Um comentário 'politicamente correto'
Por Osorio de Vasconcellos | 07/02/2010 | CrônicasUm comentário ‘politicamente correto’
Numa rádio de grande penetração, em horário nobre, rolava um comentário a respeito de doações destinadas ao financiamento de campanhas eleitorais. Teremos eleições
O comentário, movendo-se com desembaraço pelo tema, logo desaguou na bifurcação clássica das doações ocultas e doações transparentes.
A cavaleiro da bifurcação, e sempre na perspectiva das partes investidas, a saber, os políticos e os capitalistas, a explanação desenhou, em estilo ‘politicamente correto’, o intrincado perfil das alternativas.
Antes de prosseguir, abro um parêntese, para dizer o que entendo por ‘politicamente correto’. A fala ‘politicamente correta’ é aquela que se desloca com o freio da verdade puxado a meia mão. Isso naturalmente em atenção aos possíveis melindres de quem, direta ou indiretamente, patrocina o programa.
Fechado o parêntese, voltemos à vertente central das considerações. Dizíamos que o comentário desenhou o perfil das alternativas. E o fez por etapas. Reconheceu que navegar pelas vias bifurcadas não era trabalho para amadores, mas exigia talento e muita experiência. Deteve-se um pouco na heterogeneidade dos propósitos em jogo, na sonolência da lei, no fogo cruzado dos interesses. Aludiu genericamente às pressões do sistema, assim como à burla possível dos mecanismos de controle. Em seguida, ligeiro e rapidinho, sem lhe dar maiores atenções, cogitou de ‘caixa-
Nesses termos, por seu tom elegante de informativo convencional, o comentário poderia classificar-se como satisfatório. Dois motivos graves, no entanto, embargam a cotação.
O primeiro ─ motivo de ordem ética ─ consiste em que, ao arrepio do dever de bem advertir e informar, o comentário não explorou o potencial histórico de ‘caixa-
O segundo motivo ─ este de ordem formal ─ entende com o arremate ‘é complicado’, cuja significação enfeixa uma babel de nuances, que cumpre ordenar.
Logo ao primeiro lance d’olhos, noto que ‘é complicado’, longe de ser o que aparenta ─ a expressão aparenta ser um mero e despretensioso arremate frasal ─ interrompe a sequência expositiva do comentário, e introduz o estilo apreciativo. A partir dali o comentarista pára de expor e oferece a sua opinião sobre o exposto.
O momento se afigurava propício ao enriquecimento do saber ou à afirmação da moralidade. A alguém habilitado, a alguém tecnicamente autorizado, a um autêntico formador de opinião, afinal, dava-se a oportunidade de emitir um juízo sintetizador, um apanhado lúcido da realidade delimitada no comentário.
Uma série de noções atinentes ao tema se oferecia ao tirocínio do comentarista. Se não quisesse perder de vista o golpear das foices na guerra das doações, ele podia advertir: ‘é perigoso’, ‘é arriscado’, ‘ ‘é temerário’, ‘é violento’, ‘é contundente’. Se quisesse trilhar por alamedas éticas, ele podia doutrinar: ‘é desonesto’, ‘é desleal’, ‘é indecente’, ‘é mau exemplo’.
Mas nada disso fez. Desprezando as ferramentas cartesianas da clareza e da distinção, ele preferiu engrolar o discurso com aquele obscuro ‘é complicado’.
Obscuro, porque do ponto de vista epistemológico, vale dizer, no que pode interessar ao conhecimento do esquema das doações de campanha, ‘é complicado’ não acrescenta nenhuma noção nova ao que fora explanado antes. Dito de outro modo, ‘é complicado’ carreia para o entendimento apenas um arremedo de inteligibilidade, visto que a ‘complicação’, ou seja, a heterogeneidade e o intrincado do esquema das doações já estavam contidos, enunciados, explicitados e distribuídos em cada item do comentário. Nesse contexto, portanto, ‘é complicado’ introduz uma predicação tautológica, vale dizer, um balbucio logicamente inútil ao discernimento.
Inútil do ponto de vista lógico, o arremate ‘é complicado’, no entanto, desempenha papel psicológico decisivo na persuasão do comentarista e do ouvinte.
Do comentarista, porque ele pega todo o imbróglio das doações de campanha, envelopa-o, sela-o, e o despacha com aquele sobrescrito ocultista ─ ‘é complicado’ ─ que tanto pode significar ‘deixa pra lá’, ‘não esquenta, ‘ninguém entende’, ‘é coisa de político’, ‘não te mete nisso’, ‘é desse jeito’, ‘fazer o quê?’, ‘não vamos deixar que isso estrague o nosso fim de semana’, etc. etc. Assim despachado, o comentarista sai de cena, assoviando, com as mãos limpas, como o espectador que deixa o teatro, leve e purgado da morte de Desdêmona.
Na outra ponta, o ouvinte recebe a encomenda, abre o envelope ─ ia dizendo abre a Caixa de Pandora ─ e não sabe o que fazer com o imbróglio. Fica confuso, cheio de dúvidas por alguns instantes, até que uma voz sussurra lá do fundo do pacote: ‘é complicado’ (entenda-se: ‘deixa pra lá’, ‘não esquenta’, ‘isso é coisa de político’, ‘não deixe de aproveitar o seu fim de semana’, etc. etc. etc.).
Pronto! Era a senha que faltava, para liberar a mercadoria. A consciência se satisfaz com a ‘definição’ da autoridade jornalística. A confusão se desfaz, as dúvidas se dissipam, a curiosidade murcha, a vontade de inquirir se amofina, e não se questiona mais nada.
A esse mecanismo de persuasão, insinuante, despótico e avassalador, costuma-se dar o nome de mito, por sua semelhança com as criações mitológicas arcaicas. No caso vertente calha bem a legenda de ‘mito da complicação’.
Numa primeira fase, esse tipo de mito artificial, sempre correlato de uma tecnologia de poder, é ferramenta de trabalho restrita a profissionais e a militantes. Ganha o domínio público, quando a população começa a repeti-lo mecânica e ingenuamente.
Aliás, é isso o que acontece com ‘é complicado’, que, nessa acepção tautológica, isto é, a serviço do mito, destaca-se no alentado rol da nossa mitologia, como um grande fornecedor de verossimilhança a enunciados obscuros e a situações falaciosas.
Tamanho é o seu poder, que, se Descartes o tivesse conhecido, certamente não teria perdido tantas noites de sono buscando as luzes do seu ‘penso, logo, existo’. Todas as suas dúvidas não teriam sequer aflorado.
Um racionalista talvez lamente que o Brasil viva atolado em falácias, enredado