Transferência: do setting analítico a permeabilidade do cotidiano

Por Pietro Coelho Scola | 18/11/2020 | Psicologia

Pietro Scola – 2020

pietro_scola@hotmail.com

 

Transferência: do setting analítico a permeabilidade do cotidiano

 

O conceito de transferência em psicanálise tem suas bases nas percepções clínicas em que Freud, no final do século XIX, começa a suspeitar que os sentidos das interações entre os papéis de analista e analisando é sempre deslocado. Com essa premissa, cabe o questionamento: é possível que outras esferas da vivência relacional do sujeito sejam também pré-dispostas a esses deslocamentos e reproduções de papéis que não tenham ligação direta com o objeto de interação em si?

O objetivo desse texto é abordar como as relações humanas começam (e muitas vezes se prolongam ad aeternum) calcadas em um eixo transferencial, suportando uma projeção massiva do Eu para o objeto/outro. Para isso, inicialmente serão explanados os conceitos de transferência segundo os psicanalistas clássicos, como Freud, que provém de uma ótica predominantemente clínica, para em seguida vincular com autores contemporâneos que possuem um prognóstico da transferência abrangido às esferas do social, cultural; enfim, do cotidiano.

Freud, no início do seu tratamento com neuróticos, constatou que um dos objetivos da análise era trazer os conteúdos conflitantes que habitavam no inconsciente para o consciente, visando além de uma catexia a construção de uma arena na qual o paciente tivesse maior flexibilidade e criatividade no período de construção de sintomas e/ou defesas psíquicas.

Vencendo parcialmente esse obstáculo das repressões frequentemente encontradas em neuróticos de sua época, Freud se depara com um “segundo problema”:

"... após pequeno lapso de tempo, não podemos deixar de constatar que esses pacientes se comportam de maneira muito peculiar com relação a nós. Acreditávamos, para dizer a verdade, que havíamos colocado em termos racionais, completamente, a situação existente entre nós e os pacientes, de modo que esta pudesse ser visualizada de imediato como sefora uma soma aritmética; não obstante, a despeito de tudo isso, algo parece infiltrar-se furtivamente, algo que não foi levado em conta em nossa soma. Essa novidade inesperada assume muitas formas (...) constatamos, pois, que o paciente, que deveria não desejar outra coisa senão encontrar uma saída para seus penosos conflitos, desenvolve especial interesse pela pessoa do médico." (1916-1917 a, p.512)

Quando o paciente demonstra se interessar especialmente pelas características do analista, preferências, posições políticas, escolhas de lazer, atribuindo as vezes maior importância a esses elementos do que para suas próprias questões, tem-se a grande probabilidade de desviar de suas próprias questões, de sua própria doença. Estamos diante então de um fenômeno transferencial.

Freud tratou em Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise (Freud, 1912b) e em Sobre o Início do Tratamento (Freud, 1913) o conceito de setting analítico, que inclui atenção flutuante, uma escuta diferenciada que caracteriza a posição de analista em detrimento de uma conversa banal com um amigo, por exemplo, abstinência de julgamento e moralidade e neutralidade. Porém, “o setting nada mais é do que um conjunto de derivações dessa posição interna do analista, que dá consistência ao tratamento.” (Santos, 1994. p.16), ou seja, o fundamental é a posição simbólica na qual o analista se encontra no decorrer do processo de análise, a posição que ele encarna na transferência.

Via de regra, no início do tratamento é nítido que ocorre uma “transferência positiva”, que impulsiona o vínculo e processo analítico. Majoritariamente emerge um vínculo agradável em que o paciente se mostra afável com a tarefa de associação livre, fala e escuta atentivamente o analista, não falta as sessões e mostra-se entusiasmado. Além da relação cordial, muitos pacientes relatam estar melhorando muito com seus sintomas, animados com as mudanças e fazendo verdadeiras revoluções em suas vidas.

