Termos Circunstanciados - Competência - Polícia Judiciária - Autoridade Policial (Felipe Genovez)
Por Felipe Genovez | 01/08/2011 | DireitoCOMPETÊNCIA POLICIAL PARA LAVRAR
TERMOS CIRCUNSTANCIADOS NO ESTADO DE SANTA CATARINA
Felipe Genovez & Silvane Vettori
I ? Introdução:
O principal objetivo do presente trabalho decorreu da edição do Decreto n. 660/2007, outorgado pelo ex-Governador Luiz Henrique da Silveira, atribuindo competência à Polícia Militar para lavrar "termos circunstanciados", tendo como justificativa suprir a carência de policiais civis no Estado - de maneira a aumentar o leque de opções ? e, assim, possibilitar que outros servidores possam também exercer essa atribuição, sem qualquer risco de incorrerem em usurpação de função pública ou inconstitucionalidade e, assim, otimizar as estatísticas quando ao enfrentamento e busca de resultados policiais e judiciais.
O referido ato jurídico do Executivo catarinense infundiu competência à Polícia Militar para lavrar Termos Circunstanciados nos casos dos delitos de menor potencial ofensivo quando se verificar a ocorrência de infração penal enquadrada nessas condições, conforme estabelece a Lei 9.099/95. A pretensão maior com essa inovação foi se propiciar celeridade aos procedimentos ao se permitir que policiais militares também possam lavrar termos circunstanciados, sem que com isso possam ser responsabilizados por usurpar uma função que, constitucionalmente, pertence a quem exerce a função de polícia judiciária no âmbito dos Estados - no caso, a Polícia Civil do Estado de Santa Catarina.
Dentro dessa premissa, pretende-se fazer uma abordagem jurídica a respeito da legislação pertinente, transitando sobre a função de polícia judiciária, além de uma análise prospectiva de quem se constitui "autoridade policial", a fim de se verificar a legalidade do referido ato do Executivo estadual, considerando as bases históricas, constitucionais e legais, além de se aferir seus reflexos no universo da nossa sociedade.
II ? Breve análise histórica a respeito da função de polícia judiciária:
Em 1794 surgiu também na França a distinção entre Polícia Administrativa e Polícia Judiciária (Revolução Francesa ? reformas Napoleônicas). A primeira tendo como escopo garantir a ordem pública e, a segunda, sendo responsável pelas investigações dos crimes e contravenções que a Polícia Administrativa não pudesse impedir que fossem cometidos, competindo-lhe, ainda, coligir as provas e entregar os infratores aos Tribunais incumbidos de puni-los. À maneira de ilustração, em sua gênese mais primitiva, "o sistema policial brasileiro se filia diretamente à Revolução Francesa, adotando a divisão da polícia em administrativa e judiciária, de acordo com a distinção fixada nos arts. 19 e 20 da Lei francesa de 3 do Brumário, do ano IV, de 1894"( ).
Em 1796 foi criado o Ministério da Polícia Geral da República, sob a direção de Joseph Fouché, e a chefia da Polícia Judiciária (Departamento Criminal de Investigações) foi entregue a François Eugène Vidocq. "...Na França atualmente existem duas forças policiais: a Polícia Nacional (organizada em 1966 e integrada por elementos da Prefeitura de Polícia de Paris e da Sûreté Nacionale, que foram fundidas num único órgão) e a Gendarmerie Nationale (corpo fardado). Nas cidades, os Gardiens de la paix servem à polícia municipal, responsável pela prevenção e pelo controle do trânsito (...)"( ).
a) Polícia judiciária (Imperial/Nacional/Santa Catarina):
As primeiras atribuições de polícia judiciária surgiram a partir do Alvará de 10 de maio de 1808, quando D. João VI investiu o Desembargador Paulo Fernandes Vianna no cargo de Intendente-Geral de Polícia. Também, foram nomeados nessa época os primeiros cargos de Delegados de Polícia (Comissários de Polícia ? Alvará de 27.05.1808).
Após a Constituição outorgada de 1821, foi criada a antiga Província de Santa Catarina. A partir da vigência do Código Criminal do Império (1832), dando-se a nomeação do primeiro Chefe de Polícia do Estado de Santa Catarina ? Juiz de Direito Severo Amorim do Valle ? Juiz de Direito (1842).
A Lei nº 261, de 03 de dezembro de 1841, promulgada por D. Pedro II, em seu art. 1º, assim dispôs:
"Haverá no município da Corte e em cada Província, um Chefe de Polícia, com os Delegados e Subdelegados necessários, os que, sob proposta, serão nomeados pelo Imperador, ou pelos Presidentes. Todas as Autoridades Policiais são subordinadas ao Chefe de Polícia".
Por meio da referida legislação foi estabelecido pela primeira vez atribuições aos Delegados de Polícia. Nos termos do art. 4º, par. 9º. constavam o firmamento que resultou mais tarde na criação do ?inquérito policial?.
Também, os pars. 9º e 10, assim preconizavam:
"Par. 9º. "Remetter, quando julgarem conveniente, todos os dados, provas e esclarecimentos que houverem obtido sobre um delicto, com uma exposição do caso e de suas circunstâncias, aos Juízes competentes, a fim de formarem a culpa. Se mais de uma autoridade competente começarem um processo de formação de culpa, proseguirá nelle o Chefe de Polícia ou Delegado, salvo porem o caso da remessa de que se trata na primeira parte deste paragraho.
"Par. 10 "Velar em que os seus Delegados, Subdelegados, ou subalternos cumpram os seus regimentos, e desempenhem os seus deveres, no que toca a Polícia, e formar-lhes culpa, quando o mereçam".
