Tratamento Da Fibrilação Atrial

Por Dalmo Antonio Ribeiro Moreira | 12/09/2006 | Saúde

Provavelmente a maior dificuldade no tratamento da fibrilação atrial não está relacionada ao restabelecimento do ritmo sinusal, visto que o mesmo pode ser obtido em cerca de 85% dos casos por meio da cardioversão elétrica. A manutenção do ritmo cardíaco normal, posterior a cardioversão é, sem dúvida, o  principal desafio. Vários fatores colaboram para esse fato. Inicialmente, nem sempre os mecanismos que geram a fibrilação atrial são identificados. Se o fossem, com muita probabilidade sua remoção preveniria as recorrências. Sabe-se, por exemplo, que 30% dos pacientes com fibrilação atrial crônica associada a estenose valvar mitral restabelecem o ritmo sinusal após a correção cirúrgica da lesão valvar. Em pacientes com história de hipertireoidismo, o retorno ao estado de eutireoidismo reduz o risco de recorrências da arritmia.

Em segundo lugar, quando os pacientes são identificados como portadores de fibrilação atrial, na grande maioria das vezes sua duração é desconhecida. Esse aspecto se reveste da mais alta importância porque, quanto mais longa é a história da arritmia, maiores deverão ser as alterações estruturais e eletrofisiológicas do tecido atrial que tendem a mantê-la e aumentar as chances de recorrência. Estudos experimentais demonstram que a fibrilação atrial persistente perpetua a fibrilação atrial, e a interrupção das crises pode ser um fator fundamental para impedir que aquelas modificações teciduais ocorram.

Em terceiro lugar é importante salientar que os mecanismos de origem da fibrilação atrial diferem de acordo com a causa ou o tipo de cardiopatia subjacente e, dessa forma, seria pouco provável que uma forma de tratamento para uma causa específica tenha o mesmo sucesso para outra. Esse fato pode ser exemplificado pelos casos de fibrilação atrial idiopática que ocorre em indivíduos com coração normal. A utilização de beta-bloqueadores deve ser evitada nos indivíduos com fibrilação atrial mediada pelo vago (forma conhecida como parasimpaticotônica) sob o risco de causar um maior desequilíbrio autonômico e intensificar a recorrência das crises. O mesmo raciocínio é válido quando se utilizam fármacos parasimpaticolíticos em fibrilação atrial desencadeada pela hiperatividade simpática.

A evolução do conhecimento relacionada a fibrilação atrial nos últimos anos, permitiu que o seu tratamento deixasse de ser empírico, o que sem dúvida aumenta as probabilidades de sucesso terapêutico. Muitas infomações já disponíveis no campo experimental passam já a serem empregadas na clínica, enquanto outras, em fase inicial de investigação, aguardam confirmação e em breve poderão ser incoporadas ao armamentário terapêutico. As ações de fármacos antiarrítmicos, apesar de bem conhecidas do ponto de vista eletrofisiológico, nem sempre se associam ao sucesso do tratamento e por essa razão a terapia auxiliar desempenhará uma função importante. Nessa apresentação será discutido o papel relevante da terapêutica não antiarrímica na prevenção de recorrências da fibrilação atrial.

Individualização do tratamento. A primeira etapa.

Parece que a primeira etapa no sucesso terapêutico de pacientes com fibrilação atrial deva ser a identificação do tipo de cardiopatia ou da causa extra-cardíaca que está associada à fibrilação atrial. Não é justo admitir que a fibrilação atrial originada em pacientes com insuficiência cardíaca deva ter o mesmo mecanismo de origem e manutenção do que aquela que ocorre em indivíduos com síndrome de Wolff-Parkinson-White, por exemplo. No primeiro caso, estudos experimentais demonstram que a fibrose atrial desempenha um papel relevante na origem da arritmia. Além disso, a distensão atrial causada pela hipervolemia pode deflagrar ectopias atriais que instabilizam os átrios. Na síndrome de pré-excitação, ectopias surgidas durante episódios de taquicardia por reentrada atrioventricular devem desencadear a fibrilação atrial e a fibrose não deve estar presente.

