros a 150 metros, era hora de fechar o processo, formando assim um círculo, contando que os peixes estivessem cercados para que assim depois com a zoada feira das diversas formas na água, eles pudessem se malhar e claro, serem capturados. Porém, a coisa não era tão simples assim, visto que os perigos rondavam este ambiente; quando poderiam estar dentro espaço, algum poraquê ou mesmo cardume destes, ou ainda um sucuriju descuidado, ou um jacaré, ou ainda piranhas, ou as temidas traíras com seus dentes afiados. Em suma, não apenas era necessário possibilitar cercar os peixes, mas está prevenido contra estes intrusos nada amigáveis, pois dependo do tamanho e das circunstâncias os perigos eram iminentes, já que não se podia enxergam o que está no fundo, e ainda mais pelo fato da água ser turva ou escura.

De alguma maneira, o “treinamento” dos curumins ou moleques desde tenra idade, dava vantagens e condições para agir em caso extremos, como nadar mais rápido, usar o facão, ou mesmo a malhadeira para se proteger. Com relação às piranhas e traíras que eram malhadas, a habilidade em desmalhar é uma habilidade que se aprende desde muito cedo pelos moleques que estão em constante “perseguição” dos peixes, em diferentes épocas na várzea.

Assim, que começam a fechar o círculo, com as malhadeiras, que dependendo da malha e das espécies alvo da pescaria, começam a retiram os que se entrelaçaram nas na rede ou malhadeira, quando as espécies mais preferidas são àquelas que os geleiros oferecem um bom preço. Entre estas espécies mais nobres, estão: curimatã, jaraqui, acaraçu, tambaqui, pacu, tucunaré, pescada, surubim. Já as menos nobres se encontram, a aruanã, traíra, bocó, acari, entre outras.

Lembrando que, ao fazer o círculo, e com a diminuição dos mesmos, muitos peixes escapam, ou passando por baixo quando suspensa, furando a malhadeira, saltando por cima, ou se enterrando na lama do fundo do lago, assim, como àqueles pequenos, que saem livremente entre as malhas da rede, o que facilita uma seleção dos pescados mais adultos, e consequentemente, os mais preferidos.

Muitos tipos de pescados neste sistema acabam se engatando nas redes, como as traíras, piranhas, reque - reque, mandíi, tipos de cascudos, que acabam sendo espécies indesejadas, mas que provocam um transtorno, pois as duas primeiras com suas mordidas podem ocasionar lesões profundas na pele, ou mesmo extirpar dedos ou pedaços de carne do corpo, sendo muito necessário muito cuidado ao manuseio do peixe enquanto estiver vivo. Já quanto aos outros, os seus “atrapalhos” estão relacionados as suas nadadeiras, ora com esporões serrilhados, o que faz engatar na malha, ou os esporões que mais parecem agulhas, mas que ao penetrarem na pele, difícil sair puxando, visto as serrilhas ao contrário, no caso dos mandis e outros pescados de pele lisa. Mas os cascudos, sua impertinência está na sua carapaça que além de possuir espinhos, também tem uma crosta lixenta, o que promete belos rasgos nas mãos aos serem despescados.

Após serem retirados da malhadeira, e serem colocados na canoa ou mesmo dentro das sacas de fibras ou de outro material que suporte peso e as partes afiadas dos pescados, está na hora de correr com a pescaria, pois o sol está ficando “quente”, e a água do lago também, já que a mesma é consumida assim mesmo, barrenta e com vários sabores não muito agradáveis. Outra desvantagem feita pela subida do sol, e a dos peixes voltarem a se esconder nos capins e barrancos, com difícil acesso.

Quando o sol começa a esquentar ainda mais, os moleques com camisas mangas curtas, passam uma fina camada de lama sobre a pele, evitando com isto que haja uma insolação mais acentuada, já que o percurso de volta ainda está longe. E assim, colocam os peixes na saca, assim como as malhadeiras, e começam o caminho de volta.