No âmbito nacional, a primeira legislação a separar as funções de polícia em administrativa e judiciária foi o Regulamento n. 120, de 31 de janeiro de 1842 que logo em seu art. 1º., dispôs:
"A polícia Administrativa e Judiciária é incumbida, na conformidade das Leis e Regulamentos: 1º. Ao Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Justiça no exercício da suprema inspecção, que lhe pertence como primeiro chefe e centro de toda a administração policial do Império. Par. 2º. Aos Presidentes das Provincias, no exercício da suprema inspecção, que nellas tem pela Lei do seu Regimento, como seus primeiros administradores e encarregados de manter a segurança e tranquilidade publica, e de fazer executar as leis. Par. 3º. Aos Chefes de Policia no municipio da Côrte e nas Provincias. Par. 4º. Aos Delegados de Policia e Subdelegados dos districtos de sua jurisdição. Par. 5º. Aos Juizes Municipaes dos Termos respectivos. Par. 6º. Aos Juizes de Paz nos seus districtos. Par. 7º. Aos Inspectores de Quarteirão nos seus quarteirões. Par. 8º. As Camaras Municipaes nos seus municipios e aos seus Fiscaes".
O art. 3º., do Regulamento 120/1842 (Lei 261/1841), estabelecia a competência da polícia judiciária:
"Art. 3º. São da competência da Polícia Judiciária: Par. 1º. A atribuição de proceder a corpo de delicto, comprehendida no par. 4º., do art. 12 do Codigo do Processo Criminal; Par. 2º. A de prender os culpados, comprehendida no par. 5º. do mesmo artigo do dito Código; Par. 3º. A de conceder mandados de busca; Par. 4º. A de julgar os crimes, a que não esteja imposta pena maior que multa de 100$000, prisão, degredo, ou desterro até seis mezes com multa correspondente a metade do tempo, ou sem ella, a tres mezes de Casa de Correcção, ou officinas publicas, onde as houver. (Cod. Do Proc. Criminal art. 12, par. 7º.)".
Não só os seguidores do partido Liberal à época, mas principalmente, os membros do Poder Judiciário reclamavam seus espaços. No ano de 1859, o Ministro da Justiça - Nabuco de Araujo, do Gabinete Paraná, propôs as primeiras reformas e reorganização ao Poder Judiciário. A tônica era uma única: A separação entre Justiça e Polícia, ou seja, desejava-se a independência da magistratura. O sobredito projeto de reforma veio a vingar no Gabinete de Rio Branco, quando era Ministro da Justiça Saião Lobato - Visconde de Niterói. Surge a Grande Reforma provocada pela Lei n. 2.033, de 20 de setembro de 1871 (sancionada pela Princesa Regente Isabel) e que teve como maior pretensão a separação das funções de Polícia da Justiça.
Nos termos da Lei de 2.033/1871, ficou estabelecido:
"Art. 9º Fica extincta a jurisdicção dos Chefes de Policia, Delegados e Subdelegados no que respeita ao julgamento dos crimes de que trata o art. 12 § 7º do Código do Processo Criminal, assim como quanto ao julgamento das infracções dos termos de bem viver e segurança, e das infracções de posturas municipaes. Citado por 1
Paragrapho único. Fica tambem extincta a competencia dessas autoridades para o processo e pronuncia nos crimes communs; salva aos Chefes de Policia a faculdade de proceder á formação da culpa e pronunciar no caso art. 60 do Regulamento de 31 de Janeiro de 1842.
"Art. 10. Aos Chefes, Delegados e Subdelegados de Policia, além das suas actuaes attribuições tão sómente restringidas pelas disposições do artigo antecedente, e § único, fica pertencendo o preparo do processo dos crimes, de que trata o art. 12 § 7º do Código do Processo Criminal até a sentença exclusivamente. Por escripto serão tomadas nos mesmos processos, com os depoimentos das testemunhas, as exposições da accusação e defesa; e os competentes julgadores, antes de proferirem suas decisões, deverão rectificar o processo no que fôr preciso.
§ 1º Para a formação da culpa nos crimes communs as mesmas autoridades policiaes deverão em seus districtos proceder ás diligencias necessarias para descobrimento dos factos criminosos e suas circunstancias, e transmittirão aos Promotores Publicos, com os autos de corpo de delicto e indicação das testemunhas mais idoneas, todos os esclarecimentos colligidos; e desta remessa ao mesmo tempo darão parte á autoridade competente para a formação da culpa.
§ 2º Pertence-lhes igualmente a concessão da fiança provisoria.
"Art. 12. Para execução do disposto nos arts. 132 e 133 do Código do Processo Criminal, observar-se-ha o seguinte:
§ 1º Não havendo autoridade no lugar em que se effectuar a prisão, o conductor apresentará immediatamente o réo áquella autoridade que ficar mais proxima.
§ 2º São competentes os Chefes de Policia, Juizes de Direito e seus substitutos, Juizes Municipaes e seus substitutos, Juizes de Paz, Delegados e Subdelegados de Policia. Na falta ou impedimento do Escrivão servirá para lavrar o competente auto qualquer pessoa que alli mesmo fôr designada e juramentada.
§ 3º Quando a prisão fôr por delicto, de que trata o art. 12 § 7º do Código do Processo Criminal, o Inspector de quarteirão ou mesmo o official de justiça, ou commandante da força, que effectuar a prisão, formará o auto de que trata o art. 132 acima citado, e porá o réo em liberdade, salva a disposição do art. 37 da Lei de 3 de Dezembro de 1841 e 300 do Regulamento de 31 de Janeiro de 1842; intimando o mesmo réo para que se apresente, no prazo que fôr marcado, á autoridade judicial, a quem o dito auto fôr remettido, sob pena de ser processado á revelia.
O Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871 que regulamentou a Lei 2.033/1871 pela primeira vez dispôs sobre o inquérito policial, a competência para atuar na função de polícia judiciária, inclusive, investida de funções jurisdicionais, o que justifica a utilização da expressão "autoridades policiais":
"Art. 10. As attribuições do Chefe, Delegados e Subdelegados de Policia subsistem com as seguintes reducções:
1º A da formação da culpa e pronuncia nos crimes communs.
