Tocqueville 200 Anos
Por Félix Maier | 16/05/2007 | PolíticaFélix Maier
"Eu confesso que na América eu vi mais do que a América; eu vi a imagem da democracia mesmo, com suas inclinações, seu caráter, seus preceitos e suas paixões, o suficiente para aprender o que devemos temer ou o que devemos esperar do seu progresso” (Alexis de Tocqueville, 1834).
“A vantagem real da democracia não é, como já se disse, favorecer a prosperidade de todos, mas apenas servir ao bem-estar do maior número” (Alexis de Tocqueville, in A Democracia na América).
Em meados do desastroso Annus Lulae 3 (Annus Domini 2005), quando pipocavam denúncias e mais denúncias da corrupção petista, o senador Eduardo Suplicy deu de presente a Lula o livro mais famoso de Alexis de Tocqueville, A Democracia na América. Provavelmente, era uma indireta de Suplicy ao presidente, para que não se candidatasse à reeleição, sistema eleitoral condenado por Tocqueville no citado livro, pois o governante – segundo o liberal francês -, desde o primeiro dia da posse, não pensaria em outra coisa senão na reeleição, utilizando toda a máquina administrativa federal para tal intento. Não creio que Lula tenha lido o livro, um calhamaço de quase 600 páginas (*), pois o próprio presidente já declarou que recebe muitos livros de presente e apenas folheia algumas páginas. Talvez o livro Sobre o Ócio, de Sêneca, fosse mais recomendável para Lula, especialmente como companhia para suas ociosas viagens turísticas a bordo do Air Force 51, o Aerolula...
Em 29 de julho de 2005, deveria ter sido comemorado o 200º aniversário do politólogo e sociólogo francês Alexis Charles Henri Maurice Clérel de Tocqueville (1805-1859). Nome longo, de um verdadeiro príncipe, que na verdade é, ao menos em Sociologia, Tocqueville foi um dos mais ilustres liberais clássicos que o mundo já conheceu, ao lado de Adam Smith, Friedrich von Hayek, Michael Novak, Ludwig von Mises, Raimond Aron, Jean-François Revel, Milton Friedman, além dos brasileiros Antônio Paim, Roberto Campos e José Osvaldo de Meira Penna. E por que Tocqueville não mereceu nenhum tipo de comemoração? Da mesma forma que o presidente Emílio Garrastazu Médici, um dos mais ilustres presidentes do Brasil, não mereceu nesse ano nenhuma lembrança pela passagem dos 100 anos de seu nascimento: boicote dos meios de comunicação. A mídia brasileira, dominada por um ranço revanchista de esquerda sem limites, para quem o Muro de Berlim continua mais firme do que as milenares muralhas da Cidadela de Saladino, no Cairo, nomes como Tocqueville são olimpicamente ignorados, como se nunca tivessem existido, e governantes como Médici são satanizados como a pior coisa que já existiu nestes trópicos. O pouco que foi dito sobre Tocqueville no Brasil nos últimos tempos pode ser visto no texto de Luiz Fernando Alves Evangelista, LULA PRESIDENTE: Uma Reflexão Sobre a Democracia no Brasil (http://www.achegas.net/numero/oito/luiz_evangelista_08.htm).
Em 1831, com apenas 26 anos de idade, Tocqueville viajou
para a América do Norte, vindo a publicar em 1835 o primeiro volume de
“Descontente com o
novo regime implantado na França com a Revolução de 1830, Alexis de
Tocqueville, descendente de um família ultra-realista que padecera o diabo na
época do Terror (1793-4), decidiu-se viajar para a América do Norte. Ele e um
outro jovem jurista como ele, chamado Gustave de Beaumont, encontraram um
pretexto para vir estudar as instituições penais norte-americanas, aportando em
Newport, Rhode Island, em nove de maio de 1831. Durante os onze meses
seguintes, os dois farão um longo périplo de
Em seu livro, Tocqueville profetizou o avanço dos americanos, em levas migratórias, do Texas até o Pacífico, terras que foram conquistadas à força do México. Se em 1831 eram 24 Estados, hoje o gigante americano é composto por 50, além do Distrito de Colúmbia, onde fica a capital Washington, e Porto Rico, Estado livre associado. A respeito, já questionava um célebre barbudo alemão: “É uma infelicidade se a rica Califórnia foi arrancada dos mexicanos preguiçosos que não sabiam o que fazer dela?” (Karl Marx, in Nova Gazeta Renana, 1849; cit. por Ipojuca Pontes in Politicamente Corretíssimos, pg. 21).
O direito sagrado da propriedade é, inequivocamente, um dos fatores que proporcionaram a riqueza americana: “Por que, nos Estados Unidos, país da democracia por excelência, ninguém faz ouvir contra a propriedade em geral as mesmas queixas que muitas vezes ressoam na Europa? Será necessário dizê-lo? É que na América não existem proletários. Como cada qual tem um bem particular a defender, reconhece em princípio o direito de propriedade”. Tocqueville foi o primeiro pensador a observar o que viria a ser denominado “paradoxo da pobreza”. Depois de uma viagem que fez à Inglaterra, em 1833, escreveu Mémoire sur le paupérisme, onde diz: “Quando se cruza os vários países da Europa, somos surpreendidos por um espetáculo extraordinário e aparentemente inexplicável. Os países que aparecem como os mais empobrecidos são aqueles que na realidade abrigam menores quantidades de indigentes”. A Inglaterra, mais industrializada que os outros países europeus, na época comportava maior número de indigentes nas ruas!
