TRANÇAS E LAÇOS DE FITAS : SUBSÍDIOS PARA DISCUTIR RACISMO E IDENTIDADE EM ANA MARIA MACHADO E SYLVIANE A. DIOUF
Por jahelina almeida | 29/10/2009 | HistóriaConsiderações iniciais
A leitura nos leva por diversos caminhos, e aqui ao mundo da literatura infantil por meio de dois livros bastante sugestivos, os quais logo foram tomados como material para dar corpus a este texto. A leitura de Menina Bonita do Laço de Fita e As tranças de Bintou,das autoras Ana Maria Machado e Sylviane A. Diouf, nos seduziu por suas histórias e o que elas nos dizem. As meninas negras e as suas peripécias foram a motivação para escrever, mas com um outro olhar não tão inocente como a dos leitores para os quais estão direcionados.Observando aspectos que parecem inocentes.
Lançar mão da literatura para trabalhar com temas ou fomentar debates através dela já tem sido prática na academia. Para as linhas que seguem escolhemos dialogar com duas autoras da literatura infantil, uma já bastante conhecida e brasileira: Ana Maria Machado, e a outra que se nomeia como mistura de pai senegalês e mãe francesa não tão conhecida nossa: Sylviane A. Diouf. As obras selecionadas foram respectivamente: Menina bonita do laço de fita e As tranças de Bintou. Em ambas as obras curiosamente a personagem principal é uma menina, negra. E é através dessas personagens e das histórias que elas nos contam e fazem parte que iremos discutir o conceito de identidade e racismo partindo dos sinais, pistas que as narrativas nos fornecem.
Para tanto, se faz necessário a apresentação das obras e de suas fabricantes, ou melhor, suas artífices de textos que não trazem uma visão pronta, mas são um convite para partir da leitura para ler o mundo, parafraseando Marisa Lajolo (1996).
Iniciemos as apresentações com a brasileira Ana Maria Machado, autora de inúmeros livros publicados,
Ana Maria Machado (Rio de Janeiro, 24 de dezembro de 1941) é uma jornalista, professora, pintora e escritora brasileira.Formada em Letras, lecionou na UFRJ e PUC-RJ. Como jornalista, trabalhou por mais de dez anos na Rádio Jornal do Brasil. Foi uma das fundadoras, em 1980, da primeira livraria infantil no Brasil, a Malasartes (no Rio de Janeiro), que existe até hoje. Nessa década ela publicou mais de quarenta livros[...] em 2000, recebeu o Prêmio Hans Christian Andersen,.Hoje, exerce intensa atividade na promoção da leitura e fomento do livro.(wikpedia,2009)
E ela a mesma quem apresenta e nos fala sobre as suas impressões e porquês de ter escrito o livro Menina bonita do laço de fita, que teve sua primeira divulgação no ano de 1986, com 24 páginas ilustradas, publicado pela editora Ática na Coleção: Barquinho de Papel. Segundo Ana Maria Machado:
Este livro, para mim, é uma história que surgiu a partir de uma brincadeira que eu fazia com minha filha recém-nascida de meu segundo casamento. Seu pai, de ascendência italiana, tem a pele muito mais clara do que a minha e a de meu primeiro marido. Portanto, meus dois filhos mais velhos, Rodrigo e Pedro, são mais morenos que Luísa. Quando ela nasceu, ganhou um coelhinho branco de pelúcia. Até uns dez meses de idade, Luísa quase não tinha cabelo e eu costumava por um lacinho de fita na cabeça dela quando íamos passear, para ficar com cara de menina. Como era muito clarinha, eu brincava com ela, provocando risadas com o coelhinho que lhe fazia cócegas de leve na barriga, e perguntava (eu fazia uma voz engraçada): “Menina bonita do laço de fita, qual o segredo para ser tão branquinha?” E com outra voz, enquanto ela estava rindo, eu e seus irmãos íamos respondendo o que ia dando na telha: é por que caí no leite, porque comi arroz demais, porque me pintei com giz etc. No fim, outra voz, mais grossa dizia algo do tipo: “Não, nada disso, foi uma avó italiana que deu carne e osso para ela...” Os irmãos riam muito, ela ria, era divertido. Um dia, ouvindo isso, o pai dela (que é músico) disse que tínhamos quase pronta uma canção com essa brincadeira, ou uma história, e que eu devia escrever. http://www.anamariamachado.com/livros/livro_mes.php?codDestaque=5)