2º A do julgamento dos crimes do art. 12, § 7º do Código do Processo Criminal, e do julgamento das infracções dos termos de segurança e de bem viver.
"Art. 11. Compete-lhes, porém:
1º Preparar os processos dos crimes do art. 12, § 7º do citado Código; procedendo ex-oficio quanto aos crimes policiaes.
2º Proceder ao inquérito policial e a todas as diligencias para o descobrimento dos factos criminosos e suas circunstancias, inclusive o corpo de delicto.
3º Conceder fiança provisoria.
b) A Polícia Judiciária no Estado de Santa Catarina:
O governador Gustavo Richard em relatório sobre o seu primeiro governo (1891-1893), fez as seguintes considerações a respeito do poder requisitório das autoridade policiais sobre os membros do antigo "Corpo de Segurança":
"(...) É certo que a lei de fixação de forças n. 347, de 7 de Outubro de 1898, mandada observar pelas posteriores, inclusive a de n. 706 de 31 de Outubro do anno passado, diz no art. 4. ?que o Corpo de Segurança? (atual Polícia Militar) ficará sob as ordens do Governador do Estado, devendo o respectivo serviço correr pela Secretaria do Interior e Justiça, hoje Secretaria Geral?; mas isto não se entende com a competência que a Prefeitura (Prefeitura de Polícia ? atual Secretaria de Estado da Segurança Pública) sempre teve para requisitar directamente do Corpo de Segurança os meios necessários para agir dentro da orbita das atribuições que a lei lhe traçou. Ninguém poderá desconhecer que a autoridade policial, maxime o chefe de segurança pública (leia-se: atual Secretário de Segurança Pública), tem quase sempre necessidade de lançar mão da força armada, já para obstar a realização de um acontecimento criminoso previsto, já para impedir a continuação de actos resultantes do acontecimento que não foi possível impedir. Ora, em qualquer das hypotheses acima como n?outras em que se torna necessária a ação rapida e energica da autoridade, seria irrisorio exigir providencia efficaz quando ella fica dependente de uma formalidade inteiramente inutil ? que é a requisição por intermedio da Secretaria geral (...). Conseguintemente, observados os preceitos legaes que regem os actos da competência do Prefeito, não se lhe póde negar a faculdade de requisitar directamente do Corpo de Segurança a força que julgar conveniente para executar as suas ordens" (Arquivo Público/Estado de Santa Catarina).
A Lei n. 856, de 19-10-1910 (Governo Vidal Ramos), em seu art. 3., estabeleceu que "a polícia é judiciária ou criminal, e administrativa, incumbe a todas as autoridades policiaes, conforme prescrições desta Lei". Em seu art. 7. também dispôs que "Corpo de Segurança (integrado pelos atuais policiais militares), constituía-se força auxiliar das autoridades policiais. Mais tarde, com o advento do Decreto n. 1.305, de 15-12-1919 que aprovou o Regulamento Policial do Estado (disciplinou a Lei n. 1.297, de 16-09-1919 que reorganizou a Polícia Estadual), ficou estabelecido no seu art. 3º., que:
"O serviço policial comprehende: a) a polícia administrativa ou preventiva, a que em geral pertence à manutenção da segurança, ordem e tranquilidade públicas; b) a polícia judiciária ou repressiva, a que cabem os actos necessários ao exercício da ação especial dos juízes e tribunais".
Logo a seguir, o art. 4º, também do Decreto n. 1.305/1919 estabeleceu que:
"A Força Pública está sob a suprema inspecção do Governador do Estado, immediata direcção do Secretário do Interior e Justiça, e à disposição do Chefe de Polícia".
Atualmente, a função de polícia judiciária está também contemplada na Lei n. 6.843/86 (Estatuto da Polícia Civil do Estado de Santa Catarina).
III ? Termos Circunstanciados ? impossibilidade de se subtrair ou restringir as funções de polícia judiciária aos membros da carreira de Delegado de Polícia delegando essas funções a outros órgãos ou autoridades:
A pretensão de viabilizar a elaboração de Termos Circunstanciados por órgãos ou autoridades que não possuem competência para exercer funções de polícia judiciária, nos termos das Leis nsº 9.099/95 e 10.259/01, encontra vários obstáculos, não só por questões decorrentes da trajetória histórica da Polícia Civil e da carreira de Delegado de Polícia, mas, em especial, como conseqüência da ordem constitucional vigente.
a) Princípio constitucional da reserva de lei formal:
Estabelece o art. 22, I, da Carta Fundamental Política que:
"Compete privativamente à União legislar sobre: I ? direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho".
Nesse sentido, o princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei analisada sob tal perspectiva constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador.
Conforme decidiu o nosso alta Corte de Justiça:
"Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes" .
"Ao Estado-Membro não se outorgou legitimação extraordinária para a defesa, contra ato de autoridade federal no exercício de competência privativa da União, seja para a tutela de interesses difusos de sua população que é restrito aos enumerados na lei da ação civil pública (Lei 7.347/85), seja para a impetração de mandado de segurança coletivo, que é objeto da enumeração taxativa do art. 5º, LXX da Constituição. Além de não se poder extrair mediante construção ou raciocínio analógicos, a alegada legitimação extraordinária não se explicaria no caso, porque, na estrutura do federalismo, o Estado-Membro não é órgão de gestão, nem de representação dos interesses de sua população, na órbita da competência privativa da União"
b) Competência Constitucional:
A Polícia Federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira exerce, com exclusividade as funções de Polícia Judiciária da União (parágrafo 1º caput e inciso IV, do artigo 144 da Constituição). Nos presentes termos, são infrações penais de competência da Polícia Judiciária da União, aquelas que atentam contra a ordem política e social, em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme segundo disposição em lei.