Segundo Santos (1994) “Esta relação amistosa, entretanto, não pendura indefinitivamente. Logo surgem dificuldades no tratamento, que se revelam de diversas maneiras, refletindo-se na impossibilidade de o paciente continuar seguindo a regra fundamental. Como reconhecer esta resistência ao tratamento? A resposta é: toda vez que aparecem dificuldades de comunicar os pensamentos (isto é, torná-los públicos), interrompendo o processo associativo. Muitas vezes isto surge com a constatação do paciente de nada mais lhe ocorrer à mente, ou de não mais estar interessado no trabalho. De um modo geral, aparece uma certa negligência em relação às instruções inicialmente dadas (...) Sempre que nos deparamos com um paciente que se comporta como se estivesse fora do tratamento, estamos diante de uma resistência. Nestes casos, a situação precisa ser esclarecida, do contrário o próprio processo analítico estará em risco.” (p.17)

Neste ponto nos deparamos com o que poderíamos chamar de transferência negativa (pois o bom tempo não pode durar para sempre) (Freud, 1917), essas dificuldades provem do deslocamento pulsional do paciente de encontro com o analista. Na clínica isso se repete em cada novo caso, o que nos faz pensar que o analista, enquanto uma função simbólica de tela em branco, funciona como um receptáculo para qualquer afeto que emerja do paciente em um determinado setting. Em outras palavras, esses afetos já se encontravam latentes no paciente de forma inconsciente e com a oportunidade oferecida pelo tratamento eles simplesmente vêm à tona e são desdobrados.

No texto de Freud (1912) a lógica implícita é de que o indivíduo, de forma inconsciente, tende a repetir as escolhas de objetos amorosos, mas não apenas isso, ele repete especialmente o tipo de vínculo que seja compatível com seu sintoma, esforçando-se ao máximo para transformar o objeto em alvo adaptável de sua respectiva pulsão, se necessário.

Só é possível entender porque as escolhas objetais se repetem, se pensarmos na questão da satisfação libidinal, ou seja, naquilo que é inerente das relações primárias e da satisfação pulsional, pois sempre há algo que se inscreve como simbolização em decorrência do recalcamento primordial. Considerando que o inconsciente, por mais fraco que pareça, insiste incessantemente, aquilo que no campo pulsional não foi satisfeito e ficou reprimido há de retornar e exigir satisfação. É por isso que na condição analítica o paciente atualiza as relações do passado buscando sanar suas demandas afetivas (positivas ou negativas) de outrora na figura do analista.

“Prefiro deixar a noção de transferência enquanto totalidade empírica, salientando que é polivalente e que envolve diversos registros: o simbólico, o imaginário e o real.” Lacan, 1988, pp.112-113)

Segundo Bruce Fink (2017), essas projeções ou transposições do Eu para outro/objeto podem ter diversas e diferentes formas:

1.A nível perceptivo, ou seja, tudo aquilo que remete aos cinco sentidos (visão, audição, olfato, tato, paladar). Alguns aspectos do analista ou da outra pessoa faz com que o sujeito se recorde de características de uma figura fundamentalmente importante do seu passado. A cor dos olhos, corte de cabelo, a pressão das mãos ao se cumprimentarem, etc. Até mesmo o paladar se inclui nessa operação, como por exemplo o ato do paciente pegar uma bala no pote que se encontra na recepção e dizer “gosto muito dessas balas, comia bastante quando estava no ensino fundamental”

 

2. De maneira semiótica: essas características são transferenciais de maneira codificada. Alguma característica do analista ou da pessoa lembram o sujeito de uma posição simbólica, como por exemplo a idade, o conjunto de vestimentas e acessórios usados, sugerindo uma determinada classe social ou estilo de vida (jeito de “playboy”, desgrenhado, formal, etc.). O espectro aqui envolve também os sinais que o outro emite, como por exemplo localização do consultório/casa, decoração e grupos linguísticos específicos.

 

 

3. Expressão afetiva: de maneira sutil, o tom de voz que o analista utiliza certamente suscita no paciente/sujeito alguma lembrança. Ou ainda, quando o paciente encontra o analista agitado e atarefado no seu ambiente de trabalho, por exemplo. De outro lado, todos esses elementos não precisam ser necessariamente expressados pelo analista para terem um eixo transferencial afetivo, pois considerando que o paciente/sujeito irá projetar alguma referência do seu passado na outra pessoa, qualquer movimento ou oscilação corporal ou vocal que o analista tiver vai estimular uma dinâmica de “fisgar” referências afetivas do passado daquele sujeito.

