Um cacoete sazonal

Por Osorio de Vasconcellos | 12/11/2011 | Crônicas

Um cacoete sazonal

 Os espaços territoriais da  USP – Universidade de São Paulo – serviram recentemente de palco a  cenas brutais  no melhor estilo da violência urbana pós-modernista.  

 Aí o reitor pensou: isto é um absurdo. Não tem cabimento. Não combina com a imagem da nossa erudição. Uma força maligna  parece infiltrada em nosso meio e, se bem observo, age livremente. Não vejo alternativa, senão pedir socorro às autoridades.

Resultado: a USP assinou convenio com a Polícia Militar, que passou a vigiar o campus  mais de perto e mais amiúde.

 Não demorou muito, à guisa de protesto contra a presença dos policiais, o prédio da Reitoria foi ocupado.

É de crer que para alguns estudantes a presença instalada da Polícia  nos domínios da Universidade fez vibrar uma nota de similitude com a presença das UPPs nas favelas cariocas.

No dia seguinte, o Reitor, em entrevista concedida à CBN, declarou, referindo-se à ocupação da Reitoria, que “isto não é novidade...   que  não é novidade, porque nos últimos vinte e cinco anos essa questão das ocupações são coisas que acontecem quase que no calendário anual. Não que isso seja positivo nem que tenha se tornado algo aceitável.”

 Há na resenha supra três elementos factuais concretos logicamente sequenciados e um quarto elemento que, por último,   se erige com o fim exclusivo  de  apreciar não todos, mas apenas um dos elementos  anteriores. Os elementos factuais concretos são a violência registrada no campus, o convênio com a Polícia Militar, e a ocupação da Reitoria.  O elemento apreciativo é o comentário que o Reitor expende a propósito da ocupação.

 Aí esta, pois, definida e  delimitada, a matéria da qual devo pinçar um assunto e, a seu serviço, alinhavar algumas considerações.

 Naturalmente avesso ao trato da matéria violenta,  descarto desde logo a questão da segurança no campus da USP. Prefiro manter bem longe de mim qualquer cogitação que me leve  a suspeitar da infiltração de traficantes  naqueles espaços reservados às reverberações do espírito.  

 Outro assunto liminarmente fora de cogitações calha de ser a presença estratégica  da Polícia a patrulhar inimigos não aleatórios.  Quero a todo custo poupar-me ao dissabor de, no curso das reflexões,  ser forçado a reconhecer a necessidade da “pacificação”.

 Restam dois possíveis assuntos que, por coerência, eu devia igualmente descartar.  Refiro-me à ocupação do prédio da Reitoria e ao comentário que o Reitor expendeu a respeito dela.  Por coerência, digo, porque tanto a ocupação da Reitoria,  quanto a fala do Reitor tem em comum  a  índole invasiva dos atos violentos.

Ambas  são agressivas e retalia tórias.

 Acontece que, se descartar estes dois assuntos remanescentes, o artigo aborta. Ou, pior ainda, o artigo cai na vala comum dos artigos sem assunto.

 Felizmente a tempo me dou conta de que a violência da ocupação, pode amenizar-se ou mesmo descaracterizar-se,  caso levemos a sério a fala do Reitor.

 Com efeito, a violência da ocupação perde força a partir do momento em que se perceba, conforme denuncia o Reitor,  o seu caráter mecânico. Assim vista, a ocupação, que se repete automaticamente há vinte e cinco anos,  deixa de ser um ato vivo de inteligência hostil, deixa de configurar uma resposta beligerante articulada com a realidade do momento, para transformar-se num cacoete sazonal,   ou, se preferirem, numa espécie de moldura pronta, aplicável a qualquer paisagem.

 Vista com essa roupagem, a roupagem dos modos mecânicos de ser, a ocupação, que antes  parecia refletir os lampejos de uma idéia vibrante, assume, de repente, a feição rígida de uma careta maquinal, virtualmente cômica.  

Se alguém duvida dessa desconcertante  metamorfose, tenha a bondade de reler comigo esta lei de  Bergson: “ As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano são risíveis, na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica.”

 Mas o interessante disso tudo é que, para admitir a ocupação como tema deste artigo, terei necessariamente de admitir também nas mesmas funções, a fala do Reitor.

 Claro! A fala do Reitor, ao revelar a comicidade subsumida no cacoete da ocupação,  coloca-se a serviço da verdade, e a verdade ainda quando pareça retaliar, nunca será violenta