De outra parte, o parágrafo 4º também do artigo 144 da Constituição Federal, dispõe sobre a competência das Polícias Civis estaduais, sob a direção dos Delegados de Polícia de carreira, que serão responsáveis pelas funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, ressalvada a competência da União e as infrações militares.
Aury Lopes Jr., lembra que "apurar" deriva de "puro", significa "purificar", "aperfeiçoar", "conhecer o certo", logo é imprescindível a necessária técnica jurídica para que o bom e digno trabalho ocorra
Essa prescrição encontra-se em parte acolhida na Constituição do Estado de Santa Catarina de 1989, quando tratou da Polícia Civil, pois em seu art. 106, respectivos parágrafos, repisaram os termos do § 4º do artigo 144 da CF.
"...a finalidade da polícia judiciária é desenvolver o momento inicial da atividade repressiva do Estado. Ela age com a meta de investigar a prática de autoria e permitir os fundamentos da ação penal pelo seu titular, que é o MP (Ministério Público) (...)"
"Quando a Constituição dá a um órgão determinado encargo, implicitamente lhe confere os meios de realização desse encargo. É princípio dos poderes implícitos (implied powers) do Direito Americano, o qual nada mais é que, regra geral de interpretação, decorrente do axioma quem tem os fins tem os meios. Da mesma forma, ao conceder a determinada função, órgão ou poder por determinada atribuição, implicitamente a Constituição afasta outros órgãos, poderes e funções da mesma atribuição: admitir-se que a competência constitucionalmente prevista pode ser afastada pela legislação infraconstitucional seria infirmar o próprio caráter político e supremo da Lei das Leis"
Violar princípios constitucionais é quebrar toda uma ordem hierárquica da qual dimana fundamentos que devem reger toda a legislação infraconstitucional:
"(...) Princípio ? já averbamos alhures ? é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. 4. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a uma específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, como ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada (...)" .
Também:
"Do ponto de vista jurídico, o principal traço distintivo da Constituição é a sua supremacia, sua posição hierárquica superior à das demais normas do sistema. As leis, atos normativos e atos jurídicos em geral não poderão existir validamente se incompatíveis com alguma norma constitucional. A Constituição regula tanto o modo de produção das demais normas jurídicas como também delimita o conteúdo que possam ter [...] A supremacia da Constituição é assegurada pelos diferentes mecanismos de controle de constitucionalidade. O princípio não tem um conteúdo próprio: ele apenas impõe a prevalência da norma constitucional, qualquer que seja ela. É por força da supremacia da Constituição que o intérprete pode deixar de aplicar uma norma inconstitucional a um caso concreto que lhe caiba apreciar ? controle incidental de constitucionalidade ? ou o Supremo Tribunal Federal pode paralisar a eficácia, com caráter erga omnes, de uma mesma norma incompatível com o sistema constitucional (controle principal ou por ação direta) .
c) Competência Processual Penal:
O Código de Processo Penal, em seu artigo 4º expressamente declarou:
"A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e de sua autoria".
Já o art. 6º, CPP, respectivos incisos, trata das diligências policiais e das funções de polícia judiciária. Ao se interpretar o artigo 69 da Lei 9.099/95, seguindo o desígnio que norteou o legislador, observaremos que o Delegado de Polícia é a autoridade policial para os fins de exercer o múnus descrito nesse preceptivo.
Segundo a dicção que se extrai do caput desse dispositivo, a autoridade policial é quem vai providenciar as requisições dos exames periciais necessários. No mesmo sentido o parágrafo único dispõe que não se imporá fiança, nem prisão em flagrante ao autor do fato que comparecer imediatamente ao Juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer. Ora, é o Delegado de Polícia quem providencia as requisições dos exames periciais necessários, impõe fiança ou elabora o auto de prisão em flagrante. Nesse caso, a autoridade policial providenciará requisições de exames periciais ? resguardada a devida celeridade ao procedimento, estando essas providências discriminadas no artigo 6º do CPP, cujas atribuições se circunscrevem à competência exclusiva do Delegado de Polícia de carreira (Federal/Estadual).
Nos termos do art. 69 da Lei nº 9.099/95, quando a autoridade policial tomar conhecimento da ocorrência policial deverá lavrar o termo circunstanciado, procedendo ao seu encaminhamento imediato ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames necessários. Concluindo no parágrafo único do referido artigo, o legislador esclareceu que após a lavratura do termo, caso o autor do fato seja encaminhado imediatamente ao juizado ou assuma o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Ademais, consta expressamente da legislação federal que no caso do parágrafo 2º do artigo 77 da Lei nº 9.099/95, o Ministério Público requererá ao Juiz que baixe os autos para novas diligências que permitam o oferecimento da denúncia.
Nesse caso, há que se levar em conta que o Delegado de Polícia da circunscrição policial na maioria dos casos desconhece os fatos, pois não teve participação alguma da fase preliminar, podendo contribuir para a ocorrência do par. 2º do art. 77, da mesma lei extravagante. Além do que, caso o termo circunstanciado venha "baixar" para diligências, certamente que importantes indícios probatórios já terão desaparecidos, comprometendo "a fortiore" o sistema sumaríssimo pretendido na Lei nº 9.099/95.
Na legislação processual comum, aliás, só são conhecidas duas espécies de "autoridades": a autoridade policial, que é o Delegado de Polícia, e a autoridade judiciária, que é o juiz de Direito. Somente o Delegado de Polícia e não qualquer agente público investido de função preventiva ou repressiva tem, em tese, formação técnica profissional para classificar infrações penais, condição indispensável para que seja o ilícito praticado incluído ou não como infração penal de menor potencial ofensivo. Somente o Delegado de Polícia pode dispensar a autuação em flagrante delito, nos casos em que se pode evitar tal providência, ou determinar a autuação quando o autor do fato não se comprometer ao comparecimento em Juízo, arbitrando fiança quando for o caso. Somente ele poderá determinar as diligências imprescindíveis à instauração da ação penal quando as provas da infração não foram colhidas por ocasião da prisão em flagrante delito. Assim, numa interpretação literal, lógica e mesmo legal, somente o delegado de polícia pode determinar a lavratura do termo circunstanciado a que se refere o art. 69. Em suma, a Lei que trata dos Juizados Especiais em nenhum de seus dispositivos, mesmo remotamente, se refere a outros agentes públicos que não a autoridade policial.
