Transamérica: identidade sexual e o papel da família na representação cinematográfica
Por Alba Regina da Silva Azevedo | 20/04/2012 | SociedadeTRANSAMÉRICA: IDENTIDADE SEXUAL E O PAPEL DA FAMÍLIA NA REPRESENTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA
Alba Regina da Silva Azevedo[1]
A questão da identidade, bem como a jornada de um personagem em busca de sua verdadeira essência é tema comum em várias e grandes produções cinematográficas. Porém, não é corriqueiro encontrarmos um filme que analise questões de busca interior relacionando-as diretamente à temática do transgenderismo. Este é o caso do filme Transamérica, que tem como personagem principal, Bree, uma transexual prestes a realizar a tão sonhada cirurgia de mudança de sexo. Bree sofre de disforia de gênero, um distúrbio causado pela inadequação entre o aspecto físico e a personalidade. Ela nasceu mulher, sempre se sentiu mulher, mas, esteve por toda a sua vida presa num corpo de homem.
Antes de tratarmos especificamente de nossa personagem, faz-se necessário elucidar o tema transgênero em suas determinadas definições. O termo transgênero se refere à condição na qual a expressão de gênero não corresponde ao papel social atribuído a determinado sujeito no momento de seu nascimento. Em outras palavras, são pessoas que não se reconhecem como homens ou como mulheres e fazem algum tipo de intervenção no seu corpo para mudar a sua aparência. Essa designação ainda se divide em quatro principais subgêneros: travestis, transexuais, transformistas e drag queens. Os travestis são aqueles que fazem intervenções no corpo através de roupas, maquiagem, cabelos, por vezes se utilizam de medicamentos, hormônios, silicone para ter uma aparência contrária a original, porém, se recusam a fazer a cirurgia de adequação de sexo, conhecida também como cirurgia de transgenitalização. A maioria deles opta por permanecer com o órgão sexual de nascença, por considerarem a cirurgia uma violência. Outros, porém, afirmam precisar profissionalmente do mesmo, pois trabalham com o sexo, e retirar uma parte de si seria também retirar uma forma de prazer. Já para os transexuais, além da maquiagem, das roupas e dos hormônios, a cirurgia se faz necessária. Para eles, o órgão sexual de nascença é totalmente descartável. Eles afirmam ter nascido num corpo errado e não se sentirão completos enquanto sua aparência não estiver de acordo com a sua identidade, com a sua mente. Os transformistas têm a possibilidade de serem homens de dia e mulheres à noite, ou vice e versa. Suas intervenções corporais para a troca de gênero dão-se de maneira mais sutil, através de maquiagem, roupas e a absorção de trejeitos. A intenção é ocultar totalmente o gênero de origem e parecer ao máximo o outro. Para os drag queens, a intervenção se dá da mesma forma, porém, bem mais caricaturada. Eles também se utilizam apenas de maquiagem, roupas e trejeitos, no entanto, de maneira sempre exagerada. É possível notar neles detalhes que não disfarçam seu gênero de origem, como pelos a mostra, por exemplo.
Após essas definições, verifica-se que é muito comum as pessoas se confundirem quanto às nomenclaturas. Por falta de informação, devido ao assunto ser considerado ainda tabu, o tema não é tratado com a clareza necessária, visto que é natural encontrarmos pessoas que buscam adequação quanto ao gênero e seu papel exigido pela sociedade. Ser transgênero não significa, portanto, simplesmente imitar mulheres ou homens e sim aceitar ou não o destino identitário que lhe é atribuído no momento de nascença. É possível ver neles a possibilidade de criar e recriar o corpo a partir de suas necessidades e do que se sente.