Diante do que nos coloca a autora, pode-se perceber explicitamente que não foi à preocupação de discutir questões de raça, identidade, etnia que a levou a escrever sobre uma criança negra. Até porque o momento não permitia construir tais narrativas? Ou permitia? Eram meados da década de 1980, e estes foram marcados por uma intensa participação popular. Era a retomada das grandes manifestações de massa. Multidões ganharam as ruas após muitos anos de silêncio, anos de repressão aos movimentos sociais, advindos da ditadura militar. No início da década muitas greves foram deflagradas pelo país a fora; Outro movimento de muita expressividade foi o das Diretas Já, que tomou conta do Brasil. Na política, houve um grande acontecimento encerrando a década, a primeira eleição direta para Presidente da Republica após mais de 20 anos de militarismo.
Ana Maria Machado em meio a essas experiências escreve sobre temas os mais diversos para adultos e crianças. Não tendo talvez consciência da importância de estar trabalhando com o tema afro, tendo o negro como personagens da história, trazendo a tona discussões sobre o negro e seus costumes, a exemplo de como se nasce negro ou sobre a cultura africana. Mesmo assim seu livro Menina Bonita do Laço de Fita, traz como protagonista da obra uma criança negra e segundo Cristiane Madanêlo (2009)
“Para justificar a transformação e escrever a história por sugestão do segundo marido, que ela nos revela em Contracorrente ( Machado :1999): Gostei da idéia, mas achei que o tema de uma menina loira, ou de Branca de Neve, já estava gasto demais. E nem tem nada a ver com a realidade do Brasil. Então a transformei numa pretinha, e fiz as mudanças necessárias: a tinta preta, as jabuticabas, o café, o feijão preto, etc.” (CRISTIANE MADANÊLO DE OLIVEIRA.: 2009)
Ana Maria Machado trata desse assunto de forma bem criança... Com respostas que não têm base científica nenhuma, ela deixa isso claro no próprio livro, o que ela acaba fazendo é uma brincadeira com a mistura de raças e cores que existem, e como isso é fecundo em nosso país. Devemos olhar essa narrativa como uma possibilidade também de se trabalhar o racismo e essa abordagem será realizada mais adiante.
A menina bonita do laço de fita nos traz, junto com o seu coelho branco, inúmeras formas ou explicações de como se nasce negro, mas só no fim da história nos deparamos com a frase:
[...]_Menina bonita do laço de fita qual o segredo para seres tão pretinha?
A menina não sabia e já ia inventando outra coisa, uma história de feijoada, quando a mãe dela, que era uma mulata linda e risonha resolveu se meter e disse;
_ Artes de uma avó preta que ela tinha... (Ana Maria Machado, 1986)
Essa é a frase da narrativa que escolhemos citar entre outras que poderiam ser analisadas no texto, por transparecer concisamente a questão da identidade e do racismo. De uma das respostas dadas, pela menina ao seu coelho, podemos fazer algumas interpretações; a de que as repostas ou justificativas dadas pela menina anteriormente não serviam ou eram fantasias de crianças (já que a personagem é uma criança negra) ou que os adultos sabem as respostas mais “corretas”, entretanto as palavras escolhidas por Ana Maria Machado não foram tão felizes, pois deixa que a explicação de ser negro seja algo que se faz pra conseguir, como estudar pra passar de ano ou ir a loja comprar roupa e não algo biologicamente produzido. Construído geneticamente, como é o branco”;o “pardo”; o “amarelo”.