Conclui-se, portanto, que, à luz da Constituição Federal e da sistemática jurídica brasileira, autoridade policial é apenas o delegado de polícia, e só ele pode elaborar o termo circunstanciado referido no dispositivo sob comento (art. 69). Dessa forma os agentes públicos que efetuarem prisão em flagrante devem encaminhar imediatamente as partes à autoridade policial da Delegacia de Polícia da respectiva circunscrição". ( in Juizados especiais criminais: comentários, jurisprudência, legislação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 60/1).
O Delegado de Polícia é a autoridade competente para a instauração e presidência do inquérito policial (embora por lei possa ser atribuída a outras, expressamente, essa função - art. 4º e seu parágrafo único, do CPP) e para a lavratura do auto de prisão em flagrante (art. 304 do CPP). A expressão "autoridade policial", aliás, é citada em outros dispositivos da lei processual comum (arts. 5º,§§3º e 5º, 6º,7º 9º,10,§§1º a 3º, 13 a 17, 20 e parágrafo único; 21, parágrafo único, 22 e 23, 39,§§ 1º,3º e 4º, 46, 241, 301, 307, 308, 311, 325, 326, 332, etc), sempre com única referência ao Delegado de Polícia. A distinção da figura da autoridade policial e dos demais agentes policiais é registrada no Código de Processo Penal, que se refere "às autoridades ou funcionários" ( art. 47 do CPP), ou a autoridades e "seus agentes" ( art. 301, CPP).
"As autoridades policiais são as que exercem a polícia judiciária que tem o fim de apuração das infrações penais e da sua autoria (art. 4o do CPP). Paulo Lúcio Nogueira, tecendo comentários acerca do art. 69, da Lei n. 9.099/95, ensina que ?Autoridade policial referida na lei só pode ser o Delegado de Polícia...?"
A suprema Corte do país assim se posicionou:
"O indiciamento de alguém, por suposta prática delituosa, somente se justificará, se e quando houver indícios mínimos, que, apoiados em base empírica idônea, possibilitem atribuir-se, ao mero suspeito, a autoria do fato criminoso. Se é inquestionável que o ato de indiciamento não pressupõe a necessária existência de um juízo de certeza quanto à autoria do fato delituoso, não é menos exato que esse ato formal, de competência exclusiva da autoridade policial, há de resultar, para legitimar-se, de um mínimo probatório que torne possível reconhecer que determinada pessoa teria praticado o ilícito penal. O indiciamento não pode, nem deve, constituir um ato de arbítrio do Estado, especialmente se se considerarem as graves implicações morais e jurídicas que derivam da formal adoção, no âmbito da investigação penal, dessa medida de Polícia Judiciária, qualquer que seja a condição social ou funcional do suspeito"
"EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DECRETO Nº. 1.557-2003 DO ESTADO DO PARANÁ, QUE ATRIBUI A SUBTENENTES OU SARGENTOS COM PATENTES O ATENDIMENTO NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA, NOS MUNICÍPIOS QUE NÃO DISPÕE DE SERVIDOR DE CARREIRA PARA O DESEMPENHO DAS FUNÇÕES DE DELEGADO DE POLÍCIA. DESVIO DE FUNÇÃO. OFENSA AO ART. 144, IV E V E §§ 4º E 5º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE (ADI 3.614-9. Rel. Min. Gilmar Mendes. Rel. para o acórdão: Min. Cármen Lúcia. DJ 23.11.2007" .
Frise-se que a função de delegado de polícia que se referiu o decreto paranaense (nº. 1.557/2003) tangia-se à permissão para que os policiais militares elaborassem o "Termo Circunstanciado" nos municípios que não contassem com servidor de carreira para o desempenho das funções de Delegado de Polícia.
O Relator da ADI, Ministro Gilmar Mendes, posteriormente vencido, votou pela constitucionalidade da ocupação das funções de Polícia Civil por integrantes da Polícia Militar, reservando-se à declaração de inconstitucionalidade do art. 7º do Decreto paranaense, tangente ao aumento de gastos da Administração Pública por um Poder incompetente, Executivo, naquele caso.
Na oportunidade, os Ministros Menezes Direito e Cármen Lúcia expuseram o grave risco de uma delegação temporária de funções do Delegado de polícia civil ? de carreira ? ao policial militar, se tornar permanente, sendo tal delegação algo inaceitável no sistema administrativo.
Os Ministros Ricardo Lewandowski, Celso de Mello, Marco Aurélio votaram pela inconstitucionalidade do Decreto paranaense, bem como o Ministro Cezar Peluso, que em seu voto consignou: "o problema grave é que, antes da lavratura do Termo Circunstanciado, o policial militar tem de fazer um juízo jurídico de avaliação dos fatos que lhe são expostos" (uma atividade típica e exclusiva da Polícia Judiciária).
Também, convém destacar o que afirmou a Ministra Ellen Gracie ao votar pela procedência da ação e conseqüente inconstitucionalidade do Decreto, que segundo ela, "as duas polícias, civil e militar, têm atribuições muito específicas e próprias, perfeitamente delimitadas e que não se podem confundir", logo, é inconstitucional a lavratura de Termo Circunstanciado pela Polícia Militar.