Os mecanismos portanto, diferem e na medida do possível devem ser identificados para individualizar o tratamento. Por meio desse conhecimento poder-se-á de maneira mais racional escolher a terapia coadjuvante mais apropriada pra facilitar a ação dos antiarrítmicos. A seguir serão apresentadas as informações de maior destaque na terapia auxiliar da fibrilação atrial conhecida na atualidade.

O papel dos íons cálcio na fibrilação atrial

Estudos experimentais demonstraram que animais de laboratório submetidos a períodos variáveis de estimualção atrial rápida contínua, desenvolviam episódios cada vez mais duradouros a medida que se prolongava a estimualçaão atrial. Do ponto de vista eletrofisiológico, demonstrou-se que havia gradualmente redução da duração do período refratário efetivo atrial, prolongamento do tempo de condução atrial, além de reversão à adaptação do período refratário atrial a diferentes freqüências de estimulação, caracterizando assim, ao que se chamou de remodelamento elétrico atrial. Além de alterações elétricas, modificações estruturais importantes do miócito foram também observadas à microscopia óptica e eletrônica. Tais alaterações eram as responsáveis pela manutenção da forma crônica da fibrilação atrial. Estas observações foram confirmadas na clínica quando pacientes com fibrilação atrial paroxística eram avaliados durante estudo eletrofisiológico.

Parece que um dos principais resposnsáveis pelas modificações eletrofisológicas do míócito é o acúmulo intra-celular de íons cálcio. Numa fase inicial, o retardo na recaptura desse íon para o retícuclo sarcoplasmático durante taquicardias rápidas aumenta seu acúmulo no sarcomêro, reduzindo a duração do período refratário atrial. Com a manutenção da taquicardia haveriam modificações estruturais dos canais de cálcio (do tipo L) em decorrência da deficiência de síntese protéica nesses canais. Portanto, inicialmente haveriam alterações transitórias funcionais do miócito atrial, reversíveis com o pronto restabelecimento do ritmo cardíaco normal. Em casos de fibrilação atrial de mais longa duração, embora houvesse normalização da função eletrofisiológica do miócito, o desarranjo histológico demoraria algum tempo para desaparecer, sendo esse o principal responsável pelas recorrências da arritmia após a cardioversão elétrica.

Experimentalmente demonstrou-se que o remodelamento elétrico pode ser amenizado pela administração de antagonistas dos canais de cálcio, particularmente o verapamil. Estudos clínicos comprovam os achados de laboratório, nos quais o risco de recorrências é significativamente reduzido após a cardioversão elétrica de pacientes com fibrilação atrial crônica em uso de verapamil, em comparação aos pacientes sem esse fármaco. Desse modo, é prudente que se associe um bloqueador de canal de cálcio a um antiarrítmico quando houver aumento das recorrências da arritmia após a cardioversão.

O papel da inflamação e do estresse oxidativo na gênese da fibrilação atrial

O processo inflamatório, comprovado pela presença de níveis séricos elevados de proteína C reativa, está associado ao maior risco de surgimento de fibrilação atrial paroxística, como também na manutenção da forma crônica. Essa observação foi comprovada através de estudos epidemiológicos, em que ficou nitidamente demonstrada a associação de níveis séricos elevados de proteína C reativa e risco maior de fibrilação atrial (Anderson JL et al. Am J Cardiol 2004; 94:1255).

Estudo clínico recente demonstrou que a administração prévia de vitamina C a pacientes que foram submetidos a cardioversão elétrica, reduziu significativamente a incidência de recorrências em comparação ao grupo de pacientes que não fez uso desse agente. Um dado interessante, concomitantemente ao decrécimo das recorrências foi constatada também, diminuição significativa dos índices de inflamação, tais como os níveis de proteína C reativa, fibrinogênio plasmático e ferritina (Korantzopoulos P et al. Int J Cardiol, 2005; 102:321).