Quando a autora se refere a “artes de uma avó preta” nos chega como algo pejorativo. O que causa um mal estar, pois a história deveria servir ou ser utilizada para afirmar a identidade negra e não questionar ou negá-la. Daí a importância de saber escolher as palavras, pois elas podem ser lidas e entendidas de maneiras diferentes.
Os livros de literatura infantil, apesar de serem direcionadas às crianças servem de fonte de informação também para os adultos. E mesmo sendo do mesmo segmento, e tratarem sobre tema igual o enfoque, o direcionamento, as palavras, ilustrações e as informações que estas narrativas nos fornecem, são diriam destoantes ou distantes. Mas como isso seria possível? Acreditamos que isso aconteça muito em detrimento de um fator principal que é o ano de publicação e o contexto em que as autoras estavam inseridas.
É válido saber que após a década de 1960, a literatura passa a tratar de temas mais contextuais e as crianças passam a ser o centro das narrativas o que não acontecia antes, elas passam a ser de fato criança, uma vez que, antes de 1960 estas eram vistas como adultos em miniatura; e os temas tomados como importantes ou os temas à margem não eram tratados, os negros dificilmente protagonizavam narrativas, isso é o fator positivo, o negativo, é que apesar da obra protagonizar o negro ela ainda apresenta escapismos ao abordar a temática afro, isso é percebido nas respostas evasivas quando a cor é questionada. O importante não é só tratar do negro ou das questões afro em geral, mas é saber construir narrativas que não alimentem ou reforcem a negação do outro, a discriminação racial e o preconceito.
Por isso, se faz preciso contextualizar as obras para entendermos o que ela quer nos dizer. E também não podemos esquecer que uma autora tão conhecida e renomada com Ana Maria Machado não cairia no erro, digamos assim, da forma preconceituosa com a qual ela estava tratando aos africanos e afro descendentes. Se a autora possivelmente fizesse uma revisão de palavras hoje, substituiria o termo preto por negro, uma vez que o primeiro remete a uma forma pejorativa, excludente e racista de nomear o outro. A nomenclatura mais adequada hoje seria negra. Esse é um lapso que conseguimos identificar no livro, entretanto ele nos trás algumas possibilidades de trabalhar a diferença e a construção das misturas da raça.
Um outro livro que iremos analisar aqui é As tranças de Bintou, publicado pela Editora Cosac Naif,que teve sua primeira edição em 2004, formatado em 32 coloridas e ilustradas páginas, classificado como livro da literatura infanto- juvenil, escrito por Sylviane A. Diouf, que viveu na França, Senegal, Gabão, Itália e Estados Unidos, tendo a mesma trabalhado como jornalista e como escritora em toda a sua vida adulta.
Enquanto ela escrevia artigos acadêmicos e livros para adultos, Diouf também estava preocupada com a história relevante para os jovens leitores. Para promover essa meta, ela tem escrito vários títulos sobre história da África e Diáspora Africano para os jovens leitores.
“As tranças de Bintou é um livro ilustrado que foi seleccionado pela Cooperativa Children’s Book Center como um dos melhores livros e em 2002 foi também publicado no Brasil e na França, onde foi votado Melhor livro de 2003 (3-6 anos), pelo “Mommies’ ‘comité’.(informações retiradas do site da autora no endereço http://www.sylvianediouf.com)
Nesta meia década do século XXI, a autora Sylviane A. Diouf além de suas raízes genéticas e culturais, se viu cercada de apelos, propagandas, leis e investimentos voltados para a s discussões a respeito do lugar do negro no mundo de maneira mais efetiva, lugar este que ele sempre ocupou, mas não era tido como sujeito participativo. Hoje já temos a história da África, do negro, dos afro-descedente ou pelo menos estamos começando a escrevê-la.). Daí a sua narrativa ser tão impregnada de representações da África, da cultura africana e isso é repassado às crianças através da história de uma criança, personagem principal que nos leva a conhecer uma das culturas ou costumes de uma das aldeias dos povos africanos, através de seus cabelos, ou melhor de seus birotes, como o próprio título do livro remete As tranças de Bintou.. No livro a história se inicia do desejo das crianças ter birotes (pequenas mechas de cabelos que enrolados se transformam em pequenos rolinhos de cabelo) em possuir tranças; em sua trajetória para conseguir as tranças elas nos revela traços de cultura africana.
