Tragédia Grega e o Humano

Por ALEXANDER SAMUEL SCHIO CAVALCANTI | 24/10/2012 | Filosofia

UMA BREVE SINTESE SOBRE A TRAGÉDIA GREGA E O HUMANO
Humanidade e Justiça na Historiografia Grega (V-I a.C)

            O gênero dramático mantém com a cidade uma estreita e complexa relação. É na tragédia a reverência cívica por excelência, a democracia ateniense aparecerá como o regime que foi mais longe na redução da distância entre os cidadãos e os outros, ao integrar no corpo cívico o grupo daqueles que deviam trabalhar para viver, geralmente excluídos da cidadania nas cidades oligárguicas. Não é por acaso que a tragédia “grega” é na realidade ateniense. Pois, como foi nascida na democracia, ela precisou colocar também questões que não fossem estritamente políticas, no sentido em que a política é coisa partilhada apenas por uma parte da sociedade. Isso significa que a atualidade ateniense do gênero trágico acompanha-se de uma tendência constitutiva à inatualidade, que é exceder os limites da sua época em tempo e espaço e consequentemente à fragilidade da manifestação individualista, no qual constitui a causa da infelicidade humana.

            O trágico Frínico fora multado pela cidade ateniense por ter feito representar uma tragédia intitulada A Captura de Mileto. Submetendo os atenienses ao espetáculo do que estes consideravam como um desastre que lhes dizia a respeito em particular, a tragédia fizera derramar-se em lagrimas o teatro inteiro, ou seja, a comunidade dos cidadãos, o que lhe valeu ser proibida a representação. Costuma-se afirmar que só os infortúnios de outrem podem prestar-se a uma encenação trágica, sobretudo quando o outro é bárbaro e Atenas vence.

            As tragédias começaram a se desviar do que estava em jogo no presente, manifestando uma predileção extrema pelo tempo do mito, pois para Atenas, o inimigo já mudara e que, a fim de encenar os embates de Atenas com outros gregos, mais valia sair do tempo vivido da história. Com distância que o desvio pela origem garante, o mito permitiria ataques tão vigorosos quanto indiretos. Ou seja, a tragédia equivalia a um gênero inteiramente político. Vejamos como exemplo As rãs de Aristófanes, na palavra do próprio Ésquilo, que, do mundo dos mortos, louva os méritos didáticos dos Persas, afirmando que, com essa tragédia, ensinou aos atenienses (principalmente aos homens em idade de combater) “que é preciso aspirar continuamente a vencer seus adversários” (As rãs, 1026-7; 1041-2; 1055). Não existe duvida também de que se pode, entre outras funções, atribuir ao gênero trágico um objetivo pedagógico na Atenas do século V, para reduzir seu objetivo a essa única dimensão não basta para obrigar os modernos a adotar, sem nuance tal interpretação.

            Toda tragédia tem muito haver com a encenação de um luto, é quase certo que, em um drama, se assemelha a uma longa lamentação versificada. Nesse momento entra o humano: o sentimento, embora confuso em cada um, de que se é irrevogavelmente tocado por outrem.

            O trágico tem sempre, e em proporções variáveis, cumplicidade com tudo aquilo que a cidade recusa. A tragédia grega diz em seu próprio nome sobre o homem e o humano. Lembrar aos seus homens que eles são mortais, é apenas mais seguramente um recurso para isso, ao garantir a concórdia em que “muitos sofrimentos, entre os mortais, encontram seu remédio” (Eumênides. 987). É na formulação desse pensamento que os gregos aos poucos vão deixando de evocar deuses e criaturas acima do humano, passando a denotar nas tragédias as relações do seio da sociedade dos homens, evocando na mesma ocasião a vida de trocas e de relações que caracteriza as comunidades humanas, negando a onipotência dos deuses. Essa afirmação significa que, entre todas as coisas terríveis o homem é a mais terrível de todas.

            A palavra ántrõphos deve não ser colocada em oposição ao mundo divino, quando pensada em uma perpétua tensão, no interior do homem, entre humano e sobre-humano, a concepção de que se entregar a paixões que excedem os limites da humanidade, sem querer compreender que, para os homens, a natureza é a uma só vez medida e norma. Ántrõphos portanto passa a significar: o homem entre os homens, mal consigo mesmo e com seus semelhantes e no entanto estranho a tudo que não é humano. Agamêmnom, hesitante em pisar o tapete da desmedida, afirma querer “ser honrado como herói, não como deus (Agamêmnom, 952).

