UM CÃO E SEU DONO
Por Luciano Machado | 27/01/2010 | ContosUM CÃO E SEU DONO (Conto)
Nicolau trabalhava em Alegrete-RS, num centro de processamento de dados. Todos os finais de semana, após o expediente, que se prolongava até a madrugada de sexta para sábado, viajava para Santana do Livramento, a duzentos quilômetros dali. O trecho rodoviário entre as cidades de Alegrete e Rosário do Sul era muito ruim, e não havia qualquer tipo de sinalização.
Numa dessas madrugadas em que saiu de Alegrete com destino a Livramento, estava chovendo torrencialmente e Nicolau se orientava mais pela intuição do que pela visibilidade da estrada. Num determinado momento, houve aquele estrondo... O carro havia caído num buraco e o motor imediatamente se apagou. Tentou reacionar a ignição e os faróis, mas nada estava funcionando. Nicolau estava no escuro, sob a chuva e a cerração intensas. Eram mais ou menos três horas da madrugada. Desprevenido, como sempre, não tinha lanterna nem guarda-chuva, ou sequer um isqueiro ou uma caixa de fósforos. De qualquer modo, desceu do carro, abriu o porta-malas, retirou o triângulo e o colocou na estrada que, àquela hora, já não tinha nenhum movimento. Olhou para os lados. Sob a luminosidade ocasional dos relâmpagos só enxergava a vasta extensão dos campos e alambrados. Entrou novamente no carro e esperou não sabe quanto tempo. A chuva continuava cada vez mais forte. De repente ouviu um leve ruído. Algo arranhava a porta do carro, do seu lado. Abaixou o vidro. Era um cão ... Estava inquieto e gania. Acariciou-lhe o focinho molhado e o animal pareceu acalmar-se. Abriu a porta e o cão, gemendo, pareceu que lhe pedia para seguí-lo ... Fechou o vidro, chaveou a porta do veículo e andou atrás do cão até uma porteira. Nela havia uma tábua dependurada com uma inscrição que não conseguiu ler... Abriu a porteira e seguiu o cachorro. Andaram uns cinqüenta metros por um caminho bastante pedregoso, até que avistou uma casa no meio do arvoredo. Uma luz bruxuleava lá dentro. Aproximou-se da casa e bateu palmas. Estava agora tão molhado como o cão. A porta se abriu e apareceu um homem idoso, segurando um lampião à altura do rosto magro.
-- Boa noite – disse Nicolau.
-- Boa noite – respondeu o homem – O que deseja?
-- Fiquei na estrada, a uns cem metros daqui. O senhor teria uma lanterna?
-- Só tenho este lampião a querosene. Mas não se preocupe, eu vou com o senhor até lá.
-- Desculpe – falou Nicolau -- mas como é o seu nome?
-- Aqui todos me conhecem por Reinaldácio.
E o sr. Reinaldácio acompanhou Nicolau até onde estava o carro, tapando com a mão a parte superior do lampião para que não se apagasse com a chuva, que continuava a cair intensamente.
À luz do lampião, abriu o capô e examinou o motor. Tudo parecia em ordem, exceto o cabo da bateria, que estava solto. Recolocou o cabo no lugar, entrou no carro e acionou o motor, que funcionou ao girar a chave. Sem nenhuma dificuldade, conseguiu retirar o carro do buraco. Fê-lo rodar alguns metros e estacionou. Desceu e recolheu o triângulo. E voltando-se para agradecer a ajuda do homem, disse:
-- Obrigado pela ajuda e desculpe o incômodo, seu ... – mas o homem e o cão haviam desaparecido.
Nicolau continuou a sua viagem. Dali até Rosário do Sul havia aproximadamente uns quarenta quilômetros. O restante da viagem transcorreu sem maiores contratempos, apesar do péssimo estado da estrada.
Quando chegou em Livramento eram 5:30 hs da manhã.
Depois de passar o fim de semana, na segunda-feira de tarde retornou para Alegrete.
A partir de Rosário do Sul, ía controlando a distância. Mais ou menos uns quarenta quilômetros depois de Rosário, pela estrada que conduzia a Alegrete, estacionou. Desceu e andou pela rodovia. O tempo agora estava bom e a tarde ensolarada lhe permitiu observar melhor aquela lamentável estrada. “A casa do seu Reinaldácio deve ficar por aqui ...”, pensou. “Preciso agradecer a esse cidadão pela ajuda que me prestou...”
Em seguida localizou a porteira com a tabuleta. Mas o que quer que nela dissesse, estava apagado e ilegível ...
Pela estrada vinha um trator. Fez sinal que parasse.
-- Boa tarde, moço! O senhor sabe onde mora por aqui o seu Reinaldácio?
O homem pareceu surpreso com a pergunta.
-- Ele morava ali onde está aquela tapera.
Nicolau olhou na direção indicada e avistou apenas uns restos de parede de tijolo, sem nenhum teto, entre o arvoredo
-- O senhor quer dizer que ele não mora mais ali?
-- Não, ele ...
-- Prossiga, por favor, disse Nicolau.
-- Ele era um homem simples. Uma criatura muito boa. Possuía uma pequena chácara e uma lavoura e levava seus produtos para vender na cidade. Ele tinha uma camioneta velha ... Uma noite, quando voltava para casa, acidendou-se, exatamente naquele lugar onde o senhor pode ver uma cruz de ferro ...
Nicolau foi até o lugar e se deparou, ao lado da cruz, com um enorme buraco. Era sem dúvida o lugar onde havia caído. Mas não referiu o caso ao homem do trator.
Apenas perguntou:
-- E qual foi a causa do acidente?
-- Ah, isso faz mais de vinte anos. Ele se desviou da estrada para não atropelar o seu próprio cão que vinha esperá-lo ao chegar em casa.
-- E conseguiu salvar o animal?
-- Não ... Morreram os dois.
(Versão integral do conto premiado em quinto lugar no Concurso Literário da cidade de Taquara-RS, organizado pelas Faculdades Integradas e Jornal Panorama, em homenagem aos duzentos anos de nascimento do poeta e escritor Edgar Allan Poe)