Sylviane Diouf nós fala com suas próprias palavras sobre as obras e o porquê de se envolver e escrever sobre o negro a África e suas histórias:
Dentro de sete anos, publiquei dois livros acadêmicos, cinco livros para crianças, uma ficção para crianças, e co-editado um livro comercial. Todos os meus livros e artigos tratam do Africano e Diáspora história e cultura. O que me interessa é levar adiante histórias desconhecidas, e há uma abundância destes nesses domínios. o meu objetivo é encontrar enterrado informações, trazer pessoas para a vida esquecida, reconstruir história, e apresentá-la de uma maneira que agrada aos leitores.( informações retiradas do site: ://www.sylvianediouf.com)
Diferentemente da Menina bonita do laço de fita que apenas questiona o porquê de ser negro, ou como isso acontece, nos levando a uma resposta apenas. Os birotes e as tranças nos levam,nos enlaçam nas questões da cultura africana.
Ambos os livros ou narrativas nos permitem pensar questões de identidade, que é entendida aqui como algo fragmentado (Stuart Hall,2000), múltiplo , já que ocupamos diferentes e diversos papéis como sujeitos que somos. Andreas Hofbauer (2003), quando escreve sobre a identidade revela que
Mesmo que haja várias abordagens e vários usos diferentes do o conceito de identidade, pode-se afirmar, acredito eu,que genericamente falando, a introdução da idéia de ‘identidade’ nas analises das Ciências sociais tem permitido pensar melhor o lado subjetivo dos processos sócio-culturais, uma vez que a noção de ‘identidade’ direciona a análise para opções, para escolhas mais ou menos inconscientes dos indivíduos e grupos [...] a idéia de construção da ‘identidade’ aponta implicitamente para uma questão política, i.é. para a questão da legitimação social(cf. também Manuel Carneiro da CUNHA, 1986: 97-108, citado por Andreas HOFBAUER,2003)
E para discutir tal conceito partiremos do que nos coloca os títulos das obras: as tranças e laços de fita remetem a cabelo, e o cabelo aqui é tomado como um representante da identidade, da raça negra. E o cabelo afro, crespo, "enroladinho”, servem como documento [...] o cabelo na sociedade brasileira é uma linguagem e, enquanto tal,comunica e informa sobre as relações raciais [...] também pode ser pensado como um signo, pois representa algo mais, algo distinto de si mesmo.”( Nilma Lino Gomes,2003:137); O cabelo também pode ser usado como material de analises para iniciarmos diálogos sobre as várias formas e estruturas de cabelos. E seguindo os passos de Josemir Camilo (2009) em seu artigo “Cabelo ruim?”encaminharemos as indagações ou proposições sobre tais. Neste artigo, o autor organiza uma resumida, mas elaborada “história do cabelo” afro, seguem suas palavras:
[...] O cabelo afro é o cabelo mais antigo da espécie humana, tem no mínimo 150 mil anos. Portanto, pelo viés da História e da Antropologia este seria o cabelo ‘bom’, o cabelo que tem algo a dizer na genética. Este cabelo é fruto de quando o Homo sapiens sapiens, vencendo a natureza, se firmou como espécie no paraíso terrestre, a África subequatorial, entre 200 mil e 150 mil anos. Clima tórrido, a natureza proporcionou ao ser humano uma pele coberta de melanina para evitar o câncer de pele e um cabelo hidrolisado para reter toda a água e suor para auto-refrigeração. Portanto é um cabelo histórico, genético, de papel importantíssimo na evolução da humanidade. (Josemir Camilo, janeiro de 2009)
Assim, diante de tais informes não nos é mais permitido usar a expressões do tipo: cabelo bom/cabelo ruim, o que existe são tipos de cabelo, que sofreram alterações biológica, ecológica, temporal. E o resultado dessas transformações é a miscelânea de cabelos que podem ser encontrados no mundo inteiro. Quando Josemir Camilo interroga em seu título: Cabelo ruim? Responderíamos diferentes sim, ruins não.