Tocqueville era católico fervoroso. Deus, religião e fé são palavras corriqueiras em sua obra. Qual o sociólogo, hoje, que ousaria escrever sobre Deus, sobre a importância da religião entre os povos? A maioria dos sociólogos atuais, como Emir Sader e FHC, é composta por esquerdistas e ateus (desculpe o pleonasmo!). Tocqueville foi um precursor de Max Weber ao analisar a força do protestantismo, vale dizer, do puritanismo na criação do pujante capitalismo americano. “Quando cheguei aos Estados Unidos, foi o aspecto religioso do país que desde logo me atraiu a atenção. À medida que prolongava minha permanência, percebia as grandes conseqüências políticas que decorriam desses fatos novos. (...) A cada um deles, exprimi minha admiração e expus minhas dúvidas: achava que todos aqueles homens não diferiam entre si a não ser em minúcias; mas todos atribuíam principalmente à completa separação da Igreja e do Estado o império pacífico que a religião exerce em seu país” (pg. 227). E complementa: “Foi a religião que deu nascimento às sociedades anglo-americanas: é preciso nunca esquecer isso; nos Estados Unidos, a religião confunde-se, pois, com todos os hábitos nacionais e todos os sentimentos que a pátria faz nascer; isso lhe dá uma força particular”. Tocqueville observou que se, de um lado, havia uma profusão de credos protestantes nos EUA, por outro, todos tinham o mesmo objetivo final, já que “a moral do cristianismo é a mesma”: “Nos Estados Unidos, as seitas cristãs variam ao infinito e se modificam constantemente, mas o próprio cristianismo é um fato estabelecido e irresistível, que nunca se faz necessário atacar nem defender. Tendo admitido sem exame os principais dogmas da religião cristã, os americanos são obrigados a receber da mesma maneira grande número de verdades morais que daí decorrem e que por aí se explicam” (pg. 323). Tocqueville não viu em outro lugar em que “o amor ao dinheiro tenha um lugar maior no coração do homem e onde se professe desprezo tão profundo pela teoria da igualdade permanente de bens. Mas a fortuna circula ali com uma rapidez incrível, e a experiência ensina que é raro ver duas gerações recolherem o seu favor” (pg. 48). Tocqueville comprovou que no capitalismo americano a mobilidade social é espantosa, os ricos de hoje podem ser os arruinados de amanhã; os milionários de amanhã podem ser os pobres de hoje. Para o autor francês, um ponto fundamental para a pujança americana foi o nível médio em conhecimentos alcançado por seus cidadãos: “Por isso, encontra-se uma multidão imensa de indivíduos que têm o mesmo número de noções mais ou menos iguais em matéria de religião, história, ciências, economia política, legislação e governo” (pg. 49).
Premonição de Tocqueville a casos como o do Iraque sob o governo George W. Bush, que quer fazer daquele país uma democracia? “De resto, muito longe estou de crer que devemos seguir o exemplo da democracia americana ponto por ponto e imitar os meios de que se serviu para atingir com os seus esforços essa meta; pois não ignoro qual é a influência exercida pela natureza do país e os fatos antecedentes sobre as constituições políticas, e consideraria um grande mal para o gênero humano se a liberdade tivesse de produzir-se em todos os lugares seguindo os mesmos caminhos” (pg. 2340).
Há equívocos em Tocqueville, ao falar de raça: “Não creio que a raça branca e a raça negra possam vir, em parte alguma, a viver em pé de igualdade” (pg. 273). Porém, o sociólogo observa que nos EUA já existe uma enorme miscigenação: “Existem partes da América onde o europeu e o negro se cruzaram de tal forma que é difícil encontrar um homem que seja inteiramente branco ou inteiramente negro: chegadas a esse ponto, pode-se dizer que as raças estão realmente misturadas” (pg. 273).
Chamou a atenção de Tocqueville algumas excentricidades puritanas antigas, então em franco desuso, como a proibição do uso do tabaco. “Em data de 1649, assiste-se à criação, em Boston, de uma associação solene cuja finalidade é coibir o luxo mundano dos cabelos longos” (pg. 39).
Tocqueville critica a legislação americana sobre fiança, cujos “costumes parecem contrários ao conjunto do estado social”: “A legislação civil e criminal dos americanos não conhece mais que dois meios de agir, a prisão e a fiança. O primeiro ato de um processo consiste em obter fiança de um réu, ou, se ele recusa, em fazê-lo encarcerar; depois é que se discute a validade do título ou a gravidade das acusações. É evidente que semelhante legislação é dirigida contra o pobre e favorece apenas o rico. O pobre nem sempre pode pagar a fiança, mesmo em matéria civil, e se é constrangido a ir esperar a justiça na prisão, depressa a sua inação forçada o reduz à miséria” (pg. 43).
Para finalizar, voltemos a Lula e ao livro de Suplicy. Considerando o lamaçal em que nosso presidente se afundou, e tendo em vista preservar a biografia de Lula, sugiro que nosso presidente leia O Vendedor de Passados, do escritor angolano José Eduardo Aqualusa. Na obra, o personagem Félix tem a faculdade de criar biografias ou “passados”, de acordo com o que desejam os interessados que o procuram. Quem sabe Lula não peça a criação de um novo personagem, cheio de virtudes, longe da imagem que passou a ter depois que se comprovaram as denúncias da corrupção petista, da qual ele e unicamente ele é o principal culpado. Quem sabe Lula não possa encomendar um passado limpo a Félix – ao personagem de Aqualusa, não a mim! – recebendo, por exemplo, um trono num emirado árabe? Ou então Lula não passe a ser presidente perpétuo de uma republiqueta africana, do tipo “Pongo Pongo”, imortalizado no livro satírico de Meira Penna, Cândido Pafúncio?
(*) TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América, Editora Itatiaia Limitada, Belo Horizonte, 1987, 3ª edição (Tradução de Neil Ribeiro da Silva).
Alexis de Tocqueville