 

“Mesmo se assumirmos que devemos considerar a transferência como um produto da condição analítica, podemos dizer que essa condição não poderia criar um fenômeno do zero e que, para produzi-la, deve haver, fora da condição analítica, possibilidades preexistentes, em que a condição analítica combine com aquele que talvez seja o único caminho. “(Lacan, 1978, pp. 124-125)

Neste ponto, é interessante observar como a transferência aparece constantemente nos movimentos sociais do próprio cotidiano. A maioria das pessoas já teve experiências de gostar ou odiar alguém que acabaram de conhecer, e frequentemente justificam esses sentimentos abruptos dizendo que se tratam de “energias” ou de que a pessoa tem um “ar” positivo ou negativo. Entretanto, olhando através de uma ótica psicanalítica, o mais provável é que esse sujeito simplesmente tenha se sentido atraído ou repelido pela outra pessoa devido a características transferenciais que ressoaram com outras experiências que ela teve no passado (profissão, voz, maneira de falar, etc.). Tais projeções induzem os sujeitos a fazerem coisas impulsivas, como confiar cegamente em outra pessoa ou perder boas oportunidades sociais devido a “não ir com a cara” de determinada pessoa.

“De fato, apaixonar-se e a experiência de estar apaixonado devem-se muito à transferência: quanto mais intensamente alguém está amando, mais parece ser um ‘caso de identidade equivocada’, como aquela encontrada na transferência que está sendo tratada” (Fink, 2017. p.222).

Nos estudos de histeria, Freud e Breuer (1893-1895/1955) denominavam essas paixões intensas, repentinas e injustificáveis de “falsa conexão” (p. 302), pois frequentemente acontecem associações entre a figura do antigo e do atual amor. É verdade que as mais apaixonadas relações normalmente envolvem um desconhecimento total do outro, uma projeção extremamente massiva de todas as qualidades que gostaríamos que houvesse em alguém que conhecemos muito pouco. De acordo com a experiência clínica, na maioria dos casos o período de apaixonamento dura até, em média, cinco meses, após isso o sujeito se defronta com o real do outro sujeito, não mais catalisando as projeções amorosas e perfeitas de antes, fazendo com que surja uma ramificação na relação: aprende-se a amar esse sujeito real, ou o abandona em busca de uma outra projeção? O objeto idealizado cai do pedestal, fazendo vir à tona toda uma racionalização que anteriormente se encontrava abafada pela projeção massiva transferencial.

“Similarmente, a transferência sempre tem um papel considerável nas relações de estudantes e professores. Os estudantes logo assumem que seus professores têm muito conhecimento e apaixonam­ -se por eles, para só depois reconhecer os limites de seus conhecimentos. No início eles os consideram virtualmente oniscientes, que talvez seja o que pensavam de seus pais quando crianças; e exatamente como no caso dos pais, cujos limites de conhecimento eles reconheceram, no devido tempo perceberão os limites de conhecimento de seus professores, muitas vezes tornando-se uma boa ideia ficar menos apaixonados por eles” (Fink, 2017. p.222).

Em conclusão, o fenômeno transferencial pertence a todas as esferas da vivência da pessoa, não sendo de forma alguma exclusividade do setting analítico. A importância da análise nesse contexto é justamente auxiliar o sujeito no processo de conhecimento dos sintomas transferenciais inconscientes, pois como dizia Lacan, o final da análise é habilitar o sujeito a lidar com seus próprios sintomas.

 

Referências bibliográficas

Fink, B. (2017) Fundamentos da Técnica Psicanalítica. São Paulo: Blucher

Freud, S. (1912b) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, 145-159. (Edição Standard Brasileira, Vol. XII.

Freud, S. (1913) Sobre o início do tratamento (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I). Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, pp. 161-187. (Edição Standard Brasileira, Vol. XII.

Freud, S. (1916-1917a) Conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXVII: Transferencia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, 503-521. (Edição Standard Brasileira, Vol XVI.

Freud, S. (1916-1917b) Conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXVIII: Terapia analítica. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, 523-539. (Edição Standard Brasileira, Vol. XVI.

Freud, S., & Breuer, J. (1955). Studies on hysteria. In J. Strachey (Ed. & Trans.), The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (Vol. 2, pp. 1-307). London: Hogarth. (Original published 1893-1 895).

Lacan, J. (1978). The four fundamental concepts of psychoanalysis (1964) (J. -A. Miller, Ed., & A. Sheridan, Trans.). New York & London: Norton.

Lacan, J. (1988). The seminar of Jacques Lacan, Book I: Freud's papers on technique (1953-1954) O. -A. Miller, Ed., & J. Forrester, Trans.). New York & London: Norton.

Santos, Manoel Antônio dos. (1994). A transferência na clínica psicanalística: a abordagem freudiana. Temas em Psicologia, 2(2), 13-27. Recuperado em 04 de novembro de 2020, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X1994000200003&lng=pt&tlng=pt.

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