            A palavra anér, nome do homem viril, por uma aproximação poética ou por um enfraquecimento do sentido, designa de fato o humano considerado na sua maior generalidade. Esse pensamento é excessivamente sumário, pois jamais ocorre que a palavra seja utilizada para significar uma mulher ou um covarde. No singular anér designa o guerreiro ou mesmo o herói. . E em alguns textos a mesma palavra se estende no sentido da humanidade, confundindo assim o homem genérico apenas na medida em que o sexo masculino é efetivamente paradigmático de toda humanidade.

            Os estudo dessas palavras, no que concerne o estudo da tragédia humana e o humano, entende-se que se trata da definição do gênero humano e da sua extensão. A titulo, ánthrõpos é objeto de um áspero debate, o que significa abalar a assimilação demasiadamente serena do anér ao homem verdadeiro humano. Por aí revela-se que colocar mulheres na cena não significa apenas inquietar os valores cívicos. É da humanidade que se trata.

            Uma das exigências fundamentais da ética: não colocar como tema o humano abstrato antes de ter atribuído à mulher seu lugar no jogo.

            Parece que na tragédia, não haveria necessidade de precisar que um homem é um homem. Mas essa hipótese é um pouco sofisticada, uma estratégia muito refletida: o trágico usaria essa evitação da palavra ánthrõpos como um indicio capaz de assinalar os comportamentos humanos, que fundados em maus recortes do real, percam contra esse denominador comum que é a humanidade.

            Em outros termos, na cena trágica, é a ruína de uma definição do homem e a assunção temível de uma outra: como se fosse preciso que, rejeitando toda ideia da exclusão, os humanos aprendessem a não sua mortalidade, que nenhum deles seja mais definido pelo lugar que ocupa, mas pelo tempo demasiado limitado que é a todos concedido. Ou seja, o homem enquanto destinado à morte, esse destino cuja raiz indo-européia comum a todas as línguas romanas se enuncia em seu nome.

            O erro dos tiranos é supervalorizam o político: crêem recusar a sepultura a um anér que saiu da ordem cívica, e é contra um semelhante a eles que se encarniçam. O outro erro dos tiranos é o de se acreditarem imortais ou felizes, conforme passagem do texto abaixo:

(...)Quando Sólon já tinha visto e observado bem tudo, o rei falou-lhe nestes termos:

“A notícia de tua sabedoria e de tuas viagens chegou até nós; e não ignoro absolutamente que, percorrendo tantos países, não tens outro fim senão o de instruir-te sobre as suas leis, seus costumes e aperfeiçoar teus conhecimentos. Quero que me digas qual o homem mais feliz que viste até hoje”. Naturalmente, o soberano lhe fazia esta pergunta por julgar-se o mais feliz dos mortais. “É Telo de Atenas” — tespondeu Sólon sem lisonjeá-lo e sem disfarçar a verdade. Ante essa resposta, volveu Creso: “Por que julgas Telo tão feliz?” “Porque, residindo numa cidade florescente, — continuou Sólon — teve dois filhos lindos e virtuosos, e cada um lhe deu netos, que viveram muitos anos, e afinal, depois de haver usufruído uma fortuna considerável em

relação às do nosso país, terminou os seus dias de maneira admirável: num combate dos Atenienses com seus vizinhos de Eleusis. Saindo em socorro dos primeiros, pôs em fuga os inimigos e pereceu gloriosamente. Os Atenienses ergueram-lhe um monumento por subscrição pública, no próprio local onde ele tombou morto, e lhe tributaram grandes honras”.

Um tanto decepcionado diante da revelação de Sólon sobre a felicidade de Telo, Creso voltou a perguntar-lhe

quem, depois desse ateniense, considerava ele o mais feliz dos homens, não duvidando, absolutamente, que o segundo lugar lhe pertencia. “Cléobis e Biton” — respondeu Sólon. “Eram árgios e desfrutavam as rendas de pecúlio honesto. Eram, por outro lado, tão fortes, que haviam ambos conquistado prêmios nos jogos públicos. Conta-se sobre eles o seguinte caso: Os Árgios celebravam uma festa em honra de Juno. A mãe desses dois jovens tinha absoluta necessidade de ir ao templo num carro, e os bois tardavam a chegar do campo. Os rapazes, vendo o tempo passar, puseram-se eles mesmos sob a canga, e puxando o carro, no qual ia a mãe, conduziram-no assim, numa distância de quarenta e cinco estádios, até o templo da deusa.

