“Toda a Humanidade é Una”

Por Julio Cesar Souza Santos | 03/03/2017 | Sociedade

 

Qual Era a Posição da Bíblia Sobre a Origem e a Ascendência da Raça Humana?  Como Cristóvão Colombo Descreveu os “Índios” Descobertos na América? Como Foi a Luta de Las Casas em Favor dos Índios?

 

 

 

 

Em, 1537 o cartógrafo português Pedro Nunes ao cartografar o mundo descoberto no Ocidente, rejubilou com “novas ilhas, novas terras, novos mares e um novo céu”. A descoberta da América colocou os Europeus frente a frente dos surpreendentes continentes americanos os habitats das raças lendárias e “monstruosas” que estavam descritas na “História Natural” de  Plínio e que desde então tinham fascinado os viajantes. Quando os Europeus apelidaram de “índios” do Novo Mundo, não só cometerem um erro geográfico como também proclamaram as suas esperanças de encontrarem criaturas fantásticas. 

 

Cristóvão Colombo relatou que “nestas ilhas não encontrei até agora nenhuma monstruosidade humana, como muitos esperavam e, pelo contrário, entre todos esses povos o bom companheirismo é estimado. Assim, não encontrei nem monstros ou qualquer notícia de povo que coma carne humana e, aliás, esses índios são muito bem constituídos, com corpos perfeitos e excelentes caras”. Embora essa tranquilidade despojasse as novas terras de um encanto lendário, as “raças monstruosas” continuaram a viver. A poesia, o folclore e o romance repetiam histórias antigas de “comedores de homens” e das guerreiras Amazonas.

 

No pensamento cristão medieval não havia lugar para instituições evolutivas, já que toda humanidade começou ao mesmo tempo e todo o espectro das instituições humanas foi revelada e cumprido na Bíblia. Mas algumas pessoas tinham-se desviado da norma. Depois do Dilúvio, os descendentes culpados de Caim ou de Ham, filho de Noé, mereceram exílio e castigo, que ainda maculavam os seus corpos e as suas instituições.

 

Três vezes a cultura uniforme da humanidade foi corrompida pela diversidade, pois Caim foi punido por assassinar Abel, sendo exilado para leste do Éden, onde ele e sua prole encontraram estranhos costumes. Mais tarde, os filhos de Noé foram dispersos pela Terra para seguirem seus caminhos separadamente. E depois a humanidade única do homem foi mais uma vez misturada em Babel. A diversidade na religião, língua ou qualquer outra coisa era a marca de Caim.

 

Quando Colombo informou que as pessoas que encontrou não eram monstros, mas apenas selvagens, apontou inconscientemente para uma nova ciência de cultura e para uma ideia de progresso. Os extremos de diversidade humana deixaram de ser exilados para reinos de fantasia, pois agora podiam ser observados de perto. Por muito medieval que fosse a geografia de Colombo, com sua nova descrição minuciosa dos rios do Éden, todavia, quando descreveu os nativos, falou inesperadamente no tom de um antropólogo no campo, pois revelou os seus “corpos muito perfeitos e excelentes caras; o cabelo usam-no sobre as sobrancelhas, exceto uma madeixa atrás; que usam comprida e nunca cortam. Alguns deles pintam-se de preto e alguns de branco, e outros de vermelho e outros com o que têm”.

 

Os Europeus ainda não tinham associado “raça” ou níveis de humanidade, com a cor da pele. Consideravam a sua própria cor a cor “normal” original da pele humana. As peles escuras dos Africanos explicavam-nas pela queimadura do Sol nos climas quentes e isso, claro, afirmava a humanidade dos povos africanos. A experiência europeia era ainda demasiado limitada para suscitar questões a respeito da correlação da cor da pele com o clima. A Bíblia era suficientemente clara na origem única e na ascendência homogênea de toda raça humana. Como todos os homens descendiam de Adão e Eva, não havia lugar para inferioridade de herança genética.

 

A descoberta da América abriu intrigantes e revolucionárias possibilidades e, no século XVIII, já era evidente que existiam muitas espécies de plantas e animais “peculiares” daquelas partes do Mundo. Em 1789, Jefferson observou que não havia uma espécie única de ave terrestre e que desconfiava não haver uma espécie única de quadrúpede comum à Europa e à América. Como explicar a presença na América da marmota e outros roedores? Se esses animais tinham estado na Arca de Noé, também não deveriam encontrar-se em outros lugares? Alguns naturalistas sugeriam que, em vez de uma única criação, no Princípio, no Jardim do Éden, talvez tivessem havido “criações separadas” em outras partes do Mundo. Talvez Deus tivesse criado espécies de plantas e animais peculiarmente adequadas para cada habitat continental. Sendo assim, por que não, também, “criações separadas” de espécie humana?

