Thomas S. Kuhn e o devir da história científica

Por Frei Jonas Matheus | 21/10/2011 | Filosofia

No campo da história científica, mais especificamente, engajado na corrente da autocorrigibilidade da Ciência deparamo-nos com Thomas Kuhn e com seus conceitos de paradigma, ciência normal e revolução científica, estes conceitos nos indicam um devir dialético da História da Ciência com a alternância das comunidades científicas no prestígio de engrandecerem no palco de sua ciência específica, o seu paradigma ou matriz disciplinar, como detentora de eficácia em determinado momento desta história, levando-a a escrever seus manuais até que surjam anomalias que fujam a sua capacidade de resolução instaurando em seu lugar um novo paradigma mais eficaz, evento denominado revolução científica.

Os paradigmas, ou matrizes disciplinares, são as teses basilares de uma comunidade científica, geralmente, oriundas de uma revolução científica que as instaurou por sua eficácia em resolver problemas que escapavam da esfera do velho paradigma que se tornara anômalo. A comunidade científica mais que liames teóricos e técnicos, criam laços pessoais com seu paradigma fundador, sua razão de ser no campo científico; tais laços adquirem conotações afetivas, ontológicas e éticas, o que torna a simples possibilidade de anomalia nesta matriz disciplinar como algo não aceitável e até, que deva ser evitado pelos cientistas que compõem tal comunidade.

A ciência normal se caracteriza pelo rebuscamento do paradigma, através do registro em manuais científicos de seu postulado, bem como dos problemas que se encontram em sua esfera sendo passíveis de resoluções conforme o modelo paradigmático. No entanto, o desenvolvimento da ciência normal, mediante o levantamento de diversos problemas que devem ser resolvidos conforme a matriz disciplinar e, posteriormente devem ser registrados nos manuais científicos, aproximam os cientistas do limiar do campo paradigmático e, por conseguinte, da constatação de anomalias em sua esfera.

A revolução científica evidencia o surgir de uma nova tese, constituída como novo paradigma fundamentando outra comunidade científica, que resolva as questões que extenuaram as possibilidades de eficácia na resolução da velha comunidade científica com seu vencido paradigma. Não é uma alternância muito pacífica ou aceitável, sobretudo para a comunidade científica que perde seu status.

Nosso trabalho consiste numa revisão de literatura científica que correspondam ao objetivo de elucidar a concepção kuhniana de ciência, através dos três conceitos que acima apresentamos, como devir dialético de comunidades científicas e paradigmáticas, construindo a Historia da Ciência.

Radicado na noção de Ciência auto-corrigível, que é mais crítica e menos dogmática, na esteira de Karl R. Popper, encontramos Thomas S. Kuhn, epistemólogo que publicou em 1963 “A Estrutura das Revoluções Científicas”, donde se sobressai os conceitos de Paradigma, Ciência normal e Revolução científica.

Quanto à sobredita noção de Ciência, na qual se funda Kuhn, afirma Nícola Abbagnano (2007, p.159):

 

"Trata-se de uma concepção de vanguardas mais críticas ou menos dogmáticas da metodologia contemporânea [...], é significativa, seja por partir da desistência de qualquer pretensão à garantia absoluta, seja por abrir novas perspectivas ao estudo analítico dos instrumentos de pesquisa de que as C. [leia-se: ciências] dispõem".

 

Conceber a Ciência como auto-corrigível é postular certa mobilidade dialética entre diversas comunidades científicas que se alternam na voga de determinado ramo científico, até que outra teoria, divergente, lhe tome a primazia. Então a Ciência é construída por um devir dialético de grupos científicos que se alternam na evidenciação de suas pesquisas e teorias, movendo a história científica.

Thomas Kuhn escreveu no Posfácio de 1969, à sua obra, que citamos, sobre a comunidade científica:

 " uma comunidade científica é formada pelos praticantes de uma especialidade científica. Estes foram submetidos a uma iniciação profissional e a uma educação similares, numa extensão sem paralelos na maioria das outras disciplinas. Neste processo absorveram a mesma literatura técnica e dela retiraram muitas das mesmas lições". (KUHN, 2000, p. 220).