Por fim, nunca é demais lembrar, que ao contrário do que se pode imaginar, o prejuízo para sociedade pode ser devastador, pois se o Judiciário admitir tal situação, fechando os olhos para um retrocesso militarista, ficará muito difícil a situação do cidadão, pois os militares poderão abordar qualquer um do povo, sob o argumento de que traz mais celeridade ao procedimento e, com a abordagem, acabam eles próprios confeccionando o malfadado Termo Circunstanciado que, quando aporta no Judiciário, são justamente os próprios policiais militares que irão depor contra o cidadão, na condição de testemunhas!! Ou seja, tal retrocesso se torna extremamente perigoso à sociedade civil.
d) Competência - delegação - exercício da função de polícia judiciária ? impossibilidade:
A impossibilidade de delegação e avocação de competências está prevista em legislação federal. Nesses termos, a Lei n0 9.784/99 estabelece em seu artigo 11, que:
"A competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos".
"A competência é intransferível e improrrogável por interesse das partes. Embora seja assim, pode ser delegada e avocada, desde que tais modificações de competências estejam estribadas em lei. Exemplo de delegação encontra-se no parágrafo único do art. 84 da CF/88. Exemplo da faculdade de avocar achava-se no art. 170 do Decreto-Lei 200/67, que cuidou da reforma administrativa federal"
O poder delegatório contemplado na legislação sobredita é passível de ser flexibilizado, na medida em que possa ser partilhado por outra organização ou autoridade, entretanto, essa prerrogativa é inerente à organização hierárquica que caracteriza a Administração Pública. Assim, é possível a delegação, exceto quando se trata de competência outorgada com exclusividade a determinado órgão, como no caso a Polícia Civil, no exercício da função de polícia judiciária.
É o que deflui da interpretação do art. 12 da mencionada lei:
"Um órgão administrativo e seu titular poderão, se não houver impedimento legal, delegar parte de sua competência a outros órgãos ou titulares, ainda que estes não lhe sejam hierarquicamente subordinados, quando for conveniente, em razão de circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial".
O art. 13, da referida legislação, estabelece de forma peremptória no sentido de excluir a possibilidade de delegação para: I ? a edição de atos de caráter normativo; II ? a decisão de recursos administrativos, já que o recurso administrativo também é decorrência da hierarquia e há de ser decidido por cada instância separadamente, sob pena de perder sentido; se a autoridade superior pudesse delegar a decisão do recurso, estaria praticamente extinguindo uma instância recursal; III ? as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade, pois, se assim não fosse, a delegação implicaria infringência à lei que reservou a matéria à competência de determinado órgão ou autoridade.
e) nulidades dos atos praticados contra a ordem constitucional e legal vigente:
Os "TCs" lavrados por "PMs" constituem-se ? sob a ótica processual - nulidade absoluta, conforme estatui o art. 563 do CPP, considerando que o princípio da legalidade importa na estrita observância da legislação vigente:
"A legalidade nos sistemas políticos exprime basicamente a observância das leis, isto é, o procedimento da autoridade em consonância estrita com o direito estabelecido. Ou em outras palavras traduz a noção de que todo poder estatal deverá atuar sempre de conformidade com as regras jurídicas vigentes. Em suma, a acomodação do poder que se exerce ao direito que o regula" .
Neste sentido, o grande mestre Hely Lopes Meirelles já se pronunciou:
"...Competência - Para a prática do ato administrativo a competência é a condição primeira de sua validade. Nenhum ato ? discricionário ou vinculado ? pode ser realizado validamente sem que o agente disponha de poder legal para praticá-lo..."
Para reforçar:
"... o ato processual, praticado em infringência à norma ou ao princípio constitucional de garantia, poderá ser juridicamente inexistente ou absolutamente nulo; não há espaço, nesse campo, para atos irregulares sem sanção, nem para nulidades relativas"
José Afonso da Silva, reportando-se a um dos maiores pensadores do Século XX, doutrina:
"... Dentro desse contexto, cabem as observações de Norberto Bobbio, segundo o qual legalidade e legitimidade são atributos do poder, mas são duas qualidades diferentes deste: a legitimidade é a qualidade do título do poder e a legalidade a qualidade do seu exercício. "Quando se exige que um poder seja legítimo, pergunta-se se aquele que o detém possui um justo título para detê-lo; quando se invoca a legalidade de um poder, indaga-se se ele é justamente exercido, isto é, segundo as leis estabelecidas. O poder legítimo é um poder, cujo título é justo; um poder legal é um poder, cujo exercício é justo, se legítimo"
IV ? O Decreto n. 660/2007 (inconstitucionalidade):
No território catarinense o ex-Chefe do Poder Executivo Estadual fixou competência à Polícia Militar para lavrar termos circunstanciados em competência concorrente com a Polícia Civil, cujo art. 1º da legislação sobredita estabeleceu: :
Art. 1º O Termo Circunstanciado deverá ser lavrado na delegacia de polícia, caso o cidadão a esta recorra, ou no próprio local da ocorrência pelo policial militar ou policial civil que a atender, devendo ser encaminhado ao Juizado Especial, nos termos do art. 69 da Lei Federal nº9.099, de 26 de setembro de 1995.
Pelas razões já expostas o referido preceptivo é inconstitucional em razão do que já foi enfrentado na ADI 3.614-9, do Estado do Paraná, onde foi erigida mesma instrumento que afronta a função de polícia judiciária contemplada no art. 144, IV e V, §4º e §5º da Carta Magna de 1988: Em decorrência da dicção do art. 69 da Lei 9.099/95, referido no art. 1º do Decreto 660/2007, ao tratar sobre o procedimento preliminar, que deve ser realizado quando há a apuração dos delitos de menor potencial ofensivo, reza:
"Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará Termo Circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários".