É necessário que assuntos como esses circulem em todas as mídias. Esses diálogos não deveriam se concentrar apenas nas universidades ou encontros sobre História e Cultura Afro, deveríamos trabalhar tais temáticas em nossas escolas com nossos alunos e alunas para que os mesmos (em sua maioria afro) se identifiquem com o que veem e com o que têm e não sejam presas fáceis para serem engolidas e absorvidas pelas propagandas de mundo da beleza e principalmente de cabelos, onde o mesmo pra ser tido como belo tem que seguir o biótipo do liso e loiro. Já que vemos de crianças a adultos, homens e mulheres, independente de gênero, se submetendo ao uso de fortes produtos químicos, que podem até levar a óbito se mal manuseado; e isso tudo para pertencer ao mundo do belo, ou está incluso dentro de determinados padrões que elegem o que é ser bonito. Ser possuidora de birotes, tranças ou cabelos encaracolados não é tão bonito aos lhos da estética que hoje dita e estereotipa a beleza dos cabelos. E isso, esse balizamento sobre as questões do cabelo belo é tão forte que se tornam temas de músicas tanto em tempos antigos como nos dias atuais.
A música e o negro ou o negro da música?
A música tem servido como um meio “divulgador” das questões étnicas e raciais, mesmo que de forma racista ou pejorativa. Como exemplo podemos citar algumass marchinhas de carnaval que tratavam de temas os mais diversos, mas uma especialmente nos chama devido ter como fonte de inspiração a mulata e seus cabelo, é a macinha O teu cabelo não nega (Lamartine Babo- Irmãos Valença, 1931), e traz o seguinte fragmento:
O teu cabelo não nega mulata/Porque és mulata na cor/Mas como a cor não pega mulata/Mulata eu quero o teu amor(...) (O teu cabelo não nega - Lamartine Babo- Irmãos Valença, 1931)
E a música da Banda Forró do Muído, Chapinha (composição indisponível, 2008), que remetem a assuntos da beleza dos cabelos, como podemos ver em algumas estrofes:
Todo cuidado com a beleza vale a pena/É só produto de beleza o tempo inteiro/ (...) Mas é no dia da escova que elas ficam estressadas/ E se faz uma chapinha e a coisa tá piada/Não sai nem na calçada/E choveu, cabelo encolheu tá.../Estica puxa, deixa liso o tempo todo/Sem importar nem com a cor nem com o dinheiro (...)
Mais uma vez a referencia ao cabelo faz menção à pele negra, aqui denominada de mulata, “o teu cabelo não nega mulata/ porque és mulata na cor,” identificando a mulata pelas fibras capilares, ajudando a compor a identidade que se construiu do negro.
Sabemos que além do cabelo, a cor é uma forte representação que permeiam a construção da identidade negra, são traços que ajudam a classificar, nomear o outro, são as diferenças, as construções do diferente como algo ruim, com um tom racista, já que estamos falando de músicas. O outro o trecho “mas como a cor não pega mulata (...), deixa explicito o quanto o preconceito existia naquela época e ainda permanece hoje, pois os homens podiam pegar no sentido figurado, o amor da mulata, mas sua cor eles não queriam pegar ou não podiam, uma vez que essa não se pega, e essa maneira de pensar é reflexo direto do racismo que está contido em nossa sociedade.