 

Os problemas que a Reforma Protestante criou à Igreja Romana deram à questão da igualdade humana uma nova premência, pois só 25 anos depois de Colombo desembarcar na América, Martinho Lutero colocou suas teses na porta da Igreja de Wittenberg. Na Europa, a Igreja de Roma estava perdendo almas em favor das heresias protestantes, as quais se multiplicavam. Ao mesmo tempo, o Novo Mundo ofereceu seus incontáveis pagãos para uma imensa colheita de novos crentes. E os missionários espanhóis se sentiram encorajados com os êxitos iniciais.

 

Em 1540 um cálculo otimista indicava seis (6) milhões o número de índios americanos batizados e, no entanto, o estatuto humano do índio americano era cada vez mais discutido. Os conquistadores espanhóis tinham razões para insistir na inferioridade natural dos Índios, o que significava que Deus os destinara para escravos. Houve vivos debates acerca das faculdades dos nativos do Novo Mundo.

 

O Papa Paulo III declarou-se patrocinador de esforços missionários no Novo Mundo, embora quando jovem, tenha sido uma caricatura da sensualidade da época. Tendo explorado as relações da sua família para se tornar tesoureiro da Igreja Romana, construiu um grande palácio em Roma e fez quatro (4) filhos na sua amante romana. O Papa Bórgia Alexandre VI nomeou-o cardeal em 1493, já com mais de 50 anos, quando então ele abandonou as farras. Aos 67 anos fez-se Papa, organizando uma reforma católica e, quando a disputa a respeito da humanidade dos Índios chegou a Roma, Paulo III tentou arrumar o assunto com a sua eloquente bula “Sublimis Deus”:

 

_ Deus amava tanto a raça humana que não só criou o homem de tal modo que ele pudesse participar do bem que outras criaturas fruem, como também o dotou com a capacidade de atingir o inacessível e invisível. Bem Supremo e olhá-lo cara a cara (...) Tampouco é verossímil que alguém que possua tão pouco discernimento ao ponto de desejar a fé e contudo ser destituído da faculdade mais necessária para lhe permitir recebe-la. Por isso Cristo disse aos pregadores da fé que Ele escolheu para esse mister: “Ide e ensinai todas as nações”. Disse todas, sem exceção, porque todas são aptas a receber as doutrinas da fé.

 

Mas, o heroico defensor dos Índios foi também o primeiro homem a receber ordens sagradas na América. Nascido em Sevilha, Bartolomeu de Las Casas encontrava-se lá quando Cristóvão Colombo regressou da sua primeira viagem, em 1493. Com 19 anos teve um vislumbre dos índios que Colombo fez desfilar pelas ruas e, quando seu pai regressou da segunda viagem de Colombo, consta que deu de presente um escravo índio a Las Casas. Ele tomou gosto à vida de conquistador quando foi para a América em 1502, adquirindo escravos índios os quais os fez trabalharem nas minas e acumulando grande riqueza.

 

Mesmo depois de receber ordens sagradas, por volta de 1512, permaneceu cego para o tormento dos índios. Até que um dia (em 1514) na sua propriedade cubana, quando estava preparando o sermão de Domingo de Pentecoste, foi subitamente iluminado. “A oferta daquele que sacrifica uma coisa injustamente obtida é ridícula e as dádivas de homens injustos não são aceitas”. Passados poucos dias, repetindo a experiência de São Paulo, era um homem diferente. Absolutamente convencido, agora, “de que tudo o que foi feito até este momento aos Índios foi injusto e titânico”, ele decidiu devotar sua vida “à justiça desses povos índios e condenar o roubo, o mal e a injustiça cometidos contra eles”.

 

O clímax público da luta de Las Casas constituiu um espetáculo único na história da colonização e, em 6 de abril de 1550, Carlos V instigado pelas dívidas e pelas acusações de Las casas ordenou que as conquistas do Novo Mundo fossem suspensas e só reatassem depois de os seus teólogos terem chegado a um acordo quanto a um procedimento justo.

 

Carlos V demonstrou confiança no critério moral dos seus teólogos, pois embora eles não lhe fornecessem uma resposta simples e rápida, também não o decepcionariam totalmente. Os escrúpulos do imperador não deixariam de produzir efeitos no futuro do Mundo. Os colonos espanhóis, o grupo dos conquistadores e outros opositores das novas leis tinham conquistado um defensor de peso.