A interpretação da legislação infraconstitucional em conformidade com a CF/88 circunscreve-se a todos os poderes do Estado. Nesse sentido, conforme professa o jurista Barroso, que professa que é por força da supremacia da Constituição que o intérprete deve deixar de aplicar uma norma inconstitucional a um caso concreto, visto que a jurisdição constitucional está incorporada em nosso ordenamento jurídico desde a Constituição Federal de 1891. Quando o caso é submetido ao Poder Judiciário, o Julgador, por meio de uma filtragem hermenêutica-constitucional, deve deixar de aplicar as normas inconstitucionais:
"...a possibilidade de os tribunais e até mesmo o juiz singular fazer uso dos citados mecanismos fundamenta-se no controle difuso de constitucionalidade. Impedir esse uso pelos juízes e tribunais inferiores seria restringir a própria modalidade de controle difuso; seria uma espécie de meio-controle (...)Por isso a necessidade de uma constante filtragem hermenêutico-constitucional de todas as normas do sistema. Mais do que deônticas, as normas da Constituição são deontológicas. Obedecer-lhas faz parte do compromisso ético do operador do Direito..." .
De maneira paradoxal ficou estabelecido no art. 4º do Dec. 660/2007 disposição de cunho eminentemente processual penal, em afronta à Constituição Federal, considerando que define competência para a atuação dos órgãos policiais no que tange aos crimes de menor potencial ofensivo (ex vi legis do art. 22, I da CF/88), vejamos:
"É vedado à Polícia Militar praticar quaisquer atos de Polícia Judiciária, dentre os quais apuração de infrações penais, pedidos de mandados de busca e apreensão, interceptação telefônica, escuta de ambiente e representações de prisões temporárias e preventivas, bem como, cumprimento de mandados de busca e apreensão, exceto, neste caso, por determinação judicial".
Ademais:
"Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isso seria como sustentar que o procurador é maior que o mandante, que os representantes do povo são superiores a esse mesmo povo, que aqueles que agem em virtude de poderes concedidos podem fazer não só o que eles autorizam mas também aquilo que proíbem" .
Alexander Hamilton, in verbis:
A teoria da nulidade, com efeitos ex tunc, do ato inconstitucional foi plenamente acatada no Brasil, especialmente pela Corte Constitucional . O STF consagrou, através de sua jurisprudência, o tripé peculiar da tese da nulidade do ato inconstitucional: o ato é nulo, a inconstitucionalidade é, portanto, declarada, e o desfazimento dos efeitos do ato é retroativo.
O Ministro Celso de Mello justificou a adoção da teoria na ADIn 652/MA (Questão de Ordem), em que o STF consignou que o repúdio ao ato inconstitucional decorre, em essência, do princípio que, fundado na necessidade de preservar a unidade da ordem jurídica nacional, consagra a supremacia da Constituição.
V ? O Ministério Público como guardião da legalidade (e dos princípios constitucionais):
O Processo Penal constitui-se um dos firmamentos do Estado Democrático de Direito e deve se firmar como um instrumento de defesa do cidadão contra a tirania do Estado, tendo como esteio as garantias conquistadas por meio do processo constituinte de normas internacionais de Direitos Humanos.
Além do fato criado pela edição do Decreto 660/2007, acrescente-se também que a Lei Orgânica/MP Federal (Lei Federal nº 8.625/93) e a Lei Orgânica do MP Estadual (Lei Complementar Estadual nº 197/00) não trouxe previsão jurídica que legitime o Procurador-Geral de Justiça alterar Legislação Federal e mesmo a Constituição, modificando as competências da Polícia Civil e suas funções de polícia judiciária, como ocorreu na celebração do Termo de Cooperação Técnica n. 05/2004, firmado entre aquele órgão e a Polícia Rodoviária Federal (leia-se: Superintendente da 8ª Região), delegando competência para lavratura de termos circunstanciados, cujo ato foi subscrito no dia 15 de julho de 2004 e se revelou flagrante afronta aos Delegados de Polícia, na medida em que foram delegadas competências de funções de polícia judiciária a uma corporação federal, com violação não só às disposições já enfrentadas anteriormente, mas, também, ao princípio da autonomia dos Estados.
Dessa arte, o Ministério Púbico, como órgão encarregado de fiscalizar as leis por meio de seus prepostos, silenciou diante da supremacia e dos interesses do Poder Executivo, especialmente, porque ficou patente a insurgência à Constituição de 1988, o que não se admite porque é o guardião do Estado Democrático de Direito e encarregado da defesa da ordem jurídica.
"Apesar do fascínio do discurso eficientista por anestesiar os crédulos de sempre, não se pode, entretanto, romper com as "regras do jogo" democrático ? fair play ? em nome da rapidez/eficiência, a qual não deve ser confundida com efetividade (...) O Direito Processual possui limites democráticos fundamentais. E esse reconhecimento de certo grau de ceticismo é condição de possibilidade para um fundamento democrático, dado que há muito tempo questões jurídicas deixaram de ser problema do Monastério dos Sábios para se tornarem questões de cidadania, de Democracia, abertas aos atores do mundo da vida" .
IV ? Conclusão:
O governo do Estado de Santa Catarina não somente extrapolou a competência tangente ao ente Federativo, como também a competência da esfera de Poder, isto é, o Direito Penal e o Processo Penal, sob a ótica do Garantismo Jurídico, na medida em que se constituem limitações ao Poder do Estado em razão da sua tendência de sempre abusar do seu exercício , exceto em se tratando da impossibilidade lógica do autocontrole do Executivo (teoria dos freios e contrapesos de Montesquieu).
Se a legislação processual penal não especifica qual "autoridade policial" é competente, urge se analisar o termo à luz do art. 144, IV, V, § 4º e § 5º da CF/88, pois é na norma Maior que está delimitada a competência das "autoridades policiais" e não no "déficit" estrutural e de planejamento do Estado.
Trilhando o mesmo entendimento que Mirabete, o jurista Paulo Rangel afirma que "a expressão autoridade policial refere-se, exclusivamente, aos delegados de polícia de carreira" .