A segunda música também remete ao racismo, de acordo com a letra da música as mulheres se “estressam”, usam “todo tipo de produto de beleza”, ‘esticam”, “puxam” o cabelo pra ficar liso e assim se tornarem bela, como se o cabelo naturalmente enrolado ou crespo fosse sinônimo de feio. “[...] Quanto mais o negro se aproxima do branco pela tez [...] cabelos lisos, maiores serão suas probabilidades de ser aceito”. (BASTID e FERNANDES, 1959:188 citado por Nilma Lino Gomes, 2003: 146), ou seja, o negro ou negra se submete a determinados tratamentos “estéticos de beleza” para muitas vezes negar o seu eu em detrimento do outro, para serem aceitos não pela sua aparência ou cor, mas por estar se parecendo com o outro, o branco, do cabelo liso que é a referencia, digamos.
Faz necessário uma intervenção nessa maneira e disseminação do conceito de beleza, faz-se necessária fragmentar o conceito de beleza para que ela possa unir e não dissociar o poderíamos nomear de bonito. No mundo pós moderno que vivemos não há mais lugar para padrão, fixo, rígido, estável, não uma forma ou fôrma, hoje é a flexibilidade e fluidez, a mistura o mosaico que estão em alta , que ditam o belo, em tudo e todos se veem belezas, assim no plural.
A questão do cabelo é uma preocupação que alcança homens e mulheres, independe de sexo e gênero. Para pertencer ao cânone: liso e loiro esquecem ou menospreza-se as suas características naturais ou podem até mantê-las em parte, cabelo enrolado sim, mas pintado de loiro ou a cor natural e liso, esticado como se diz na música.
E falando em cabelos, voltemos às obras analisadas e aos fios capilares das personagens das personagens da história. As autoras dos livros Menina e Bintou se utilizam das tranças para construir identidades, a primeira de beleza e a segunda como algo culturalmente instituído, um algo a ser conquistado de direito, significando ou representando à passagem de uma fase a outra da vida em algumas aldeias africanas, não servindo meramente pra enfeitar. No Brasil de hoje as tranças podem ter várias representações ou leituras; não são apenas os negros ou afros descendentes que a utilizam para se adornar; outros a utilizam como negação de sua raça, outros para demonstrar a mistura de raças ou de alguns elementos culturais, ou seja, além de servir como elemento de beleza, serve para negar ou exaltar raças ou mesmo para demonstrar o sincretismo existente entre elas, como se fosse um racismo às avessas.
Todorov (1993) pensa o racismo como comportamento, que o racismo pode ser explicado tanto pelo comportamento (de ódio e desprezo) como pela ideologia. Ainda ele nos diz que “O racismo é um comportamento antigo e de extensão provavelmente universal” Todorov, 1993, p.107). O medo do desconhecido muitas vezes faz ter este tipo de comportamento quando olhamos o outro como estranho, precisa-se dar a conhecer e destruir essa barreira para que esse comportamento deixe de acontecer.
Concordando ou seguindo o mesmo raciocínio ou teoria, Leonel Cosme (2001.p. 1) em seu texto Reflexões sobre o racismo nos diz que “[...] a cor é apenas o sinal mais evidente da diferença, por que o nosso racismo, na verdade é contra aquele que não é como nós – preto ou branco, que cospe na rua ou usa boné [...]”, e certamente está consideração é válida, pois não devemos restringir o racismo apenas a cor da pele, o “diferente” é o que nos faz ser ou ter comportamentos racistas.