Depois dessa bela ação, testemunhada por grande número de pessoas, terminaram seus dias da maneira mais ditosa, pretendendo a divindade, com isso, mostrar que é mais vantajoso para o homem morrer do que viver: Os Árgios, reunidos em torno dos dois jovens, louvaram-lhes o procedimento, enquanto as mulheres felicitavam a sacerdotisa por possuir tais filhos. Esta, no auge da alegria, cumulada de elogios, de pé, junto à estátua, pediu à deusa que concedesse aos dois jovens, Cléobis e Biton, que a tinham honrado tanto, a maior felicidade que pode alcançar um mortal. Terminada a prece, depois do sacrifício e do festim solene, os rapazes adormeceram no próprio templo, para não mais despertar. Os Árgios ergueram estátuas a ambos e os consagraram a Delfos, como homens perfeitos”

 

"É impossível um homem reunir as condições necessárias à felicidade da mesma maneira que nenhum país

possui todos os bens de que necessita. Se conta com uns, está sempre privado de outros; o melhor será o que possuir maior número deles. Assim acontece com o homem: não há um que se baste a si mesmo. Se possui algumas vantagens, outras lhe faltam. Quem reúne maior número e o conserva até o fim dos dias, deixando tranqüilamente a vida, este, senhor, merece, na minha opinião, ser chamado feliz. Devemos considerar o término de todas as coisas e ver que nisso se encontra a única saída; pois Deus, depois de entre mostrar a felicidade a certos homens, costuma destruí-la por completo de um momento para outro.” (...)

                                                                                                                      Herótodo (XXX – XXXII)

E a tragédia se entrega de bom grado a dramatizar sua queda, extrai então mais de uma vez a moral comum do adágio em virtude do qual ninguém poderia ser considerado feliz antes de estar morto ou quando a infelicidade se abate sobre o herói, como Ajax, cuja loucura faz Ulisses dizer que “não passamos de fantasmas, nós os vivos, ou de uma leve sombra (Ajax, 125-6).

            Foi Sófocles quem o repetiu, sem grandiloquência e sem perspectiva escatológica, a qual, da morte, faria a “verdadeira” vida, e seus heróis tensos disso dão testemunho: certamente Antígona e Ajax, mas também Electra, que vive para o luto e vingança, tem lugar entre dois mortos. Mas a lógica trágica exige que exerçam assim a essencial mortalidade do homem, no modo excesso e a confiança do vivo em sua vida surge desde então como a mais ilusória das percepções que uma sombra pode experimentar a seu próprio respeito. E no entanto, mesmo que haja toda a fragilidade possível, até mesmo essa debilidade humana de que, entre eles, os deuses falam com condescendência quando se entretêm com coisas humanas, é dessa experiência sem qualidade que a tragédia faz o bem partilhado da humanidade: o peculiar do homem, imemorial, anterior talvez a essa vocação política que Aristóteles considera originaria nesse ser vivo que vive em cidades. Pois a tragédia, incansavelmente mostra que nenhuma cidade poderia proteger o mortal contra a morte que nele habita. A tragédia é por isso gênero “humano”, no sentido em que precede ao desnudamento radical do homem.

            Como gênero literário, tragédia entra na categoria do drama. Pathós é o que sofre, o sofrimento, mas também a experiência que, para os humanos, se adquire somente na dor que é como na própria quintessência do trágico: “no sofrimento o conhecimento”; ou “experiência dá sapiciência” .

Esse equacionamento da medida e do excesso. Pelo menos, ele se esclarece um pouco se se admite que, sendo a ação trágica um jogo mortal e muitas vezes um jogo de assassínio, várias lógicas conspiram para fundar a lei trágica em virtude da qual quem agiu padece: a lei divina quer que todo desequilíbrio acarrete compensação; a lei do sangue, que o assassino pague seu ato com sua vida, a lei positiva, encarnada nos procedimentos judiciários, que o agente seja submetido a uma pena; e a lógica heroica, que as reviravoltas da força aniquilem o forte.            

            Se a tragédia é a lei de coincidências de todas essas leis, é que, ao revestir, a forma de uma ação (drama). Ela dá a entender que o padecer é sentido autentico do agir. Mal que afligiu a si próprio.