Voltando para a nossa personagem, Bree, vemos claramente que ela é uma transexual. Bree é uma mulher que, por acaso, tem um pênis. Ela é sozinha, pois sua família nunca a apoiou em sua decisão. Bree enfrenta um longo caminho até conseguir aceitar-se a si própria. Toma hormônios, modifica a voz, usa roupas femininas, maquiagem, penteado, porém, o órgão sexual faz com que ela todos os dias entre em contato com o seu passado, quando ainda era Stanley. Após várias sessões de terapia e conversas com psicólogos, ela finalmente tem o aval dos médicos para realizar a tão sonhada cirurgia, porém, uma semana antes do seu sonho se tornar real, ela recebe uma notícia que irá levá-la a uma viagem pelo seu passado, presente e definir o seu futuro: Bree recebe uma ligação de um reformatório, e descobre que tem um filho de 17 anos. Ela sempre sentiu-se mulher, porém, em sua juventude, na época de faculdade, chegou a ter um relacionamento rápido com uma outra mulher, que ela diz ter sido algo tão lésbico que ela mesma não considera um relacionamento. Bree, a princípio que ignorar o fato, mas, sua terapeuta ordena que ela vá ao encontro do filho, ou não lhe dará autorização para a realização da cirurgia. Prestes a se tornar mulher por completo, ela se depara com um filho, tendo que assumir, de repente a figura de pai de um menino. A contragosto, ela vai ao encontro do filho e logo percebe que o rapaz, apesar de ter apenas dezessete anos, tem um passado tão complicado quanto o dela. Sem revelar a verdade ao rapaz, ela parte com ele em uma viagem que nos mostra as contradições morais na sociedade e na família. O rapaz, Tobey, acreditando que sua benfeitora é uma mulher, cristã, missionária de uma igreja e de boa família, aceita sua carona e parte com ela numa viagem cheia de descobertas para ele também. Tobey é viciado em drogas e sonha em ir para Hollywood fazer carreira em filmes pornográficos. Bree, por todo o tempo, tenta fazê-lo mudar de postura e, através de suas várias discussões, os dois se tornam cada vez mais íntimos, estreitando suas relações. No entanto, Bree não consegue, por nenhum momento, reconhecer-se como homem, logo, nunca assumiria a identidade de pai, mas, vemos vagarosamente, seu instinto de mãe aflorar.
É interessante notar que Bree, sempre que fala em seu passado, refere-se a Stanley em terceira pessoa, ao contrário do que pede sua terapeuta, para quem “essa é uma parte do corpo que não dá para ser descartada”. A terapeuta quer garantir que Bree estará bem consigo mesma e em paz com o seu passado para poder fazer a cirurgia e abandonar de vez o estigma de Stanley. Ela precisa freqüentar um psiquiatra até receber dele e de toda uma junta a aprovação para a realização da cirurgia. Em sua última entrevista, transcrita a seguir, que acontece ainda no início do filme, podemos verificar um pouco de sua personalidade:
(psiquiatra) Considera-se uma pessoa feliz?
(Bree) Sim. Não. Quer dizer... vou ser.
(psiquiatra) Srta. Osborne, não existe resposta certa aqui.
(Bree) Sim... sou muito feliz.
(psiquiatra) Como poderei ajudá-la, se não for sincera comigo?
(Bree) Assinando a autorização, por favor.
(psiquiatra) A Associação Psiquiátrica considera disforia sexual uma doença mental grave.
(Bree) Após a cirurgia, nenhum ginecologista conseguirá detectar algo incomum em mim. Vou ser uma mulher. Não é estranho que uma cirurgia plástica cure uma doença mental?
(psiquiatra) O que sente em relação ao seu pênis?
(Bree) Tenho nojo. Nem gosto de olhar para ele.
(psiquiatra) E quanto aos amigos?
(Bree) Não gostam também.
(psiquiatra) Não, quis dizer, tem o apoio dos amigos?
(Bree) Tenho muito apoio de minha terapeuta.
(psiquiatra) E sua família?
(Bree) Minha família morreu.
Desde o início, vemos em Bree uma certa tristeza. Falta, nela, alguma coisa. Ela se sente tão incompleta que isso transborda em sua personalidade. Ela é sempre discreta. Não suporta ser “reconhecida”, como ocorre em um determinado momento do filme, em uma lanchonete, quando uma criança lhe pergunta se ela é menina ou menino. Bree se constrange e não responde. Na conversa acima, percebemos que ela é solitária. Quando se refere a amigos, menciona apenas sua terapeuta, com quem se encontra regularmente. Bree trabalha numa lanchonete mas, sempre muito discreta, não abre espaço para que ninguém se aproxime. Na verdade, não sabemos se isso parte mesmo dela, se já é uma defesa de sua parte, ou se as pessoas também temem se aproximar. No decorrer do filme, nos deparamos também com sua família, embora ela se considere órfã. Bree não é uma pessoa engajada em qualquer luta social, embora possamos perceber nela uma pessoa inteligente e atenta ao seu mundo. Ela não se reconhece dentro de um grupo denominado transexual, mas uma mulher, simplesmente. E é pelo direito de ser mulher que ela vai lutar por todo o filme.
