Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos
Por Eliete Silva Cardoso | 04/04/2017 | ResumosTrabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos
CARDOSO,Eliete Silva
O artigo intitulado acima de Saviani (2007) está dividido em cinco tópicos. Mas antes de desenvolvê-los, o autor procura explicar ao leitor quanto aos termos “ ontológicos” e “históricos” ligados pela conjunção “e”, que segundo ele não se trata de analisar os fundamentos ontológicos e depois em acréscimo, examinar os fundamentos históricos, uma vez que o ser do homem e, portanto, o ser do trabalho, é histórico. Assim, com o estreito vínculo ontológico-histórico próprio da relação entre trabalho e educação, impõe-se reconhecer e buscar compreender como se produziu historicamente, a separação entre trabalho e educação.
Fundamentos histórico-ontológicos da relação trabalho-educação
Sendo trabalho e educação atividades especificamente humanas, faz os seguintes questionamentos: quais então as características do ser humano que lhe permitem realizar as ações de trabalhar e de educar? Ou: o que é que está inscrito no ser do homem que lhe possibilita essas ações?
Segundo Aristóteles, uma definição dá-se pelo gênero próximo, o que tem em comum com outros seres de espécies diferentes- animal; e pela diferença específica, o que distingue determinado ser dos demais do mesmo gênero, no caso o homem- a racionalidade. Consequentemente, esta assume o caráter de atributo essencial do ser humano.
Assim entendido o homem, vê-se que embora trabalhar e educar possam ser reconhecidos como atributos humanos, eles o são em caráter acidental, e não substancial. Com efeito, Aristóteles, considerando o pensar, contemplar reputa o ato produtivo, o trabalho, como uma atividade não digna de homens livres.
Bergson definindo a inteligência pela fabricação de objetos, fenômeno identificado como comum aos animais, encontra no homem a da fabricação de objetos artificiais. Mas, embora o ato de fabricar em que se expressa a racionalidade seja específico do homem, este autor não o considera suficiente para definir a essência humana. Marx & Engels(1974) diz que podemos distinguir o homem dos animais, pela consciência, religião ou outros, porém, ele se diferencia propriamente a partir do momento em que começa a produzir seus meios de vida.
Para Saviani, o ato de agir sobre a natureza transformando-a em função das necessidades humanas é o que se conhece como o nome de trabalho. Pode-se então, dizer que a essência do homem é o trabalho. A essência humana não é uma dádiva divina ou natural, é produzida pelo próprio homem: um processo histórico.
Para ele, a existência humana depende da produção do próprio homem, isso significa que o homem necessita aprender a ser homem, a formar-se homem, portanto, um processo educativo que origina-se coincidentemente com a origem do homem mesmo.
Nas comunidades primitivas a educação coincidia totalmente com o fenômeno anteriormente descrito. Os homens apropriavam-se coletivamente dos meios de produção da existência. Não havia ali a divisão em classes, dava-se a apropriação coletiva da terra, constituindo a propriedade tribal na qual os homens produziam sua existência em comum e se educavam nesse mesmo processo.
Estão aí os fundamentos histórico-ontológicos da relação trabalho-educação. Fundamentos históricos porque referidos a um processo produzido e desenvolvido ao longo do tempo pelo próprio homem; ontológicos, pois o produto dessa ação, é o próprio ser dos homens.
A emergência histórica da separação entre trabalho e educação
Com o desenvolvimento da produção houve a apropriação privada da terra que gerou a divisão de classes dos homens: proprietários, que vivem do trabalho alheio; não proprietários, que mantém-se a si mesmo e ao dono da terra.
A partir do escravismo antigo passa a surgir por conta desta divisão de classes a educação de homens livres e a de escravistas. A primeira deu origem à escola que identificou-se como educação propriamente dita pela sua especificidade, em contraposição àquela do processo produtivo.
Na Grécia, a escola se desenvolverá como paidéia, enquanto educação dos homens livres, em oposição à duléia, que implicava a educação dos escravos, esse, fora da escola, no próprio processo de trabalho. Com a ruptura do modo de produção escravista a ordem feudal faz surgir um tipo de escola. O modo de produção capitalista provocará mudanças pondo em posição central o Estado, forjando a ideia da escola pública, universal, gratuita e obrigatória.