A Polícia Civil deve contestar permanentemente quaisquer pretensões de órgãos ou servidores civis ou militares que não integram seus quadros, quanto à supressão ou restrição da sua função constitucional de polícia judiciária, como especificamente no caso da lavratura de termos circunstanciados .
a) A lavratura de termos circunstanciados sob a égide das Leis ns. 9.099/95 e 10.259/01 constituem função genuinamente de polícia judiciária, exigindo a pronta intervenção do Delegado de Polícia responsável, quer para fins do controle das informações policiais quer para assegurar a eficácia na apuração criminal;
b) As requisições periciais e a adoção de outras medidas processuais criminais decorrentes dos termos circunstanciados estão a exigir não só o conhecimento jurídico, mas, sobremaneira, o controle dos delitos por parte dos Delegados de Polícia;
c) É inadmissível e extremamente intolerável que órgãos estranhos à instituição pretendam usurpar competências historicamente deferidas à Polícia Civil;
d) Compete ao governo dotar a Polícia Civil de profissionais plenamente qualificados, pois seu quadro lotacional há anos encontra-se bastante defasado, além de assegurar condições técnicas para que se possa atender a crescente demanda de serviços, circunstância agravada em razão do desvio de função imposto aos policiais que são obrigados ainda a exercer funções carcerárias;
e) A edição de qualquer ato ou termo que cause prejuízos à Polícia Civil, com afronta às normas constitucionais e legais vigentes, tem que ser rejeitada, devendo ser ignorado/anulado de ofício (ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal), conforme prevê a Súmula nº 473 do STF. E, se não o fizer, poderá o interessado pedir ao Judiciário que verifique a ilegalidade do ato e declare a sua invalidade, através da anulação;
f) Os Delegados de Polícia do Estado de Santa Catarina, no caso da ocorrência de delitos de menor potencial ofensivo, além de denunciar os fatos a seus superiores, ficam obrigados a adotar todas as providências constitucionais e legais visando resguardar à função de polícia judiciária quanto à lavratura de termos circunstanciados, registrando a ocorrência, representando à autoridade judicial competente acerca de qualquer usurpação de função, denunciando o cometimento de ilegalidades ou prática de abusos por organismos ou servidores estranhos à Polícia Civil, além de informarem à seção da Ordem dos Advogados do local e o representante do Ministério Público local.
g) Por derradeiro, infere-se a necessidade de se reconhecer a nulidade dos Termos Circunstanciados lavrados pela Polícia Militar do Estado de Santa Catarina amparados no Decreto 660/2007, pois este instrumento não se revela o meio hábil a regulamentar o art. 69 da Lei 9.099/95, em razão de sua inconstitucionalidade, haja vista pretender tratar de matéria processual penal, o Executivo catarinense usurpou a competência privativa da União, nos termos do art. 22, I da CF/88. De outro norte, o mencionado Decreto - ao atribuir funções de polícia judiciária à Polícia Militar - viola o disposto no art. 144, IV, V, §4º e §5º da CF/88, cuja competência adstringe-se a quem exerce as funções de polícia judiciária no âmbito das infrações penais (exceto as militares) no âmbito do Estado.
BIBLIOGRAFIA:
1. Rocha, Luiz Carlos. Organização Policial Brasileira, Saraiva, 1991, SP, p. 7.
2. Rocha, Luiz Carlos Rocha, Organização Policial Brasileira, Saraiva, 1991, SP, págs. 3 e 4.
3. Supremo Tribunal Federal. Rel. Min. Celso De Mello, ADI 2.075-MC, DJ 27/06/03.
4. (Supremo Tribunal Federal. Rel. Min. Sepúlveda Pertence, MS 21.059, DJ 19/10/90).
5. LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. V. 1. 4ª. Ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009.
6. Pinto Ferreira, comentando o art. 144, par. 4o, CF. Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 1990, 2o vol.
7. Nagib Salibi Filho. Anotações à Constituição de 1988, Forense, 1989, p. 90.
8. Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo Brasileiro, 12a ed., 2000, SP, Malheiros, págs. 747/748.
9. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 370-371.
10. Julio Fabbrini Mirabete. Curso Completo de Processo Penal, Saraiva, 11a ed., 2000, SP, pág. 41.
11. Supremo Tribunal Federal. Rel. Min. Celso de Mello. Inq. 2.041, DJ 06/10/03.
12. A questão constitucional tangente à competência da Polícia Militar para a lavratura de Termos Circunstanciados, foi o objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 3.614-9/PR, datada do ano de 2007, que foi julgada procedente pelo STF em sessão plenária. A ADI referiu-se à necessária distinção entre as competências das polícias Civil e Militar definidas nos incisos e parágrafos do art. 144 da Constituição Federal de 1988.:
13. Diógenes Gasparine, in Direito Administrativo, Ed. Saraiva, SP, 1993, p. 68.
14. Apud Paulo Bonavides, in O Princípio da Proporcionalidade como Instrumento de Controle Constitucional da Norma Penal. In Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, fevereiro 2000, p. 463-479. Mensal. ISSN 0034-9275).
15. Hely Lopes Meirelles, in Direito Administrativo Brasileiro, 27º ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 198).
16. (Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filhos, in As Nulidades no Processo Penal, 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 29).
17. José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, 24ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 425.
18. STRECK, Lênio Luiz. O crime de porte de arma à luz da principiologia constitucional e do controle de constitucionalidade: três soluções à luz da hermenêutica. In Revista de Estudos Criminais nº 01, p. 52.
19. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1988.
20. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 288.
21. Diário da Justiça do Estado de Santa Catarina nº11477, 22 de julho de 2004, na página 97.
22. ROSA, Alexandre Morais da. Decisão Penal: A bricolage de Significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 218.
23. MONTESQUIEU, O Espírito das Leis. Capítulo VI, Livro XI.
24. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal.12. Ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, p. 152.
25. Sob pena de se afrontar os art. 144, IV, V, § 4º e § 5º e art. 22, I, todos da CF/88.