UM ACERTO DE CONTAS

Por sebastião maciel costa | 29/09/2023 | Educação

UM ACERTO DE CONTAS

        Senta que lá vêm histórias. Em certo ano terrível houve, como de costume, uma peste entre os animais. O leão, mais esclarecido, apreensivo, consultou um macaco de barbas brancas. - Esta peste é um castigo do céu. Respondeu o macaco.  - E o remédio é aplacarmos a cólera divina sacrificando aos deuses um de nós.  - Qual?  - perguntou o leão. - O mais carregado de crimes. O leão fechou os olhos, concentrou-se e disse aos súditos reunidos em redor: - Amigos! É fora de dúvida que quem deve sacrificar-se sou eu. Cometi grandes crimes, matei dezenas de indefesos animais, devorei inúmeras ovelhas e até vários pastores. Ofereço-me, pois, para o sacrifício necessário ao bem comum. A raposa adiantou-se e disse:  - Acho conveniente ouvir a confissão das outras feras. Porque, para mim, nada do que Vossa Majestade alegou constitui crime. Matar animais comuns, desprezíveis criaturas; devorar ovelhas, mesquinhos bichos de nenhuma importância; trucidar pastores; raça vil merecedora de extermínio. Nada disso é crime. São coisas que até que honram o nosso virtuoso rei Leão. Grandes aplausos abafaram as últimas palavras da bajuladora, e o leão foi posto de lado como impróprio para o sacrifício.  Apresentou-se em seguida o tigre e repete-se a cena. Acusa-se de mil crimes, mas a raposa mostra que também ele era um anjo de inocência. E o mesmo aconteceu com todas as outras feras. Nisto chega a vez do burro. Adianta-se o pobre animal e diz:

      – A consciência só me acusa de haver comido uma folha de couve da horta do senhor vigário. Os animais entreolharam-se. Era muito sério aquilo. A raposa toma a palavra:  – Eis amigos, o grande criminoso! Tão horrível o que ele nos conta, que é inútil prosseguirmos na investigação. A vítima a sacrificar-se aos deuses não pode ser outra porque não pode haver crime maior do que furtar a sacratíssima couve do senhor vigário. Toda a bicharada concordou e o triste burro foi unanimemente eleito para o sacrifício. Moral: Aos poderosos, tudo se desculpa; aos miseráveis, nada se perdoa. 

            Essa conhecida fábula de Monteiro Lobato remonta recortes  de uma situação vivenciada por animais que independente  de sua natureza tinham razões para justificarem suas atitudes e sentimentos. Era preciso se encontrar e punir um responsável por esta ou aquela desventura  que tenha se abatido sobre eles? Por que, naquele universo irracional, alguém era preciso ser sacrificado, para recompensar as perdas sociais sofridas pela comunidade vitimada pela peste, seja ela qual for.

          Como as fábulas traduzem o comportamento humano, como forma de mostrar que mesmo irracionais, eles são mais razoáveis que os seres humanos, realiza-se um jogo de ideias, um jogo de palavras que resumem o interesse pela qualidade de vida desses ou daqueles. Alí, o leão fez um auto-julgamento a fim de tornar-se destaque, digno do respeito dos demais, poderia ser associado ao pai de família que após perder o controle sobre as atitudes dos seus filhos, assume sua falta de habilidade que lhe foi, de fato, roubada.

          A raposa, habilidosa e interesseira, diz o pai que não se sinta responsável pelo prejuízo registrado nas relações de comando entre pais e filhos. Talvez seja culpa dos professores que não conseguem educá-los, porque não sabem o suficiente, porque as turmas são muito grandes, porque os outros alunos são mal educados, o que resulta nessas crianças rebeldes que afrontam os pais. Os professores precisam ser mais amigos das crianças para que elas voltem para casa mais amáveis... O tigre, lá na fábula, refletindo sobre o seu comportamento, acreditou ser responsável pelo que sobrou com a tal peste. Aqui, em vez de se acusar o tigre, deve-se focar a tecnologia, pelas crises sociais, pelas doenças, pelo isolamento de pessoas, pela solidão que cada um assume por estar diante de uma tela de celular é capaz de tudo e de nada.

         Como a pandemia do Sars-covid, a peste que reteve crianças em casa e pais trabalhando precisa ser punida pelo grande estrago causado nas relações familiares, principalmente envolvendo crianças na sua fase mais carente de orientações e lições que os levem ao conhecimento, à formação, à liberdade para grandes conquistas e realizações. se coloca como responsável pelo insucesso. Entre os animais da nossa fábula, a cada estágio que o julgamento estava, novos responsáveis eram apontados.

        Aqui, no plano dos racionais talvez não seja o caso de se encontrar esses ou aquele responsável pelo quadro atual toda a sociedade exposta. É chegado o momento de aceto, de ajuste, de pagamento de uma fatura que se desdobra em juros altos que comprometerão todas e quaisquer possibilidades de reconquista de valores, de padrões, de normas que durante séculos nortearam todas as demais gerações que por vezes, enfrentaram tantas outras guerras, conflitos, pestes e modismos.

         Nada está no lugar que deveria estar, mas que precisa se reorganizar em nome de uma espécie a quem foi dado o comando das demais. O mundo clama por ajustes de condutas, de valores, de ensinamentos e saberes que precisam ser cristalizados em conhecimento. Contabilizando os fatos que aos poucos foram sendo incorporados à vida, principalmente nos grandes centros urbanos, vale destacar os impactos das redes sociais e do uso descontrolado das tecnologias digitais e seus desdobramentos é a grande encruzilhada em que nos encontramos: seguir para o lado que se apresenta como mais fácil para se obter o sucesso, ou perscrutar detalhadamente a outra possibilidade que, mesmo se apresentando como mais difícil venha a ser a mais segura.

       Os pais apontam os estudos e o trabalho como caminhos seguros que fizeram história; os influencer digitais, sem grandes esforços, mostram que mais importante do que ser é parecer ser. Os professores indicam os melhores conteúdos, examinam os estudos mais eficientes para que o aprendizado se concretize em quantidade e qualidade, em nome de uma escolarização equilibrada, de uma educação eficaz.  A escola, a fim de cumprir o que diz a lei vai, muitas vezes, além de seus deveres no papal de acolher em seu seio, detentores  do saber e detentores do aprender em um mesmo ambiente que, devidos aos percalços já mencionados como o não querer aprender, porque brincar é melhor; porque “zoar” é mais fácil e mais moderno; porque enfrentar é mais prático que obedecer, porque desobedecer rende mais crédito entre os amigos, porque ser “malandro”, esperto faz mais sucesso... porque o mundo está de “pernas para o ar”.

         Retomando a fábula dos animais diante da peste, a nossa realidade não nos deixa distante de um conflito: reunir o que restou da criança que era o seu filho antes ele ser absorvido pelo celular; o que restou da sua relação, enquanto pais, com os seus filhos que cresceram; DIALOGAR e alcançar a compreensão necessária; enquanto professor, cabe LIDERAR o processo enquanto protagonistas de precisam se harmonizar em nome do conhecimento. Enquanto escola é a oportunidade de se dar AUTONOMIA a professores e alunos para agirem com responsabilidade e critérios, cada um como agente de si mesmo, em nome de todos.

  • Sebastião Maciel Costa

 

 

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