Ao longo de toda a sua vida, nossa personagem teve que administrar vários papéis, mas há apenas uma identidade que a faz sentir-se bem, o único papel social que ela quer assumir é o de mulher. Com o tempo Bree vai até perceber que sua lutar para torna-se mulher para ela mesma e aos olhos de todo o mundo é menor do que o desafio de tornar-se mãe. Na verdade, ela vai entender que não é possível, na nossa sociedade atual, reservar-se a um papel apenas.
Estamos diante de novas possibilidades de entender o homem em seu mundo. A Identidade como um conceito rígido, de noções culturais imutáveis vem perdendo cada vez mais sua força, em detrimento do desenvolvimento e do reconhecimento das sociedades modernas. Novas teorias culturais desempenham o papel de questionar o conceito de Identidade Cultural como sendo um conjunto de valores fixos definidores de um indivíduo pertencente a uma coletividade. Por muito tempo, a idéia de uma identidade cultural não foi problematizada no âmbito das ciências humanas, porém, com o avanço das transformações econômicas e tecnológicas, alguns teóricos perceberam o perigo iminente para alguns grupos sociais que não participavam, devidamente, desse processo de globalização.
Nas sociedades modernas, não mais apenas a dicotomia rico / pobre; preto / branco tem relevância, mas o sujeito, que hoje pode ser visto de várias maneiras dentro de um mesmo ser. Stuart Hall aborda essas mudanças nos conceitos de identidade do sujeito quando avalia a possibilidade de estarmos vivendo uma crise de identidade na modernidade tardia. Hall distingue três concepções diferentes de identidade: o sujeito do Iluminismo; o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. Na primeira, “o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa” (HALL, p.11). Era uma concepção totalmente individualista do ser, sempre descrito como masculino. A noção de um sujeito sociológico já reflete a complexidade do mundo moderno, identificando o sujeito não mais como um ser autônomo, mas formado a partir da mediação de outros valores e de outras pessoas. Ou seja, uma concepção formada a partir da interação entre o “eu” e a sociedade. Com a modernidade, os teóricos perceberam que a identidade do sujeito cada vez mais se fragmentava. O processo de identificação do próprio sujeito tornou-se efêmero e variável.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. (...) A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 1999. P.12 e 13).
A noção de identidade e papel social, bem como a busca pelo seu próprio “eu”, não é um problema restrito aos personagens do cinema. A crise de identidades está instaurada na contemporaneidade e chega a representar uma das características deste século. Na modernidade, cada pessoa pode identificar-se com mais de uma referência. A identidade é mutável, de acordo com os interesses momentâneos. Ou, podem conviver pacificamente dentro de um mesmo ser. Um sujeito pode carregar a identidade de mãe, de mulher, de rica, de brasileira. Identidade é o que se sente ser.
Em Transamérica, há uma discussão a respeito do sujeito. O filme analisado, apesar de inserido no contexto e na cultura do transgênero, não tem por objetivo a construção da identidade de um povo, ou de uma classe, ou de um determinado grupo. Ele parte de um sujeito para demonstrar um conjunto de condições sociais ao qual não se sente atrelado. O ponto central é a crise de identidade do sujeito que, segundo Hall (2002), “é provocada por mudanças globais que desestabilizam os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social”. De várias maneiras, no filme em questão, é possível notar a busca do próprio “eu”. Há a presença de um personagem em conflito consigo mesmo, que não se encaixa no local e nos moldes em que está inserido. Esse estranhamento e busca pelo conhecimento é caracterizado em muitos filmes por meio de processos de migração, pela mudança constante, que caracteriza um gênero cinematográfico: o road movie.
O road movie, ou filme de estrada, é, por definição, o gênero cinematográfico no qual a história se desenrola durante uma viagem. O gênero vem dos Estados Unidos, e a partir dos anos 60 foi incorporado a outros cinemas. Atualmente, além de ser uma tendência no cinema contemporâneo mundial, contribui na construção das narrativas delineando quase uma geografia interior de seus personagens (NOGUEIRA, 2008). Na medida em que a viagem avança, a paisagem muda, e muda também a visão de mundo e alguns traços fundamentais do caráter dos personagens em questão. Seja fugindo de suas raízes, ou indo ao encontro delas, o road movie representa uma viagem ao desconhecido e um certo refúgio (móvel) das condições sociais de opressão.