            Agora nós, que estamos longe do universo cívico ateniense, em que a tragédia contribuiu, para a educação permanente que sem descanso, reforça e revigora o civismo no coração e no espírito cidadão. Nosso projeto não era, precisamente, buscar tudo aquilo que, na tragédia, tenta para além do onipresente material político, articular um discurso comum? Um discurso que pelo lado da ficção teatral, sugeriria uma comunidade mais ampla que a dos cidadãos, mais vasta que aquela que ocupa as arquibancadas do teatro.

            Arisóteles afirma que “por meio do terror e da piedade” a tragédia opera “a kátharsis das paixões dessa ordem” (Poética, 1449 b 26-8). A tragédia não é uma medicina especifica que limitaria seu campo de eficácia à ação sobre alguns doentes, mas concerne a todo homem na medida em que, confrontado com a condição mortal, experimenta infalivelmente terror e piedade.

            O teatro não é assembleia e a tragédia libera por certo no espectador paixões às quais o cidadão digno desse nome não poderia abandonar-se, mas ela os libera, por assim dizer, sob controle, autorizando qualquer um a imergir no humano apenas pelo instante limitado de um parêntese institucional. E essa liberação é ao mesmo tempo purgação, pois, ao dar às emoções não cívicas, um tempo e um lugar, a representação dramática exime periodicamente o cidadão das fraquezas dos homens e contribui então paradoxalmente, distanciando o político de si mesmo, para restaurar no tempo por vir um político depurado, no sentido quase químico do termo. Insuficiente, porque puramente funcional e porque é preciso desconfiar das explicações sem resto. Irremediavelmente insuficiente ou, pelo menos, parcial.

            O coro da Antígona, acreditava saudar uma esperança, anuncia na realidade que, nas catástrofes finais, é purificador. Uma maneira de despertar o espectador para a plena consciência de sua posição de espectador-entendedor do teatro. E Aristóteles esclarece, nessa passagem do livro VIII da Politica, que o aulós não produz nenhum efeito “moral” ou instrutivo, apenas a pura excitação que acompanha celebrações. Compreende-se pelo menos que é preciso referir a kátharsis a duas experiências simultâneas e contraditórias: a reflexividade metatrágica, que supõe um espectador bom entendedor que não é inteiramente possuído por seus afetos, e o pressentimento de um mundo cajá lei terrível e sedutora esta bem distante da moral didática da cidade.

            Desse modo podemos distinguir de bom grado entre ética e moral, caracterizando esta como o conjunto dos valores e das prescrições comumente observados por um grupo, aquela como sempre por construir, no que é um perpétuo esforço por superar a moral, presa em sua estreita dependência em relação à sociedade. Um dos preceitos mais compartilhados da moral grega aconselha a fazer o bem aos amigos, o mal aos inimigos, sem que a menor reticência venha inquietar essa tranquilizadora distribuição do bom e do mau; desde então compreendeu-se que, em sua busca do humano, a tragédia, ao contrario, contribui singularmente para perturbar tais certezas.

            “Em sua sorte, é a minha que vejo” (Ajax, 124), a tragédia proclama soberbamente o laço estreito que une a piedade ao sentimento que, no inimigo, esse outro, sabe ver um mesmo de si, ameaçado, mortal, frágil. Compreendendo assim, o próprio herói ironiza “que não se deve odiar seu inimigo com a ideia de que o amaremos mais tarde” (Ajax, 678-82). Ulisses, deixa Atenas, deusa vingativa, a responsabilidade em seu próprio nome a moral comum em virtude da qual é doce rir de um inimigo. Talvez se deduza daí que construir um pensamento trágico do humano equivale idealmente a deixar apenas aos deuses os recortes maniqueístas. Um universo onde, sobre si mesmo, aprende-se mais com o inimigo do que com o amigo, porque o terrível e a morte são os lugares obrigatórios do humano. Era uma ética do humano, enquanto mortal, que na tragédia, se buscava e se experimentava.

            Aristóteles introduz a definição de ética e de seus fins, as noções de ciência política, do bem, de belo, de justo, assim como a de humano. A ética esta subordinada à política, ciência pratica arquitetônica que tem por fim, o Bem propriamente humano. A humanidade do homem prende-se à sua veiculação a uma comunidade, e a cidade constitui o fim de toda comunidade. A ética, a justiça sob suas múltiplas formas, a política e a definição do ser humano estão ligadas.           

