UM ADIVINHO DANDO UM SUSTO EM UM INCAUTO

Por Antonio Anicete De Lima | 13/11/2010 | Crônicas

UM ADIVINHO DANDO UM SUSTO EM UM INCAUTO



Numa manhã de sábado, logo bem cedo, antes do dia clarear, arreei a burra Estrela, vesti uma calça de brim cáqui, uma camisa de tricoline branca com pano devidamente passado, então coloquei um chapéu almaço e calcei uma alpargata de rabicho, ai nem mesmo eu me reconheci, parecia um doutor do sertão. Meu destino nessa ocasião era o vilarejo de Santo Antonio no município de Quixará.
Nessa ocasião, para ser mais rápido, fiz a viagem pelo Caminho Velho uma trilha antiga que atravessava o Tabuleiro do Santo Antonio, uma região semi-árida de pouca vegetação, entremeada por áreas de solo adensado sem nenhum arbusto, que mais parecia um lajeiro de granito, quando iluminado pelo sol escaldante do meio dia. Naquela caminhada matinal de inverno chuvoso, aquelas paragens já estavam verdes e a grama nativa de folhas lanceoladas era um atrativo para o pastejo, na época da apartação do gado leiteiro das crias e recrias.
Era possível ouvir-se ao longe, o eco vibrante dos chocalhos badalarem em diversas direções do Tabuleiro, e o gado a mugir nos grotiãos, nas chapadas e nos outeiros, dando boas vindas ao sol matinal, cujos raios iluminavam a copas dos arbustos.
Já bem próximo da vila, de longe avistei um ancião sentado debaixo de um pé de juazeiro. Ao me aproximar, vi que o homem estava comendo sossegadamente um beiju de fécula de mandioca, tendo a tiracolo um bornal de couro de veado dentro do qual se encontravam um tabaqueiro de chifre de carneiro, um cornimboque com pluma de algodão, uma pederneira e um pedaço de lima de aço, instrumentos estes utilizados para acender o cigarro de palha, conduzido atrás da longa orelha de abano.
Parei a burra Estrela debaixo do juazeiro e comecei a dialogar com o ancião andarilho:
-Bom dia meu senhor!
-Bom dia.
-De onde o senhor está vindo?
-Do Junco, meu filho. Estou vindo da casa de um dos meus filhos, o mais velho. Faz pouco tempo que fiquei viúvo, agora estou sem moradia certa.
-E como tem sido a sua vida depois de perder sua esposa?
-Difícil meu filho! Como é o seu nome?
-Meu nome é Antonio Ferreira.
-Pois é Antonio, a minha vida não tem sido fácil, morar na casa de filhos, noras e genros a gente não sabe onde pisa. Eu sinto com um peixe fora d?água, pra mim é a mesma coisa que morar em casa estranha, a gente nunca fica a vontade.
-Quantos os anos o senhor já tem?
-Uns setenta e lavai pancada, mas dizem que nasci na época da alta do sal, sendo assim minha mãe dizia que eu deveria ser uns cinco anos mais velho.
-Para onde o senhor está indo agora?
-Estou indo passar uma temporada na casa de uma filha minha, que mora na Charneca, município de Várzea Alegre.
-Então o senhor tem ainda uma boa caminhada pela frente, não é?
-É verdade e com as minhas pernas já um tanto trôpegas, devo chegar por lá somente ao pôr-do-sol.
-É verdade, mas o senhor pode descansar nas ribeiras do riacho Fortuna e Machado, pois vai encontrar gente boa e hospitaleira.
-Meu filho me desculpe de lhe chamar assim, mas ninguém hoje em dia repara pra gente velha. Se noras e genros não nós tratam bem, quem é que vai se condoer de um pobre velho, nesse sertão de chão duro e batido!
-Só tem um jeito, se o senhor tivesse um agradinho para dar as crianças em cada casa que batesse palma. Quando eu viajo, sempre levo alguns trocadinhos e distribuo com as crianças, especialmente onde eu quero me hospedar e filar a bóia.
-É Antonio, mas agora eu estou mais liso que baba de quiabo cozido em fogão de trempe.
-Foi um prazer conversar com o senhor e boa viagem.
-Boa viagem pra você, Antonio Ferreira.
Depois dessa pequena conversa fui até Santo Antonio e resolvi tudo que estava previsto, o mais rápido possível, pois precisava chegar cedo a Vacaria, pois nesse dia tinha muitos afazeres, além de atender os fregueses na bodega, tinha que matar uma ovelha, esfolar o animal, espichar o couro e vender as carnes.
Na volta para casa, como estava muito vexado, em vez de pegar a rodagem de chão batido, voltei pela mesma trilha, desse jeito não encontrei mais o velho andarilho. Assim que cheguei em casa, vesti uma roupa velha, engelhada e encardia pela lida com a lavoura, botei um chapéu de palha furado na testa e assim fiquei mais parecido com um espantalho do que com um mendigo.