Saviani (1994, p. 162), fala que a escola, desde suas origens, foi posta do lado do trabalho intelectual. Foi assim no Egito, Grécia, Roma, e na Idade Média. Nesses contextos, as funções manuais não exigiam preparo escolar, o aprendiz (trabalhador) adquiria o domínio do ofício exercendo-o juntamente com os oficiais com a orientação dos “mestres de ofícios”.
Questionamento da separação e tentativas de restabelecimento do vínculo entre trabalho e educação
Com o advento da indústria moderna houve uma crescente redução na qualificação específica, por conta da introdução de máquinas que passaram a executar a maior parte das funções manuais. Essa nova forma de produção da existência humana determinou a reorganização das relações sociais. Os países mais desenvolvidos assumiram a tarefa de organizar sistemas nacionais de ensino, buscando generalizar a escola básica. Portanto, à Revolução Industrial correspondeu uma Revolução Educacional: aquela colocou a máquina no centro do processo produtivo; esta erigiu a escola em forma principal e dominante de educação.
A universalização da escola primária promoveu a socialização dos indivíduos nas formas de convivência da sociedade moderna. Assim, além de trabalhar com as máquinas, era necessário também realizar atividades de manutenção e outros. Subsistiram, pois, no interior da produção, tarefas que exigiam qualificações específicas obtidas por um preparo intelectual também específico (cursos profissionalizantes).
Constatou-se, portanto que o impacto da Revolução Industrial pôs em questão a separação entre instrução e trabalho produtivo, forçando a escola a ligar-se de alguma forma, ao mundo da produção.
A referida separação teve uma dupla manifestação: a proposta dualista de escolas profissionais para os trabalhadores e “escolas de ciências e humanidades” para os futuros dirigentes; e a de escola única diferenciada, que efetuava internamente a distribuição dos educandos segundo as funções sociais para as quais se o destinavam em consonância com as características que geralmente decorriam de sua origem social.
Esboço de organização do sistema de ensino com base no princípio educativo do trabalho
A base em que se assenta a estrutura do ensino fundamental é o princípio educativo do trabalho. O conceito e o fato do trabalho teórico-prática, é o princípio educativo imanente à escola elementar, já que a ordem social e estatal é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho (Gramsci, 1975).
Uma vez que o princípio educativo é imanente à escola elementar, significa que nesse ensino a relação entre trabalho e educação é implícita e indireta. Aprender a ler, escrever e contar, e dominar os rudimentos das ciências naturais e sociais constituem pré-requisitos para compreender o mundo. No ensino médio, ao contrário, essa relação entre educação/trabalho, conhecimento/atividade prática deverá ser tratada de maneira explícita e direta, tendo como papel fundamental recuperar essa relação entre o conhecimento e a prática do trabalho.
O ensino médio envolverá, pois, o recurso às oficinas nas quais os alunos manipulam os processos práticos básicos de produção, propiciando aos alunos o domínio dos fundamentos, não de formação de técnicos especializados como o ensino médio profissionalizante, mas de politécnicos. Para Saviani, politecnia significa aqui, especialização como domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna. Assim, segundo Gramsci, os educandos passariam da anomia à autonomia, pela mediação da heteronomia.
Assim, além do ensino superior destinado a formar profissionais de nível universitário, formula-se a exigência da organização da cultura superior com o objetivo de possibilitar a todos a difusão e discussão dos problemas que afetam o homem contemporâneo.Com isso, além de estimular à continuidade do desenvolvimento cultural e da atividade intelectual dos trabalhadores, tal mecanismo funciona como um espaço de articulação entre os trabalhadores e universitários, buscando vincular de forma indissociável o trabalho intelectual e o trabalho material.
Conclusão:
a controvérsia relativa à politecnia
Saviani abordou mais extensamente a questão da educação politécnica no livro Sobre a concepção de politecnia, que resultou do Seminário “Choque Teórico”. Nesse ínterim considerou que na abordagem marxista o conceito de politecnia implica a união entre instrução intelectual e trabalho produtivo.
Depois de minuciosos estudos filológicos da obra de Marx, Manacorda conclui que a expressão “educação tecnológica” traduziria com mais precisão a concepção marxiana do que “politecnia” ou “educação politécnica”. Segundo ele, em ambos os textos Instruções e O capital há uma substancial identidade na definição do ensino que é adjetivado de “tecnológico”, aparecendo o termo “politécnico” apenas nas Instruções(Manacorda,1991,p.30). Para Saviani(2007), é importante observar que, do ponto de vista conceitual, o que está em causa é um mesmo conteúdo. Trata-se da união entre formação intelectual e trabalho produtivo.