Como já foi dito, Bree e Tobey partem em uma viagem, que, para nós telespectadores, tem por objetivo o conhecimento de um pelo outro e a descoberta de suas próprias identidades. Juntos eles passam por situações adversas, como roubo, abstinência e, principalmente, o encontro com o seu passado.
Tobey há pouco tempo virara órfão de mãe. Antes, vivia com ela e com seu padrasto, que o abusava sexualmente desde menino. Após o suicídio da mãe, Tobey foge de casa, numa tentativa de fugir de seu padrasto e ir em busca de uma vida melhor que, para ele, seria a vida de um ator pornô em Hollywood. Até encontrar Bree em seu caminho, ele se sustentava fazendo programas na rua, com homens em sua maioria. Vemos, portanto, que Tobey já vivia num mundo onde o sexo é banalizado, onde a violência é comum, e o meio que ele tem de escapar é através das drogas. Já Bree, apesar de sua experiência com a intolerância da sociedade, e mesmo tendo sido expulsa do convívio familiar, não leva a vida pelo lado pessimista. Tudo o que ela quer é ser uma simples mulher, uma pessoa comum. Ela não se enveredou pelo caminho do sexo ou das drogas, ao contrário, vive discretamente, trabalha numa lanchonete para ter seu pouco dinheiro de forma digna. Tobey nunca conheceu seu pai, mas sabe que ele se chama Stanley e imagina que ele mora numa mansão com piscina em Hollywood, e esse é um dos motivos que o faz querer ir até lá. No início da viagem, o objetivo de Bree é livrar-se do filho, pois ela não quer nenhum motivo que possa atrapalhar a realização de seu sonho, que está a poucos dias de ser realizado. Sem conhecer o passado do rapaz, ela leva Tobey para sua cidade natal, e tenta deixá-lo em sua antiga casa, com o padrasto que o abusara. Ao entender o motivo pelo qual Tobey se recusava a voltar para casa, os dois continuam juntos a viagem. Após terem o carro e todos os pertences roubados por um hippie a quem deram carona, Bree se vê obrigada passar em sua antiga casa e pedir a ajuda de sua família, que não via desde sua transformação. O início dessa estadia é bem conturbado, a família ainda não aceita as decisões de Bree e faz de tudo para que ela desista da cirurgia. As relações começam a melhorar um pouco quando ela revela à família que seu acompanhante é, na verdade, seu filho. É nessa casa que Tobey fica sabendo de toda a verdade e, atordoado, foge. É fácil compreender seus motivos. Tobey já sabia que Bree era transexual, mas jamais imaginara que ela era seu pai. O rapaz logo se afeiçoou a sua tutora e, sem entender seus sentimentos, chegou a tentar um outro tipo de relação. Esse momento no filme chega a ser muito conturbador, é quando Bree lhe revela a verdade.
Logo percebemos que Bree também vem de uma família desajustada. Sua mãe é fútil, o pai oprimido, e a irmã caçula já foi internada diversas vezes para se livrar das drogas. Todos têm problemas e vemos que, apesar de sofrer a não aceitação, Bree é a pessoa mais simples de todas. Bree, sem querer, assume a identidade de mãe e assim percebe-se nela uma grande mulher, pronta para assumir uma família e cuidar impecavelmente de suas crianças.
Através do enredo desse filme podemos analisar criticamente a questão da identidade e as contradições morais na sociedade e na família, além de reconhecermos os estereótipos construídos social e culturalmente e suas influências em meio a situações cotidianas e, por vezes, desafiadoras, das quais, muitas vezes, não se pode fugir.
Referências
BARROS, José D’Assunção; NÓVOA, Jorge. Cinema-História: Teoria e Representações Sociais no Cinema. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Apicuri, 2008.
BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. 10ª Edição. São Paulo, Editora Brasiliense, 1988.
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. 4º Edição. São Paulo, Edusp, 2008.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4a ed. Rio de Janeiro: DP&A
Editora, 2000.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura um Conceito Antropológico. 22ª Edição. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
LOURO, Guacira Lopes. Currículo, gênero e sexualidade. Disponível em < http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/guacira1.html>. Acesso em: 22 set. 2011
NOGUEIRA, Amanda Mansur Custódio. O Novo Ciclo de Cinema em Pernambuco: A questão do estilo. Recife, Ed. Universitária, 2009.
[1] Alba Azevedo é pós-graduada em Cultura Pernambucana pela Faculdade Frassinetti do Recife. Email: alba.azevedo@gmail.com.