Andreas Hofbauer (2004, p. 66) que também escreve e pesquisa sobre o racismo, só que de maneira especifica sobre o racismo no Brasil faz a seguinte colocação sobre o racismo: “é um fenômeno social complexo: não é ‘apenas’ descriminação e humilhação, mas é também o discurso sobre os processos de exclusão e inclusão. Há uma relação intrínseca entre realidade e discurso sobre a realidade [...] Por isto, parece-me necessário analisar os contextos históricos, políticos e sociais juntamente com o plano do(s) discurso(s), ou seja, juntamente com a construção das idéias, se quisermos entender o funcionamento do fenômeno do ‘racismo’[...].
E pensar as tranças seja da menina bonita do laço de fita ou as de Bintou, como elementos da cultura negra ou africana são formas de pensar nas discussões sobre o racismo que elas nos remetem, nos leva a fazer reflexões sobre o olhar que lançamos ao outro, é pensar a inclusão e a exclusão que os cabelos afro, crespo ou mesmo encaracolados permitem nos tempos atuais. E aí vem a tona a “letra da música” Chapinha que nos revela todas as peripécias sofridas pelas mulheres para não deixar o cabelo não encolher, a mulher fica até estressada, não pode nem chover, não saem nem na calçada para que suas origens capilares não a nomeiem, não a deixe diferente de seus falsos pares.
Entretanto olhar as tranças e os laços de fita também nos traz a possibilidade de enxergar a beleza no negro, no escuro, nas cores vibrantes, nos cabelos crespos de birotes ou nas tranças e assim refletirmos sobre as nossas meninas bonitas dos laços de fitas e das Bintous brasileiras.
Fazer menção ou falar da diferença dos seres humanos é diferente de falar diferente dos mesmos. Que somos diferentes, isso é evidente. ”Tudo é questão de saber até onde se entende o território da identidade e começa o da diferença. (TODOROV, 1993, 107).
Portanto a questão do racismo ou fenômeno racista, como queira nomeá-lo, como já foi dito anteriormente não deve ser tomada sobre um ou outro aspecto, é necessário uma mudança no comportamento, na maneira de olhar e perceber. As diferenças sempre existirão, mas a forma de viver e conviver com elas é que precisam ser revistas e praticadas.
Reticências finais...
Trabalhar com a história das crianças, dos negros, das mulheres, do nativo, do homossexual ou qualquer outro objeto que se pode trabalhar hoje, seria totalmente desconsiderado há vinte anos. Ainda hoje, sabemos, há certas resistências sobre temas discutidos na academia, como a história da África que ainda não é disciplina obrigatória em todas as universidades, dirá nas escolas. E isso é um ponto que deve ser levado em consideração, pois estamos num país onde a maioria descente de africanos. E isso acreditamos é levado em consideração quando lemos as duas obras referenciadas ao longo do texto.
A maneira como foram escritas, os objetivos, e a história de vida das mulheres que as escreveram são muito diferentes, ambíguas diria. Uma (Ana Maria Machado) exilada e suprimida pela ditadura militar em seu país de origem – o Brasil; a outra (Sylviane Diouf) que escreve sobre suas raízes negras, sobre a África de suas lembranças, mantidas a partir das histórias que escutava, não como era, mas do jeito que ela quer contar para criança, do mesmo modo que as ouvia gostosamente de sua avó. A primeira escreveu sobre a criança negra por dois motivos principais: por não ser um elemento tão encontrado nos livros de literatura infantil e por se adaptar a realidade brasileira; a segunda escreve para representar e colocar a cultura e as histórias africanas a disposição das crianças, para que se divulguem estas.
Ainda em relação às obras e autoras podemos destacar como comunhão entre ambas o trabalho com três elementos: a negra, a criança e o gênero. Trazem como elemento de discussão o cabelo, e de forma determinante: as tranças, para trabalhar direta e indiretamente a cultura e a cor da pele dos africanos e afro-descendentes.