            A política não tem nada de ciência que procura definir o bem da cidade, concebida como a comunidade na qual se realiza a humanidade do homem. A ética, não poderia neles se definir como a ciência dos valores que contribuem para determinar o bem da cidade, mas parece como um conjunto de reflexões esparsas, pouco sistemáticas e de alcance mais ou menos geral, sobre os princípios que supostamente guiaram a conduta dos agentes em circunstancias singulares. A noção de homem revela contornos moveis e constitui o objeto de inúmeros deslocamentos. A justiça é apenas marginalmente marcada, por divergências e incertezas, que segundo Aristóteles, cercam geralmente a definição do belo e do justo e tonam necessários os esclarecimentos da ciência da ética.

            Xenofonte não cessa de interrogar-se sobre a arte de governar e sobre o exercício do comando que segundo ele, é a uma só vez o do chefe militar diante de seus soldados, o dono da casa diante de seus escravos e de sua mulher, o exercício do poder político enquanto magistrado em Atenas, e enfim, para um Estado, cidade ou reino, a reunião e a manutenção de outros Estados em posição de súditos em um império que se quer sempre em expansão. Para eles, há ordem se há estabilidade, e tudo o que se aparenta à solidez, à segurança ou à perenidade se acha por isso mesmo, valorizado.

            Para Tucídides, é o habito que faz das palavras o veículo dos valores que é preciso respeitar. “Trocar as avaliações usuais dadas pelas palavras aos atos”. Xenofonte, por seu lado, vê na estabilidade, ou na segurança, concebida como salvaguarda, o fim para o qual tendem todos os governantes e todos os impérios, assim como a prova suprema de seu valor. Políbio faz da Constituição romana como mescla harmoniosa e equilibrada de vários regimes, a ideia de que é daí que ela tira força e seu caráter admirável.

            A estabilidade que constitui a ordem do mundo chama-se também justiça ou justo. É antes um estado de equilíbrio no qual um e cada coisa ocupam um lugar determinado: o justo, a justiça consiste em manter esse lugar, qualquer que seja. Há uma unânime desconfiança, ou mesmo reprovação, por parte dos historiadores, em relação ao que muda ao que se transforma ao que evoluem, todas as coisas que para eles, aparentam-se fundamentalmente à injustiça. Eles parecem aceitar realmente apenas o tempo biológico, o das gerações humanas que se sucedem no ritmo dos nascimentos e das mortes, o tempo astronômico marcado pelo curso das estações e calculado pelos calendários lunares e solares ou o tempo oficial, político-religioso, ritmado pela sucessão dos arcontes, das sacerdotisas ou dos cônsules, segundo os casos. Esforçam-se em pensar como poderia abolir-se o que, quanto a nós, consideramos como o tempo propriamente histórico, aquele que se traduz pela mudança das situações e dos poderes do mundo.

            Encaram os acontecimentos e as mudanças que localizam apenas como a ruptura de um justo equilíbrio ou como a progressão para esse estado. O curso dos acontecimentos, e se coloca sempre em posição de resistência critica diante dela, em nome e do ponto de vista de justiça-ordem do mundo. É feita, em primeiro lugar, da repartição dos seres em diversos reinos ou categorias que se individualizam por diferenças e oposições. Singulariza-se ao elaborar uma concepção psicológica da natureza humana e insiste pouco na posição diferencial do reino humano em relação aos outros reinos, em outras palavras, na definição antropológica do homem, os historiadores fazem parte deste ultimo que não é nem Deus nem animal, segundo uma tripartição dominante no pensamento grego. Os homens dos historiadores se definem pelo que está além ou aquém deles. Isso significa que não são deuses, que não têm os atributos destes.

            Na Ciropedia de Xenofonte, quando, a ponte de morrer, o rei agradece a Zeus e aos outros deuses por não terem feito conceber, nos sucessos que balizaram constantemente sua vida, pensamentos que ultrapassassem a condição humana, é a transgressão, injustiça que causa desordem, que torna sensível o lugar que define a humanidade: fora e aquém do campo divino. O homem diferencia igualmente do animal.

            O espírito humano pode ser atingido por gangrenas tais que não há ser vivo que se mostre mais ímpio nem mais cruel que o homem. Se lhes é aplicada a indulgencia e a humanidade, acreditam que é uma armadilha e um embuste e com isso se tornam ainda mais desconfiados e mais malévolos em relação aos seus benfeitores.