Primeiro, retiram o excesso da lama do corpo, inclusive àquela que estão nos membros inferiores, visto que ficaram a maior parte do tempo “atolados” na lama submersa ou no fundo do lago. Em seguida, divide-se o quantitativo por partes iguais dos meninos ou ainda por tamanho do indivíduo, assim como já têm àqueles que se voluntariaram para carregar as malhadeiras encharcadas de água e lama, o que não é fácil no que tange ao peso.

Chegando à beira do lago, puxam mais a canoa para a terra, e assim cada qual coloca sua carga, ou na cabeça ou nos ombros, dependendo do costume, ou ainda da melhor maneira que encontram para levar ensacados os tantos quilos de peixes. E lá se vão, com aquela baba ou gosma (gosma para alguns) escorrendo das sacas e percorrendo todo o corpo do moleque; o que vai precisar de um banho a base de limão e muito sabão em barra para tirar o pitiú que às vezes impregna no corpo. Sem falar nas “esporadas” ou furadas na cabeça, ombros ou costas, devido que muitos ou alguns peixes possuem, além de dentes afiados, como o caso da traíra, há galhas e outros com esporões, que acabam “perturbando” o carregador.

Já não bastasse todos estes entraves, além da poaca quente, e o sol a pico, a distância faz com que cada 10 quilos de pescados ensacados, tenha a sensação de 100 quilos cada. Ainda mais fadigados pela força feita durante o “borqueio” com a malhadeira e o tempo “entrevado” dentro da água desde cedo. Agora pela falta de comida, já que não se leva nada, ou quando se leva, não se tem tempo ou é pouco para cada um; ou ainda pela falta de ingestão de água, já que a do lago, se sujeita não ser ideal para o consumo, o que beneficia somente os mais corajosos.

E quando se forma um buraco na saca, por alguma razão, onde algum peixe escapole com facilidade, a vontade é grande de não pegar, pois cada arriada da saca com peixe ao chão, torna-se um transtorno coloca-la novamente nas costas, já que os parceiros já estão muito longe e o socorro fica cada vez mais difícil, portanto, é mais viável perder alguns quilos, o que ameniza o peso do que ficar para trás e correr o risco de encontrar sozinho pelo caminho um bando de búfalos ou uma vaca em desmame.

Enfim, chega-se na beira do rio, onde está a geleira ou uma canoa ou casco maior, quando são despejados os peixes da saca no porão do mesmo, e feito a lavagem para a retirada da terra ou lama que se acumulou nos peixes. E assim são separados por espécies mais nobres daqueles de segunda, são pesados e claro, vendidos para serem gelados nas urnas do barco – geleira, os quais vão vender em outros municípios ou até mesmo em outros estados.

Assim, sente-se a sensação de um dia com o dever cumprido; quando se toma aquele banho, na beira do rio com águas turvas, para tirar o pitiú da gosma do peixe com sabão grosso, e claro, vão cuidar dos peixes que foram separados para servir de comida para a “equipe” dos “moleques-homens”, os quais desde então, já são treinados para a vivência, interação e convivência, como também para o fortalecimento de um cidadão forte o necessário para o enfrentamento da intempéries, contratempos, obstáculos (de todo tipo) e vicissitudes na vida.

 

“Se faz necessário, às vezes, o convívio com as vicissitudes e as intempéries, para a formação da virtude e do caráter do cidadão, o qual ver na dificuldade, desde tenra idade, uma oportunidade para se moldar eficazmente e suficientemente com habilidades e competências para a vida futura”. 

(Prof. Sydney Pinto dos Santos)

 

 

[1] Professor e pedagogo da rede pública de Ensino do Município de Prainha – Pará.

Graduado em Pedagogia pela Universidade de São Marcos – Vitória ES.

Graduado em Educação Física pela Universidade Federal do Pará – UFPA.

Pós - Graduado em Gestão Escolar pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA;

Pós – Graduado em Metodologias da Língua Portuguesa e Estrangeira pela UNINTER;

Mestrando em Educação com Especialização em Ensino Superior pela UNINI/FUNIBER;

Terapeuta Especializado em Terapia de reprocessamento Generativo TRG – Formado pelo Instituto Brasileiro de Formação de Terapeuta (IBFT)

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