Aqui nos coube analisar apenas o aspecto da raça digamos a questão mais direcionada ao racismo, como ele é construído e tido como comportamento ao longo de séculos; usando como subsídios os cabelos afros, sejam eles com birotes ou tranças, e as várias interpretações ou impressões que estes podem causar. Usando as palavras de Nilma Gomes (2003):
Assim como a democracia racial encobre os conflitos raciais, o estilo de cabelo, o tipo de penteado, de manipulação e o sentido a eles atribuídos pelo sujeito que os adota podem ser usados para camuflar o pertencimento étinico-racial, na tentativa de encobrir dilemas referentes ao processo de construção da identidade negra. Mas tal comportamento pode também representar um processo de reconhecimento das raízes africanas assim como de reação, resistência e denuncia contra o racismo. E ainda pode expressar um estilo de vida. (Nilma Lino Gomes, 2003:138)
Quando lançamos o olhar do belo sobre o negro, e o tomamos como símbolo de beleza, já estamos fazendo um movimento de mudança do olhar do negro sobre si e sobre o outro e do outro sobre si, e essa mudança de olhar, os espaços que eles conseguem ocupar como belo contribuem para uma melhor construção das relações raciais brasileiras. (Gomes: 2003).
O que pretendemos com a leitura e analise das obras de literatura infantil, não é mostrar, apontar erros, o propósito é trazer a tona possibilidades de leituras e textos que tragam o negro/a negra como personagem da história, mesmo que seja para criança, mas é valido, o que interessa são os aspectos relatados e a forma como o negro é apresentado. Analisamos aqui o titulo das obras propriamente dito, até porque o espaço físico não comportava uma analise total, pois ambas tem muitos aspectos a serem explorados ainda. Entretanto é importante saber que as analises ou estudos realizados sobre os afro-descedentes ou africanos ou mesmo sobre a cultura negra é sempre válido, não só por ser um assunto que tem sido reconhecido como importante, mas também por contribuir para a construção da identidade do negro com, o personagem, sujeito, participativo da história, para que ele tenha consciência de suas contribuições culturais, sejam elas em forma penteados de cabelo, na maneira de se vestir nos ritos de passagem, mostrar que o negro tem algo a mais para mostrar do que só sua participação como mão-de-obra escrava nos inicio da história do nosso país. Quando estudamos e dialogamos sobre tais aspectos estamos construindo uma identidade positiva, se assim podemos dizer, do negro e negra na sociedade. Fazer com que eles saibam que o belo esta justamente nas diferenças e não nas igualdades, é uma forma de preservar as identidades, sejam afro ou não.
Referencias
CAMILO, Josemir. Cabelo ruim? Artigo publicado no site: www.paraibaonline.com.br capturado em 02/03/20009.
CASSTELLS, Manuel. O poder da identidade: A era da informação, economia sociedade e cultura; v.2.: tradução Klauss Brandini Gerhardet. Editora Paz e Terra,São Paulo.
COSME, Leonel. Jornal “A Página”. Ano 10, nº 102, Maio 2001, p. 30.
HALL, Stuart. A identidade na pós-modernidade. Tradução: Tadeu Tomaz da Silva e Guacira Lopes Louro. 4. Ed. Rio de Janeiro: DP&A,20000.
HOFBAUER, Andreas. Raça, cultura e identidade e o racismo à brasileira. In: De preto a afro-descedente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais no Brasil. Org. Lucia Maria de Assunção Barbosa e et all. São Carlos: EdUFSCar,2003.pp51-68.
GOMES, Nilma Lino. Uma dupla inseparável: cabelo e cor de pele. In: De preto a afro-descedente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações étnico-raciais no Brasil. Org. Lucia Maria de Assunção Barbosa e et all. São Carlos: EdUFSCar,2003.pp137-50.
OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. Traços pós-modernos em Ana Maria Machado: uma vertente infantil do questionamento do poder Disponível na internet via www url: http://www.graudez.com.br/litinf/trabalhos/anmachado1.htm
Capturado em 2/3/2009
TODOROV, T. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. 2 vol. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.