 

O Dr. Juan Ginés de Sepúlveda – humanista erudito e discípulo de Aristóteles – nunca havia visitado o Novo Mundo, mas tinha firmes opiniões, as quais eram apoiadas pelo seu ensaio que argumentava ser justo guerrear contra os Índios e escraviza-los. Opondo-se à Sepúlveda, Las Casas opunha-se também a Aristóteles, cuja “Política” Sepúlveda acabara de traduzir para o espanhol. A proposição de Aristóteles de que alguns homens são por natureza escravos fornecia a base ao argumento de Sepúlveda. Tal como as crianças são naturalmente inferiores aos adultos, as mulheres aos homens e os macacos aos seres humanos, assim também os Índios – dizia – eram naturalmente inferiores aos Espanhóis.

 

A fim de decidir entre Sepúlveda e Las Casas, em julho de 1550 o imperador Carlos V anunciou uma congregação de teólogos e conselheiros, que se reunião em Castela. Las Casas já havia preparado uma bula sobre os Índios (com 870 páginas) a fim de provar que eles eram modelos de razão e virtude. Em quase todos os aspectos, argumentou, os Índios eram superiores aos antigos Gregos e Romanos e, em alguns aspectos, eram até mesmo superiores aos Espanhóis.

 

Las Casas não negou declaradamente a doutrina aristotélica da escravidão natural, mas insistiu em que “os escravos naturais” eram uma espécie de monstruosidade, coisa que, seguramente, não incluía os Índios. O Conselho – de 14 membros – composto por alguns dos homens mais cultos e poderosos da época, tomou a missão a sério. Solenidade e “suspense” rodearam o grande debate entre os dois paladinos de causas opostas.

 

O Conselho jamais chegou a um acordo e, consequentemente, nunca apresentou uma decisão ao rei. Ambas as facções clamaram vitória e, segundo todos os testes, Sepúlveda revelou-se o porta-voz da política espanhola na vasta arena das Américas. Os conquistadores adoravam-no, mandavam-lhe presentes e transformaram-lhe as obras na sua defesa ortodoxa.

 

Las Casas continuou a ser o porta-voz da doutrina professada pela Igreja Romana e, claro, não conseguiu converter conquistadores em pacifistas. Mas, imprimiu a marca da Igreja na humanidade dos Índios e, em 1566 quando voltou a conceder autorizações de descoberta e conquista, o rei Carlos V se sentiu constrangido a exortar todos a respeitarem as leis de uma guerra justa. Se os colonos espanhóis achassem necessário usar força contra os nativos não deveriam usar mais do que a necessária e, em circunstância alguma, deveriam escravizar os índios. Numa homenagem a Las Casas, o soberano baniu a palavra “conquista”, que no futuro seria substituída por “pacificação”.

 

A oportunidade de refletir na variedade e unidade da humanidade que a descoberta da América e das extensas colônias impôs ao Ocidente não foi aproveitada pelos povos de outras partes do Mundo. O Islã expandiu-se como um império em ampliação em vez de por colônias-à-distância, pela conquista e ocupação em vez de por postos avançados missionários.

 

Mas a teologia muçulmana e os acasos da história inocularam o Islã contra o vírus do racismo. O dogma sólido da igualdade de todos os crentes, a propagação do islamismo através da África negra, os casamentos frequentes com escravas e concubinas de raças diferentes desencorajou qualquer crença muçulmana em níveis raciais de humanidade. Para os Muçulmanos a distinção de suprema importância residia entre crentes e não crentes.

 

Por razões completamente diferentes, o problema da igualdade humana não foi grave na China. Aí, onde a tradição e o costume imperavam, as melhores qualidades da vida eram encaradas como produto da tradição e do costume chineses. E a tradição isolacionista afastou os Chineses de reencontros com povos distantes e diferentes. Em nenhum lugar da Ásia oriental, no Japão ou na Coreia, tampouco encontramos nada que se pareça com o racismo ocidental.

 

Só na Índia, a casta racial se tornou integrante da religião. Embora a origem das castas esteja oculta nas névoas pré-históricas, o sistema de castas hindu pode ter sido causado por diferenças de cor. “Varna”, a palavra hindu para dizer casta, significa “cor”, mas talvez a sua aplicação original se referisse a qualquer outra coisa que não a cor da pele.

 

 

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