 

Compreender a concepção kuhniana de comunidade científica é perceber um grupo de cientistas tradicionalmente vinculados à sua teoria, bem como a os métodos de enriquecê-la para que ela permaneça em voga; portanto há uma transmissão de cultura, teoria e técnica, próprias de determinado grupo científico às novas gerações que adentram em suas fileiras. Notando-se nisto que a autocorrigibilidade somada ao devir dialético de outra teoria que tire o prestígio científico daquela, não são bem vindos para a comunidade, que perderá a glória de sua teoria.

 

"A despeito dos cuidadosos arranjos para que nada de novo apareça, acontece que, de vez em quando, surgem fatos inesperados que não podem ser processados com o auxílio das receitas teóricas à disposição da comunidade científica: eventos que não deveriam ter acontecido".    (ALVES, 1984, p. 191. Grifos do autor).

 

Neste sentido é recorrente a analogia entre uma comunidade religiosa com seus dogmas e uma comunidade científica com seus paradigmas, que são as teorias que instituíram essa comunidade científica, organizando-se como um corpo teórico e técnico, peculiar que é respaldado para os novos cientistas que aderem a esta, tal corpo, denominado Ciência normal é manipulado e fortalecido por seus membros a fim de que perdure aquela comunidade com respeitabilidade no meio científico. Porém, quando surge uma nova teoria científica que corrija as afirmações desta comunidade, temos uma Revolução Científica e o enaltecimento de um novo Paradigma, constituindo uma nova comunidade prestigiosa.

 

"A substituição de paradigmas ocorre após um período no qual há uma competição entre o precedente e o sucessor. A resistência dos cientistas em abandonar o paradigma superado envolve, além da inércia, fatores externos à economia interna do sistema da ciência, tais como lutas entre grupos rivais, apego ao paradigma antigo por razões emotivas, religiosas, e mesmo metafísicas". (EPSTEIN, 1990, p.110).

 

A História da Ciência está repleta de exemplos de alternância de paradigmas, como os das esferas da física newtoniana e da química, entre outros.

A ciência normal, como já evidenciamos, é a sistematização teórica e técnica, que aperfeiçoa o paradigma em sua comunidade científica. Para Kuhn (2000, p. 44):

 

"De início, o sucesso de um paradigma [...] é, em grade parte, uma promessa de sucesso que pode ser descoberta em exemplos selecionados e ainda incompletos. A ciência normal consiste na atualização dessa promessa, atualização que se obtem ampliando-se o conhecimento daqueles fatos que o paradigma apresenta como particularmente relevantes, aumentando-se a correlação entre esses fatos e as predições do paradigma e articulando-se ainda mais o próprio paradigma".

 

Fundada no paradigma, a ciência normal é circunscrita pelos limites deste próprio, resolvendo novos problemas passíveis de solução no campo paradigmático, como num “quebra-cabeça”, chegando ao maior conhecimento e registro da aplicabilidade deste paradigma em diversas situações problemas, que lhes aumentam sua importância e possibilidade de vivência daquela comunidade na esfera científica. A fim de registrar as articulações do paradigma e os vários problemas resolvidos, para que sejam legados aos futuros cientistas que se formarão e se afiliarão àquela comunidade, dando início aos manuais científicos elementares e avançados. “Tais manuais têm o papel de expor toda a tradição teórica, bem como ilustrar as aplicações que foram bem sucedidas na história. E que, por isso, desempenharam uma tarefa pioneira nos ‘caminhos’ que levaram à ciência normal” (VIÉGAS, 2004, p.28).

Com a crescente exploração das possibilidades de aplicação do apontado paradigma na resolução de problemas, que por sua vez são registrados nos manuais científicos, trilhar as sendas da resolução das problemáticas, aproximam cada vez mais os cientistas do limiar imposto pela esfera paradigmática que assegure a resolução dos problemas suscitados em seu domínio, assim, se as problemáticas não são forçosamente  presas ao campo paradigmático, os cientistas aproximam-se  cada vez mais das anomalias do paradigma, ou seja, dos problemas não coerentes com o modelo de resolução estabelecido.  Para Epstein (1990, p. 112):

 

"A fase de prática intensa e homogênea da ciência normal sob a égide de um paradigma é sucedida por outra, onde cresce o número de anomalias não absorvidas pela ciência normal que, por sua vez geram a crise. Esta é resolvida pela mudança de paradigma: a revolução científica".     