Quando deu lá pelas onze horas da manhã, olho pela janela da bodega e vejo o andarilho solitário se aproximando ofegante e precisando de guarida. Eu pensei: hoje vou convidar esse coitado para tirar a barriga da miséria. O almoço estava quase pronto e tinha mandado cozinhar o fígado e fazer um pirão de farinha do traseiro.
Quando o homem pisou o pé nos umbrais da porta, iniciamos um diálogo com se fôssemos dois desconhecidos, só assim percebi que ele não me reconheceu. Nesse momento convidei o sujeito a adentrar, ofereci-lhe água e guarida com toda presteza sem que ele desconfiasse.
Como muito bom humor, fui logo lhe dizendo:
-Hoje o senhor só vai sair daqui depois de almoçar comigo, pois já está quase na hora. O senhor aceita?
-Aceito sim, com toda certeza!
-Hoje eu matei um carneiro cevado, mandei cozinhar o fígado e o quarto traseiro. O senhor gosta de comer fígado cozido?
-Pra mim é a parte mais gostosa dos miúdos do animal.
Nesse momento mudei de conversa e falei:
-Desde pequeno tenho um dom, sei lá uma arte de adivinhar as coisas sobre a vida das pessoas. Antigamente os mais velhos diziam que eu tinha de desenvolver a mediunidade, mas o papai era muito católico e nunca permitiu. Você acredita nisso, meu senhor?
-Acredito sim, senhor!
-Pois então eu vou contar alguns trechinhos sobre a sua vida pessoal, antes do almoço.
Então comecei a relatar:
-É muito triste quando a gente é pobre, e fica viúvo depois de velho. Às vezes fica dependo dos outros e acaba indo morar na casa dos filhos, junto com noras ou genros, aí a gente perde a liberdade de fazer o que quer, ou até comer o que gosta. Não é mesmo meu senhor?
-É verdade. Parece que você advinha mesmo, pois sou viúvo e moro na casa dos filhos.
-O senhor está vindo agora mesmo do Junco da casa de seu filho mais velho. Saiu hoje, bem cedo de manhã, trazendo nesse bornal de couro de veado, um tabaqueiro de chifre de carneiro e um cornimboque, pois o senhor gosta de fumar um cigarrinho de palha feito de fumo de Arapiraca.
-Poxa, to começando a acreditar que tem gente que advinha mesmo! Até agora você está dizendo tudo certinho sobre a minha vida, tim-tim por tim-tim!
Então continuei a prosa:
-Parece que estou vendo o senhor sentado debaixo de um pé de juazeiro, comendo um beiju de farinha de mandioca e conversando com um homem magro, montado em uma burra castanha, trajando uma camisa de tricoline branca e uma calça de brim cáqui.
Aí o homem se arrepiou e disse:
-Valha minha Nossa Senhora! Não pode ser! O senhor adivinha mesmo! Vamos para por aqui.
-Tenha um pouquinho de paciência meu senhor, pois logo o almoço estará pronto e iremos saborear também, aquele delicioso pirão de farinha. Mas continuando, o senhor agora está indo para a Charneca, onde mora atualmente a sua filha mais nova e nesse rojão que anda, só irá chegar lá à tardinha.
-Não pode ser o que estou ouvindo! Você acertou-na-mosca, estou indo exatamente para esse lugar que você acabou de falar.
-Agora que o senhor começou acreditar nas minhas adivinhações, devo lembrar-lhe que todos nós temos algumas coisinhas encapadas, que vou deixar para revelá-las somente depois do almoço.
-Pelo amor de Deus não faça isso! Dê-me licença, pois já estou indo embora!
-Não faça isso meu senhor, espere pelo almoço já está quase pronto. O senhor não disse que estava com fome e gostava muito de fígado de carneiro cozido. Eu sou vou revelar algumas coisinhas de sua vida que estão ocultas.
-Não de jeito, nenhum! Estou indo embora agora mesmo! Muito obrigado, foi um grande prazer. Tchau.
-Não vá embora agora! Espere pelo almoço, pois a minha mulher veio me avisar que está pronto.
-Eu lhe agradeço muito, obrigado. Fica para próxima vez. Tchau!
-Por favor, eu estou brincando, volte aqui, vamos almoçar.
Nisso quando olho ao redor, o homem já estava no meio do terreiro, e não consegui mais convencê-lo a voltar. O velhinho simplesmente zarpou a toda pressa sem nem ao menos olhar para trás. Eu fiquei sozinho, pensando com meus botões: o que foi que esse sujeito aprontou durante a sua vida pra fugir na hora do almoço.
Viva hoje, de tal forma que amanhã não tenha de que se envergonhar nem temer.


MEU SERTÃO, MINHA GENTE E MINHA VIDA (Trechos)
Antonio Anicete de Lima e Antonio Ferreira Lima