O termo “politecnicismo”,na visão de Manacorda, destaca a ideia da multiplicidade da atividade( a respeito da qual Marx havia falado de uma sociedade comunista na qual, por exemplo, os pintores seriam “homens que também pintam”); “tecnologia”, a possibilidade de uma plena e total manifestação de si mesmo, independentemente das ocupações específicas da pessoa.
Para Saviani, essas considerações são feitas a partir da observação de que Marx, em O capital, se refere às “ escolas politécnicas e agronômicas e às de ensino profissional onde os filhos dos operários recebem algum ensino tecnológico e são iniciados no manejo prático dos diferentes instrumentos de produção” ( Marx,1968, p.559). Este, reconhece a existência dessas escolas criadas pela própria burguesia para atender à exigência objetiva imposta pela grande indústria, de substituir o indivíduo parcial pelo indivíduo completamente desenvolvido. Em consequência disso, Manacorda, entende que o adjetivo “politecnia” se refere à escola doada pela burguesia aos operários.
Paolo Nosella (2006), no estudo “Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores: para além da formação politécnica”, retoma o aspecto polêmico. Nesse texto faz duas ressalvas à abordagem apresentada anteriormente, a primeira refere-se a afirmação de Saviani que as expressões “ensino tecnológico” e “ensino politécnico” podem ser consideradas sinônimas em Marx. Para ele, a expressão “cautelosa” não surte efeito, uma vez que as análises de Manacorda são contundentes no destacar a diferença entre as duas expressões para Marx, que atribuía à moderna ciência da tecnologia um sentido mais progressista do que a politecnia.
Saviani não fixou na etimologia como Manacorda(2006), mas na semântica, entendida como o estudo da evolução histórica do significado das palavras. E isso já o conduz à outra ressalva apresentada por Nosella. Esta diz respeito à referência que Saviani fez sobre a preservação do termo politecnia na tradição socialista. Nosella afirma que “na União Soviética, sobretudo após Lenin, a categoria de politecnia deixou de ser vista como estrutura estruturante do sistema de ensino como um todo. Paolo reconhece que o sentido geral que Lenin deu ao termo foi “genuinamente marxista”.
Assim, independentemente das razões que levaram Lenin a esse entendimento, o certo é que a semântica do termo politecnia não corresponde ao seu sentido etimológico. Respeitando o seu significado semântico, Saviani conceituou politecnia referindo-se a fundamentos científicos das múltiplas técnicas que caracterizam a produção moderna e em politecnia, os significados etimológicos dos termos utilizados por Marx: educação politécnica e educação tecnológica, destacados por Manacorda nas denominações de “politecnicismo” e “tecnologia”. O autor afirma que as análises formuladas por Nosella e aquelas por ele desenvolvidas não se chocam, e sim complementam-se e enriquecem-se mutuamente. Diz ainda que não será o uso ou não de determinado termo que as colocará em confronto. E se caso for, abrirá mão do termo politecnia, sem prejuízo para a concepção pedagógica que vem tentando elaborar.
Referências bibliográficas
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DERMEVAL SAVIANI, doutor em filosofia da educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e livre-docente em história da educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), é professor emérito da Faculdade de Educação da UNICAMP e coordenador geral do Grupo de Estudos e Pesquisas “História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR). Publicou grande número de livros, capítulos de livros e artigos em revistas nacionais e internacionais. Entre eles destacam-se: Educação: do senso comum à consciência filosófica (Campinas: Autores Associados, 1980 – 17. ed., 2006); Escola e democracia (Campinas: Autores Associados, 1983 – 38. ed., 2006); Pedagogia histórico-crítica. (Campinas: Autores Associados, 1991 – 9. ed., 2005); A nova lei da educação: trajetórias, limites e perspectivas (Campinas, Autores Associados, 1997 – 10. ed., 2006); Da nova LDB ao novo Plano Nacional de Educação: por uma outra política educacional (Campinas: Autores Associados, 1997 – 5. ed., 2004). E-mail: [email protected] Recebido em outubro de 2006