 

A revolução científica elucida o curso dialético da história científica, pois um novo paradigma deve ser adotado em detrimento daquele que apresenta anomalias, restando  à comunidade em crise, converter-se para elaborar um novo paradigma ou ser sobrepujada, por outra comunidade científica que se radique numa Matriz disciplinar que responda as expectativas e problemas que lhe sejam vinculados, com maior eficácia que a comunidade anterior. 

Ilustrar a concepção de ciência para Thomas Kuhn, como alternância de paradigmas e comunidades científicas, que constroem suas ciências normais até a próxima revolução epistemológica é ressaltar o caráter dialético da historia científica.

Tal caráter de devir, como mola da historicidade do campo científico, mais que simples dialética ou progressão do conceito de ciência na história humana, concorda plenamente com a noções, auto-corrigível e verificacionista, da ciência, radicadas no início do século XX. Então, a perspectiva kuhniana bem nos fala de seu próprio autor, mostrando que Kuhn engaja sua A Estrutura das Revoluções Científicas, na linha de construção de ciência normal, como manual científico que garanta a manutenção da matriz disciplinar de ciência como conhecimento auto-corrigível.

Se enquadrarmos a contribuição de Thomas Kuhn neste processo dialético, bem como a noção de autocorrigibilidade científica, então Kuhn e seu paradigma estão fadados a anomalia e ineficácia futura, sendo destinados a substituição por outra matriz disciplinar e outros teóricos que melhor respondam os problemas futuros. Por outro lado, estamos diante de um paradoxo? Se a teoria kuhniana está destinada ao envelhecimento perante as anomalias que deverão fazer caducar o conceito de ciência auto-corrigível, esta nossa própria análise está contaminada com a falibilidade, já que a fazemos a partir de Kuhn. Mais se não desejamos construir uma reflexão não descartável, no entanto válida e perene, a quem recorrer?

Aproximamo-nos, então, do filósofo Hegel, que enfatiza o processo dialético de autonegação e desdobramento da ideia que assim se concretiza de forma sistemática. Tal aproximação filosófica é para ressaltar que uma tese que se digladia com uma antítese, permanecerá na síntese, bem como sua própria oponente, nem que seja como modelo histórico do passado que garanta uma melhor compreensão da formação histórica da síntese, que se transforma em uma nova tese vigente, por sua vez também fadada ao devir dialético.

Então, as contribuições científicas de Kuhn,bem como o paradigma a que ele se vincula e também a nossa pesquisa, não está totalmente excluída da perenidade, já que podem auxiliar na compreensão da História da ciência  sendo útil para reconstruir o processo de formação dos paradigmas futuros que construirão sua própria história, quando estiverem em voga no campo científico, também eles passando assumindo a característica de historicidade pretérita.

 

Referências

 

ABBAGNANO. Nicola. Dicionário de Filosofia. 5.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

 

EPSTEIN, Isaac. Thomas S. Kuhn: a cientificidade entendida como a vigência de um paradigma. In: OLIVA, Alberto [Org.]. Epistemologia: a cientificidade em questão. Campinas: Papirus, 1990.

 

 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5.ed.[Trad.: Beatriz Vianna; Nelson Boeira].São Paulo:Perspectiva, 2000.

 

VIÉGAS, Janilson  J. A. Thomas Kuhn: a força dos paradigmas nas tradições de pesquisa científica. Ecos, São Luís, v.1, n.1, p.31-60, jan,/jun.2003.

 

________.  Ciência normal em Kuhn: a atividade científica sob a tutela de um paradigma. Ecos, São Luís, v.2, n.1, p.25-44, jan./jun.2004.

 

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do Romantismo até nossos dias. v.3. 8.ed. são Paulo: Paulus, 2007.