Ainda no que tange o processo inflamatório, a utilização de estatinas está associada a diminuição de recorrências de fibrilação atrial, graças a sua ação antio-oxidante e anti-inflamatória. Estudos experimentais que utilizaram o modelo de estimulação atrial rápida para o desenvolvimento de um substrato arritmogênico atrial em cães, evidenciaram que a sinvastatina previne o surgimento de remodelamento elétrico atrial, em comparação aos cães que não utilizaram a estatina. As diferenças estiveram relacionadas, principalmente, com o período refratário atrial e o tempo de condução atrial nos dois grupos. De maneira ainda não clara, a vitamina C não apresentou qualquer influência nos resultados indicando que esse agente deve atuar em outro modelo experimental que não esse empregado nesse estudo (Shiroshita-Takeshita A, et al. Circulation 2004; 110:2313).

Em outro estudo experimental, a atorvastatina empregada no modelo de pericardite química estéril em cães, reduz o risco de manutenção de fibrilação atrial através da inibição do processo inflamatório próprio da pericardite artificialmente induzida. A melhora dos parâmetros eletrofisiológicos atriais normalmente alteradas no processo de reprodução de fibrilação atrial (diminuição do período refratário atrial, tempo de condução atrial e a indutibilidade da arritmia) ocorreu concomitantemente à redução dos níveis séricos de proteína C reativa (Kumagai K et al. Cardiovasc Res 2004; 62:105). Esses achados sugerem que uma classe de pacientes portadores de fibrilação atrial, pode se beneficiar da utilização de estatinas como terapia coadjuvante aos antiarrítmicos.

O papel da fibrose atrial na gênese e manutenção da fibrilação atrial

Em animais com insuficiência cardíaca, desencadeada pela estimulação ventricular rápida por longos períodos, aumenta o risco de surgimento de fibrilação atrial espontânea ou induzida artificialmente. A análise histológica atrial comprova a presença de áreas de fibrose  que são responsáveis pela condução intra-atrial prolongada. Esse achado difere do modelo experimental que utiliza a estimulação atrial rápida como forma de reprodução artificial de fibrilação atrial, cuja alteração que mais se destaca é a redução da duração do período refratário efetivo atrial. Assim pode-se perceber que modelos experimentais diferentes, que devem apresentar o seu correspondente clínico, originam fibrilações atriais de mecanismos distintos e, por conseguinte, devem ter formas de tratamento também distintas.

Na clínica, a fibrose atrial pode estar presente em pacientes com miocardiopatia ou hipertensão arterial. Estudos experimentais e clínicos demonstram os benefícios do emprego de inibidores da enzima de conversão, bem como dos bloqueadores de receptores de angiotensina, na redução da fibrose tecidual e também do processo inflamatório atrial. Sub-análises de grandes estudos clínicos de pacientes com insuficiência cardíaca, demonstraram inequivocamente a melhor evolução dessa população no que se refere ao risco de recorrências de fibrilação atrial. Essa observação foi confirmada por estudos específicos que avaliaram os efeitos dessa classe de fármacos (Lombardi F, Terranova P. Curr Méd Chem 2005; 12:1331). Os estudos demonstraram que a utilização de enalapril (Vermes E et al. Circulation 2003; 107:2926), irbesartan (Madrid AH et al. Circulation 2002; 106:331)  e mais recentemente o valsartam (Maggioni AP et al. Am Heart J 2005; 149:548) quando empregados com antiarrítmicos, estão associados a melhora clínica dos pacientes com redução significativa das crises de fibrilação atrial.

Esses achados confirmam que o tratamento da fibrilação atrial não deve ficar restrito somente ao antiarrítmico, reforçando a idéia de que a fibrilação atrial é uma arritmia de causa multifatorial. A medicação coadjuvante exerce papel importante e é possível que as falhas do tratamento estão relacionadas a não utilização racional desses agentes. Além disso, as influências sistêmicas, não cardíacas, que facilitam o surgimento de fibrilação atrial, podem ser abordadas com essa terapia auxiliar, que juntamente com os antiarrítmicos, deverão conferir  maior estabilidade elétrica ao tecido atrial e redução das recorrências.