            Se são castigados, seu furor resiste e não há infâmias nem crimes a que não se entreguem, fazendo dessa audácia um mérito. Finalmente tornando-se animais, saem da natureza humana.

            Políbio esboça uma psicologia da natureza humana, mas a faz depender de uma definição diferencial do homem em relação ao animal. O homem é cruel, o grego diz “cru”. Ora o cru é o regime alimentar do animal, para um grego: que o homem deixe então o cru tomar todo o lugar nele e há aí o animal. O sintagma “os gregos e os bárbaros” é uma maneira de designar o conjunto dos homens, a humanidade concreta.

            Xenofonte compõe o quadro. A distinção fundamental que ele opera separa aquele que comanda dos seus comandados. Homens e animais se confundem na categoria dos seres vivos caracterizados por um traço comum: o de serem assimiláveis aos animais do rebanho que são impelidos para frente pelo pastor. O homem só se diferencia do animal por sua indisciplina, por seu temperamento teimoso que o impede de obedecer de bom grado.

            Nessa humanidade gregária, separada por pouco da espécie animal, vem agrupar-se tanto os homens livres como os escravos e as mulheres, tanto é verdade que, do ponto de vista do chefe, formam a massa daqueles que convém fazer obedecer quando não são levados naturalmente a isso. Quanto ao chefe, acha-se em uma relação de proximidade particular com os deuses, dos quais se encarrega de interpretar as vontades e de obter o assentimento, e isso ao ponto de precisar por vezes, fazer esforços para se ater á sua condição de homem.

            Parece de fato, que o governante trata com duas categorias de homens: os vencidos, com quem não se preocupa, e os poderosos, cuja elaboração lhe é necessária para assegurar seu próprio poder. Destes últimos, esforça-se em garantir a fidelidade e, para consegui-la, liga-se a eles por benefícios, essencialmente materiais, pois se supõe que aquele que recebe pague em troca, como quer o laço social da philía.Então de um lado chefe e seus phíloi, ocupados em uma relação de troca em ter dom e contradom, do outro o resto da humanidade, cujo nome pode a partir daí adquirir eventualmente a tonalidade mais social da massa e da populaça.

            A multidão é toda: arrebatamento, toda impulso, toda tendência, mas falta-lhe a razão. Ela não sabe analisar seus sentimentos, e, sobretudo, não sabe fixar objetivo para os seus impulsos. Permanece encerrada em sua exasperação: é uma onda, um fogo, ela urra, para agir tem necessidade de um principio de conduta que não possui e que só lhe poderá vir do exterior. O homem aí é ao mesmo tempo hormé, tendência natural, e logos. Ademais, no médio estoicismo, tal como podemos recompor a partir dos Livros I e II de De officiis de Cícero, a persona constitui “o principio interior de conduta que atribui, a cada um, um papel em suas relações com seus semelhantes”.

            Assim por meio dos diferentes tipos de oposição que acabam de ser evocados, os historiadores apresentam uma humanidade cujo traço constante é que esta estruturalmente sempre prestes a sair de si mesma na ação, sempre em vias de tornar-se outra e, com isso, de romper a ordem da repartição entre os seres que é uma forma da justiça.

            Tucídides, que pensa a ordem não tanto como o respeito de certas diferenças entre o homem e o que não é ele, mas como uma disposição interna à própria natureza humana, que constitui então o objeto de uma definição psicológica.

            No homem coexistem faculdades opostas, de um lado esta a ordem do racional, que governa a boa decisão e inspira a capacidade de prever os acontecimentos e do outro o impulso e as paixões, que movem o desejo e a esperança, aliando-se para levar o homem a agir inconsideravelmente e a tornar-se o joguete do acaso no domínio do que escapa à razão. É ainda a separação dos povos e das culturas que confere ao mundo sua ordem, em outras palavras, sua justiça. A ordem é sinônimo de reunião dos povos sob uma mesma autoridade, uma única arché, uma única dominação. Na Europa os povos, “diz-se, são autônomos e independentes uns dos outros”. A Fortuna, que é também justiça, fez dos romanos seus instrumentos para unificar assim o mundo. Se suscita, atiça guerras civis e delas se alimenta ao mesmo tempo, é porque a parte desejante do homem escapou à autoridade da razão para aderir à a esperança desarrazoada e da violência. O que vale para os indivíduos vale também para as cidades.