Tia Clara
Por Romano Dazzi | 03/06/2009 | CrônicasTIA CLARA
de Romano Dazzi
- Tia Clara, chegamos!!
Era o momento em que ela se sentia indefesa e ameaçada, como uma cidade romana sitiada pelos bárbaros.
Para ela, aquele simples anúncio soava como uma declaração de guerra, o temido início das hostilidades. E todos os dias o pesadelo se repetia.
Éramos quatro adolescentes agitados, barulhentos, bagunceiros; explodíamos, voltando da escola, depois de quatro longas horas de escravidão.
Largávamos em desordem na soleira da entrada todo o material escolar, as malhas de lã, os casacos, os sapatos pesados, e invadíamos a cozinha.
Comida, comida, comida! Como roedores gigantes, avançávamos sobre o que tivesse na mesa, desde que pudesse ser engolido, bebido ou mastigado.
Pão, bolachas, leite, queijo, maçãs, tudo era devorado.
Este festim durava no máximo dez minutos. E nesse tempo todo, Tia Clara ficava chocada e imóvel, repetindo todos os dias a mesma expressão, entre admirada e horrorizada . Quanta fome!
Mas deixe-me falar um pouco sobre a Tia Clara.
Era uma moça agradável, educada, com um porte distinto e sofrido.
Ainda muito jovem, tinha se apaixonado por um professor.
Ele era um homem sério duplamente casado: com a esposa e com a escola. Deixara-se embalar durante algumas breves semanas, pela paixão que Clara lhe despertara.
Houve uma tempestuosa troca de cartas, o brilho momentâneo de uma chama – não uma fogueira de praia, livre e selvagem, crepitando ao vento, como todos nós já experimentamos algum dia; mas um fogo comedido, controlado, doméstico, como o de uma lareira acolhedora ,
O professor logo voltou à razão e não quis mais vê-la.
Não eram ainda os tempos modernos; as meninas de então sofriam em silêncio e confiavam aos diários as suas mágoas e tristezas. Não se postavam na porta do namorado, (ou amante ou pretendente ou comprometido) para apregoar seus direitos.
Clara chorou um bom tempo, encerrada em sua torre de marfim, dedicada inteiramente à sua solidão; suas feições foram ficando mais finas, mais delicadas, confirmando o absurdo que com o sofrimento a garota se torna mais bonita, mais etérea, mais suave, mais feminina.
Feminilidade e sofrimento, infelizmente, parecem formar um par quase constante.
Nunca mais quis saber de outro homem e foi perdendo aos poucos o frescor, o viço; eu nunca diria que ela foi murchando; murcha uma maçã, murcha um cacho de uva, que perdem as formas, as cores, os contornos. Ela, Tia Clara, conservou toda a sua classe e foi adquirindo, pouco a pouco, uma expressão serena de dignidade elegante de mistério indisfarçável. .
Descobri muito mais tarde este seu longo caminho, essa lenta evolução para o equilíbrio interior e a independência de tudo que estava ao seu redor.
Bem, Tia Clara foi encarregada pelos nossos Pais, de cuidar de nos, por uns dois anos, durante o tempo escolar. Ela tinha uma empregada que a ajudava – não se dá conta de um bando de hereges, a não ser amarrando-os e ameaçando-os o tempo todo com as chamas do inferno.
Principalmente, quando são adolescentes.
Pensando bem, agora, à distância de tantos anos, foram meses bons, aqueles; meses felizes, produtivos, foram dois anos em que a cada dia conseguíamos acrescentar alguma coisa na nossa personalidade e no nosso conhecimento.
Todos nós devemos isso a Tia Clara.
Até o seu silêncio ensinava-nos alguma coisa.
Lembro-me que um dia tivemos que superar uma prova muito difícil; devíamos fazer uma composição, falando sobre alguém da família.
Faltavam personagens, faltavam idéias, faltava concentração, faltava sentimento.
Ficamos parados, os quatro, roendo as canetas, amassando as folhas de papel, revirando os cadernos, tentando encontrar uma gota que fosse, de comoção, no deserto árido de nossas almas.
Nada, nada, nada!
Por fim, foi Tia Clara que quebrou o gelo.
Perguntou se queríamos mesmo escrever sobre uma pessoa qualquer; falar, por exemplo, do Papai, contar alguma passagem interessante sobre a Mamãe; atiçou-nos, lançando idéias e propostas, como se fossem frutas a serem colhidas do pé, descascadas e... devoradas.
Cada um de nós escolheu uma pessoa e começamos a trabalhar febrilmente. Só eu continuei parado, com a caneta entre os dentes, sem saber como começar.
Foi então que Tia Clara me surpreendeu: “escreva sobre Tia Clara” – ela disse candidamente – “escreva o que acha de mim, o que lhe pareço, por que lhe sou indiferente , ou por que me ama ou por que me odeia....”
Deixou a frase no ar; e logo acrescentou: - “ melhor ainda, não escreva sobre mim; escreva para mim. Uma carta. Sim, uma carta, direta da sua caneta para os meus olhos; come se fosse da sua boca para os meus ouvidos.”
Pensou um pouco e concluiu: “da sua alma para a minha alma....”
Ora, Você já conheceu a sensação de ter experimentado inutilmente todas as chaves de um molho de cem; e de repente parece que uma força maior o leva a escolher uma – sem lhe dar tempo de duvidar ou de hesitar ; e você descobre que ela é a chave certa e sabe que é a única, a verdadeira, no meio de tantas , todas falsas e traiçoeiras.?
Assim me senti eu, naquele momento. Tia Clara me mostrara a chave certa.
E me ensinou a abrir o meu coração.
Foi uma carta singela, ingênua, primitiva; mas foi da minha alma para a dela e nos fez chorar, os dois, um nos braços do outro.
Tia Clara já se foi, há muitos anos e tenho a certeza que ela está agora mesmo colhendo feixes de magníficas rosas nos campos do Senhor .
Ela me deixou uma lição única, que quero repassar a quem me lê:
- Ponha a sua alma em todo o que fizer;
Tente transmitir tudo – sabedoria, ciência, conhecimento - diretamente da sua alma, para a alma de seu parceiro, de seu leitor, de seu ouvinte.
Mil flores se abrirão no seu caminho: Eu e Tia Clara garantimos.
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